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Responsabilidade e responsabilização em democracia

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Nelson Faria

 A democracia, com todas as suas imperfeições, continua a ser o melhor sistema que encontramos para conciliar diversidade de interesses, de visões, opiniões, distribuir poder e preservar alguma paz social. Ainda assim, amigável como pode parecer à superfície, ela também abre a porta, por mecanismos legais e consentidos, para que pessoas incompetentes, negligentes ou mesmo corruptas ocupem cargos políticos de decisão. Quando isso acontece, os danos não se limitam a má gestão governativa, podem transformar oportunidades em crises, recursos públicos em promessas vazias e vidas humanas em estatísticas evitáveis. É por isso que responsabilidade e responsabilização não são meras palavras para constarem da linguagem cívica, são exigências estruturais para que a democracia, de facto e não de aparência, cumpra a sua razão de ser.

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A advertência milenar de Sun Tzu, embora proferida em um contexto de guerra, é assustadora pela precisão no cenário político moderno: “um Homem mau queimará a sua própria nação para que possa governar sobre as cinzas”. Descreve o político que semeia o caos e a divisão para se apresentar como o único salvador, que esvazia instituições para fortalecer seu próprio culto, que sacrifica o bem-estar de longo prazo da população por ganhos eleitorais de curto prazo, que queima a verdade, a ética e a coesão social, a própria nação imaterial, para reinar soberano sobre os escombros que ele mesmo criou. A concentração de poder nas mãos de quem age por interesse próprio pode destruir a própria ordem social que legitimou esse poder.

Os fenómenos naturais, as crises externas, são inevitáveis e incontroláveis, mormente no mundo de incertezas e volatilidades que vivemos hoje. Nenhum governante pode ser culpado por um terremoto, ciclones ou uma pandemia global. As decisões de governação, não. As escolhas políticas são humanas, passíveis de previsão, avaliação e correção. Se deixarmos que erros previsíveis e negligências fiquem impunes, corremos o risco de naturalizar a má governação como desculpa recorrente de fatalidades. Cultivar a desculpa fácil, a fuga ​à responsabilidade não permitirá o progresso individual e coletivo. A falta de responsabilidade e responsabilização são sinais de decadência civilizacional.

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Para que a democracia funcione, de facto, não de monumento, há necessidade de:

·       Instituições fortes e independentes. Uma democracia saudável exige tribunais
independentes, órgãos de auditoria com recursos e independência técnica, procuradorias
que atuem sem pressões políticas e órgãos reguladores que imponham normas claras.
Quando instituições são capturadas pelo poder, a responsabilização torna-se teatro.
 
·       Exige transparência real e acessível. Publicar dados, contratos, pareceres técnicos e
processos de tomada de decisão não é suficiente se estiverem em “linguagem de elites”.
Transparência significa informação compreensível, tempestiva e auditável, algo que
permita à imprensa, às associações cívicas e aos cidadãos identificar riscos e responsabilizar
os responsáveis.

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·       Exige proteção ao jornalismo e à sociedade civil. Uma imprensa livre e uma sociedade
civil ativa funcionam como vigilantes. Quando essas vozes são silenciadas, por intimidação,
falta de financiamento ou leis opacas, o espaço público empobrece e a corrupção ganha
terreno.
 
·       Educação cívica e capital humano são e serão determinantes. Democracia exige
cidadãos capazes de julgar propostas, exigir contas e participar com responsabilidade.
Investir em educação cívica e formação técnica dos gestores públicos reduz o espaço da
incompetência e fortalece a cultura de responsabilidade.
 
·       Mecanismos legais eficazes. Leis contra a prevaricação, enriquecimento ilícito e abuso
de poder precisam ser claras e aplicáveis. Mas, mais importante, têm de ser aplicadas.
Impunidade é o impulsionador da irresponsabilidade.
 
·       Rituais democráticos que funcionem. Eleições são essenciais, mas não bastam.
Sistemas de fiscalização entre eleições (conselhos de ética, comissões parlamentares
independentes, instrumentos de participação direta) garantem que as decisões do dia a dia
também estejam sujeitas a escrutínio.

Responsabilidade e responsabilização são duas faces do mesmo princípio. Responsabilidade é o dever ético, técnico e legal de tomar decisões informadas e ponderadas. Responsabilização é o mecanismo que assegura consequências quando esse dever é violado possibilitando investigações independentes, auditorias, processos judiciais, sanções administrativas, perda de mandato político ou, na próxima eleição, a derrota nas urnas. Sem responsabilização, a responsabilidade transforma- se em retórica.
Para que a democracia funcione, de facto, não de monumento, há necessidade de:

Há, naturalmente, riscos na instrumentalização da responsabilização para perseguições políticas.
Por isso as regras têm de ser claras, os procedimentos justos e as instituições imparciais. A
responsabilização legítima distingue-se da vingança partidária por ser baseada em provas,
processos transparentes e princípios de proporcionalidade.

Ao longo do tempo, a capacidade de uma democracia se corrigir, de apontar erros, sancionar
responsáveis e eleger alternativas competentes, é o seu maior trunfo. Se aceitarmos que governar
mal é apenas mais uma variação tolerável do sistema, estaremos a trair o propósito democrático.
Afinal, para que serve a democracia senão também para corrigir os erros dos maus, dos
incompetentes e dos irresponsáveis com poder?

No fim, a resposta depende de nós, da exigência cidadã, da coragem institucional e da maturidade
política para preferir o bem público ao conforto da complacência. Democracia que não pune a
incompetência nem corrige a má-fé deixa de merecer o nome. Que não nos falte, portanto, a
exigência, nem a capacidade de responsabilizar.

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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