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My Turn

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Por: Rosário Luz

Na última sessão parlamentar, o Vice-Primeiro-ministro, Olavo Correia, deixou claro em diversas intervenções que a pandemia Covid-19 desembocará numa severa recessão económica; e que o futuro exigirá enormes sacrifícios de todos os Cabo-verdianos – trabalhadores e empresas. De todos? Pelos vistos, de todos não; para alguns, a pandemia até alargou as oportunidades comerciais.

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Uma das principais notícias da semana passada foi a exposição, por uma publicação online.cv, de uma empresa de aplicativos informáticos que terá, alegadamente, ludibriado os processos legais de aquisições públicas e sido indevidamente contratada como fornecedora por um conjunto de serviços e empresas satélites do Estado. A base da acusação? A participação de um deputado da Maioria, alto executivo do partido, e de sua esposa, no capital da referida empresa. 

“O deputado visado defende que pratica a política com ‘nobreza e honestidade’; que nunca utilizou indevidamente a sua influência junto de decisores públicos para avançar interesses empresariais.”

No último ano, essa empresa foi selecionada para representar o sector das TIC.cv em feiras nacionais e internacionais, para além de ser destacada para um prémio de empreendedorismo local. O seu principal produto – um organizador de filas virtuais – tem sido glorificado por governantes e militantes, promovido à exaustão nas redes sociais pelo próprio deputado em questão e, na atual conjuntura sanitária, tem assumido particular visibilidade – para não falar em rentabilidade – como “the solution” para evitar filas físicas e aglomerações. 

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O deputado visado defende que pratica a política com “nobreza e honestidade”; que nunca utilizou indevidamente a sua influência junto de decisores públicos para avançar interesses empresariais; avisa que já constituiu advogado para sanar ofensas feitas à sua honra; e desafia os seus acusadores, tanto  políticos quanto mediáticos, a provar a ocorrência de tráfico ilícito de influência. 

Nunca é fácil provar esse tipo de contrafação; mas a prática histórica.cv desafia-nos a acreditar que, numa situação análoga, um membro da cúpula do partido no poder não tenha utilizado os seus contactos e a sua posição para beneficiar os seus interesses empresariais. Não por maldade, coitado; por necessidade; por imperativos de competitividade inerentes à estreiteza da economia nacional. Quando dizemos que a terra é pobre isso não significa apenas que muita gente vive na pobreza; significa também que é extremamente difícil satisfazer honestamente as nossas ambições de riqueza. Cabo Verde é um país onde não é fácil ter “vez”…

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Historicamente, no território que é hoje os Estados Unidos, a “vez” de cada um estava grandemente nas mãos de cada um. Um aventureiro com garra podia enriquecer num conjunto de sectores. Se não fosse negro, se estivesse disposto a dizimar a população nativa, a ocupar-lhe a terra, a enfrentar as agruras do clima e dar muito duro na labuta, poderia tornar-se um agricultor independente – ou até rico. Para além disso, sectores como o garimpo, a ferroviária e a especulação financeira, entre tantos outros, ofereceram aos aventureiros mais intrépidos excelentes oportunidades consecutivas de enriquecimento rápido, mais ou menos dentro da lei.

“Com a Independência, um sector novo e de alto retorno abriu-se perante o povo esfomeado de mobilidade económica e social: a política.”

Já aqui.cv, o aventureiro focado no enriquecimento nunca teve grande variedade de oportunidades. Sobre os limites apertados do nosso sector agrícola, tivemos cinco séculos de ensinamento; de resto, a Ribeira Grande de Santiago e o Porto Grande do Mindelo constituíram as duas únicas – e mui breves – janelas  favoráveis às ambições do capital e da força de trabalho.cv. Fora delas, até à Independência, a solução para quem aspirava exceder os ásperos limites materiais da terra era a emigração. 

Mas com a Independência, um sector novo e de alto retorno abriu-se perante o povo esfomeado de mobilidade económica e social: a política. Para além de uma cúpula dirigente, o Estado em rápida expansão necessitava de chefias para as suas novas instituições, de quadros para os seus novos serviços, e de uma massa crescente de delegados, supervisores, administrativos e condutores. Ambicionada por todos, a inclusão entre os beneficiados do sistema requeria um investimento em duas áreas fundamentais: nas habilitações necessárias para ser útil ao Estado; e na postura política adequada para ser desejável ao Estado.

No topo da pirâmide de beneficiados, a cúpula política vivia com relativo conforto; mas as expectativas materiais dos líderes da época eram bastante modestas, e as suas ambições eram cabalmente preenchidas pelo salário e privilégios inerentes a cada cargo. Em primeiro lugar, porque as benesses adquiridas com o posto de trabalho pareciam soberbas à luz do nosso histórico de miséria generalizada; em segundo lugar, porque a própria ideia de acumulação de capital era contrária à ideologia vigente. 

Mas, com a derrota do pensamento Marxista-Leninista e com o advento da liberalização económica, da televisão e da hiper-globalização que caracterizou a década de 1990, a ideologia reinante sofreu uma transmutação radical; e a nova classe dirigente – livre de restrições filosóficas e espicaçada pela introdução do consumismo no país –  passou a conceber a atividade política não apenas como uma fonte de privilégio salarial e relevância social, mas também como uma oportunidade de enriquecimento, via o açambarcamento de oportunidades empresariais. 

Qualquer empresário.cv que queira singrar honestamente, seja em que sector for, tem um caminho espinhoso pela frente. Para produzir, tem que lidar com a carência de crédito, com o custo de inputs importados, com as deficiências da força de trabalho, com a extorsão e a falta de visão da administração do Estado. Para colocar o produto, espera-lhe um mercado diminuto, descapitalizado e geograficamente fragmentado. 

“É por isso que, a cada vez que uma nova clique ascende ao poder, os seus membros podem ser ouvidos a cantar em uníssono: ‘t’s my turn, to reach and touch the sky.’ ” 

Tal como as perspectivas de emprego dos profissionais.cv na primeira República, as perspectivas de crescimento das empresas contemporâneas dependem grandemente da boa vontade do Estado – e da rede de contactos que o empresário mantém no seu seio. É o Estado que consegue remover os obstáculos e garantir o acesso ao limitadíssimo leque de oportunidades; e, tal como antigamente, o Estado só o faz de acordo com as suas conveniências políticas e corporativas. É por isso que, a cada vez que uma nova clique ascende ao poder, os seus membros podem ser ouvidos a cantar em uníssono: “It’s my turn, to reach and touch the sky. ” 

Gravada por Diana Ross em 1980, a canção “It’s My Turn” anuncia que a sua protagonista não continuará a viver uma vida menor; e celebra o advento da “sua vez” de viver como merece. É assim que raciocinam os nossos profissionais e aventureiros empresariais quando são politicamente empoderados por uma vitória eleitoral – e pelo consequente domínio dos recursos e das decisões do Estado: it’s my turn. My turn de facturar um troco a sério, de construir uma casa supimpa sem taxas de juros asfixiantes, de comprar um carro para mim e outro para a patroa, de comer em restaurantes finos e de fazer uma férias como se faz na televisão. Nha bex. Não é à toa que as acusações generalizadas de nepotismo e tráfico de influência perpassam a totalidade da lista de Governos da Nação. 

“O primeiro escândalo deste Governo aconteceu pouco tempo após a sua investidura, quando o Ministro das Finanças efectivou um aumento das taxas alfandegárias sobre a  importação de produtos lácteos.”

O primeiro escândalo deste Governo aconteceu pouco tempo após a sua investidura, quando o Ministro das Finanças efectivou um aumento das taxas alfandegárias sobre a  importação de produtos lácteos. Aos olhos do público, a medida foi cirurgicamente desenhada para beneficiar a empresa da qual Correia tinha sido administrador financeiro durante 10 anos – e da qual ele e a esposa são acionistas. O caso suscitou muito barulho popular, foi politicamente denunciado e até levado á atenção das autoridades judiciais; contudo, tal como é da praxe em situações análogas, o barulho foi rapidamente arquivado.

Desde então, a sociedade civil já questionou a idoneidade do Executivo num conjunto de decisões estruturantes para a economia nacional: no acordo com a concessionária do tráfego aéreo doméstico, na privatização da transportadora aérea nacional e nos termos da concessão do tráfego marítimo inter-ilhas, para citar apenas algumas. Os cidadãos propõem sistematicamente a criação de uma miriade de instituições de regulação, destinadas a erradicar tais atos de alegado favorecimento e corrupção. Mas não é por ser ilegal que o tráfico de narcóticos deixa de ser atrativo – principalmente quando o mercado de trabalho e de capitais é tão restrito que não oferece opções. Naturalmente, nas mesmas circunstâncias, não é por serem ilegais que as práticas de nepotismo e tráfico de influência desaparecerão da política nacional. 

 

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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8 Comentários

  1. Será ke somos verdadeiramente um estado de direito democrático?
    Se somos, como justificar situações como o aumento da taxa alfandegária de laticínios, concessão da ligação marítima e privatização dos TACV/TCV.

    As taxas trouxeram vantangens incalculaveis à empresa do sr. Ministro ke , acredita-se, de forma articulada lançou na produção desses produtos.
    O caso das ligações marítimas a empresa mãe compra um navio para alugar a cv, quando o governo diz ke o navio foi comprado por cv.
    Se, perante tudo isto, a única consequência são sucessivos inquéritos parlamentares que não têm qualquer consequência, pergunta-se, onde estão as instituições ke têm o dever de defender os direitos dos cidadãos?

    Santa paciência.

  2. Muito bom artigo!! Rosário ainda bem que te temos a ti para difundir, sem medo esses casos de corrupção e nepotismo. O nosso país precisa é de paz social e isso só se consegue com transparência e justiça.

  3. Pronto , ja temos a informação ,agora qq cidadão pode exigir em particular ,junto das associações civis ou Partido a quem entregou o voto eleitoral , q o facto com signos de corrupção seja levado a Justiça . Lutar contra corrupção e’ tarefa de todos ,medo? … não ! Estos factos são conhecidos em todo o pais ,certo Sr MF Olavo Correia ?

  4. BRAVO! Rosário Luz. Eu sou capaz de fazer uma prece para teres sempre saúde, força e motivação para publicar as tuas fundadas razões sobre as sucessivas governações nesta nossa CV que vai à deriva; mas ainda dá para acreditar que, como a ÁGUA repousa ao entrar em casa, assim na deriva nós havemos de entrar algum dia pela porta de acesso ao BEM GOVERNAR.

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