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A Guerreira Kadidja desvenda o Rastro da Quimera – Por um mundo sem fronteiras (fasc. 6).

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Por: Alcides Lopes

Ela será uma criança prematura.” Sussurrou a voz trêmula, por entre os lábios finos do albino. “Será precoce na vida”. A mensagem escapava do capuz pesado e sujo tal qual uma aragem abafante que pendia do rosto lívido, quase fantasmagórico, do oráculo. O seu vulto esguio e encurvado arrastava-se pelo grande disco de pedra basáltica do altar rapinante das estepes euroasiáticas. E mais uma vez, deixou escapar, infecta de hálito pútrido e tísico, a voz das memórias frias e espinhosas, propícias à vida nómada, “Por Enlil, vosso regente cósmico, espero que ela não fraqueje.” 

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Que mais podes revelar-me?” Iterou com gravidade serena e impactante, Kaffa, o sumério de Nippur. “Que mais?” Reiterou com mais energia desta vez.

Navegou para o Norte através do Mar Negro, enfrentou hordas de carniceiros e escalou montanhas, atravessou cordilheiras intransponíveis. No início da jornada fez-se acompanhar de dromedários e, em seguida, de cavalos. Segundo os costumes milenares do seu povo, Kaffa se comunica com uma multiplicidade de forças através da canalização e o esquadrinhamento do vento, seus fluxos e convulsões. Mas, para aceder à região das Crateras dos Oráculos, o retiro e o condicionamento físico tinham sido inevitáveis, até incontornáveis.

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Kaffa de Nippur é um guerreiro ancestral, pertencente aos tempos recolhidos pelas areias da antiguidade. Os tempos imemoriais do Templo Branco de Ziggurat em Warka, fundamento das estruturas piramidais originais. Embora não tenha nascido em nenhuma das principais regiões da Suméria, suas façanhas eram amplamente conhecidas e celebradas em Eridu, Bad-Tibira, Larak, Sippar e Shuruppak, as cinco maiores cidades da era anterior ao grande dilúvio. O espírito de Kaffa penetrou as barreiras cósmicas e acompanha até hoje o destino de Kadidja. Um guardião invisível aos olhos da jovem guerreira. Um mentor paciente, sagaz e um espírito tão velho quanto o dela.

Ao despertar-se do sonho matinal, Kadidja ainda podia ouvir o eco das vozes sobrepostas de Eirïk, o oráculo, e Kaffa: “… um espírito tão velho quanto o dela, nyamolo”. O sonho era recorrente e revigorante. Ela gostava de acordar com a sensação da presença de Kaffa. Tranquilizava-a, sempre. Tal como a presença de um pai. Imaginava. Kadidja não conheceu o pai. Este havia morrido nas grandes batalhas libertárias, meses antes dela nascer. Martirizou-se para salvar um galpão cheio de crianças e meninas adolescentes enclausuradas. Eram mantidas cativas porque as suas mãos pequenas e delicadas eram necessárias para a separação e o manuseio de jóias e gemas muito delicadas.  Ele não teve escolha. Caso contrário, nunca mais teria coragem para olhar a filha nos olhos. Ela sabia disso. Era a sua conexão espiritual.

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06:15 [Lagos-Nigéria, dias atuais]. Pulou da cama e bebeu pausadamente um copo de água fria. Deitou-se de bruços no soalho de madeira e, de uma levada, empurrou trinta marinheiros, ou melhor, flexões de braço e peitoral. De manhã, Kadidja costuma se exercitar por vinte minutos: barras, flexões de perna, abdominais e alongamentos. É apenas um condicionamento antes de encarar um banho frio e outras necessidades fisiológicas. Hoje, no café da manhã, ela comeu uma fatia de inhame e meia banana da terra cozidas ao vapor. Ingeriu um pouco de suco de laranja natural e seguiu pedalando de bike para o Departamento das Humanidades do Centro de Estudos Científicos Interplanetários (DHICSS).

Na rota para a faculdade, pensava sobre o recente e brutal assassinato do presidente do Haiti e da luta pela vida travada pela ex-primeira dama, agora viúva, num quarto solitário de tratamento intensivo do hospital do exército. De alguma forma, este episódio aberrante e aparentemente deslocado, envolvendo mercenários colombianos e norte-americanos, carece de esclarecimentos. Num flash, Kadidja recordou do catastrófico terremoto da terça-feira, dia 12 de janeiro de 2010. Na época frequentava dois doutoramentos em simultâneo: antropologia forense na Universidade de Chicago e história universal em Harvard. 

Nas terças de manhã frequentava um curso sobre a revolução haitiana enquanto um não-evento, ministrado por um professor estadunidense, nascido em Port Prince, Mr. Leonard. Naqueles dias, após a catástrofe causada pelo terremoto, o qual vitimou de imediato mais de uma centena de milhares de pessoas, todas as atenções, voltaram-se para o seminário do Dr. Leonard Jafari. Ele era um historiador brilhante. Kadidja soube que faleceu no dia em que se comemora a independência do arquipélago, dois anos depois.

Durante a aula do dia 2 de março de 2010, os ânimos brotaram à flor da pele. Uma jovem negra, visivelmente tensa, de pé no centro do auditório, falava e gesticulava. “Mr. Jafari, você nos obriga a ler todos estes acadêmicos brancos. O que eles sabem sobre escravidão? Onde estavam eles quando nós nos jogávamos ao mar? Quando escolhemos a morte sobre a miséria e matamos os nossos anjinhos para poupá-los de uma vida de sofrimento e judiação?” 

Kadidja percebia como aquela situação causava receios ao professor doutor e deixava-o desconfortável. Contudo, não restam dúvidas que a moça estava equivocada. A lista bibliográfica do programa da disciplina não continha apenas autores brancos e, certamente, ela nunca tinha pulado de um navio. A cena, um tanto ridícula, retratava um professor incompreendido e uma aluna irritada. Nesta situação Kadidja ponderava, “como podemos lidar com a raiva?”

Muito provavelmente, o curso do Mr. Jafari não fazia parte das top priorities da sua vida profissional. Ele parecia um homem com objetivos bem ambiciosos e talvez o curso fosse uma forma de ganhar uma grana extra e assim financiar a luta pelos seus sonhos. Por sua vez, a julgar pela aparência e posses do acadêmico, poderia ser que ele estivesse retribuindo algum favor: um djunta mon. Entretanto, parecia deslocado quando reagiu aos protestos da aluna que, por sua vez, frequentava o curso apenas para distrair-se da carga horária de estudos do curso de medicina alienígena ou de direito tributário na Harvard Trans Planetary University. 

O curso chamava-se “A experiência Núbia  em Marte”. Este título havia atraído os poucos estudantes núbios da universidade e alguns terráqueos caucasianos da plataforma Airemus. Somente os mais corajosos. Kadidja tinha consciência que as expectativas colocadas no curso não ultrapassaram, de forma nenhuma, as habilidades acadêmicas de Mr. Jafari. Contudo, toda a turma exigia muito mais do que ele podia oferecer. Aquelas pessoas queriam uma vida que nenhuma narrativa poderia proporcionar, nem mesmo as nossas melhores ficções. 

As pessoas que se encontravam naquele seminário almejavam uma vida que somente elas mesmas poderiam construir, tanto ali e naquele momento quanto aqui e agora, no melhor lugar do mundo. Com a excepção de que elas ainda não tinham essa consciência. Estas pessoas, apercebe Kadidja, estão muito próximas aos desdobramentos da história para percebê-la de modo diferente. Mas, mesmo assim, não se pode dizer que não aprenderam alguma coisa significativa.

Kadidja percebia que o professor tinha se esforçado para que eles aprendessem que a escravidão não tinha acontecido somente nos novos mundos e planetas intermediários. Ele queria que soubessem mais sobre a complexidade da conexão africana na história dos mundos interplanetários. Ele queria que compreendessem que a jornada tinha sido muito mais tortuosa do que podiam imaginar. Que a monopolização quase milenar da Euro-América sobre ambos o racismo e a negritude era em si mesma um plot racista.

A autora do protesto repentino ‘quebrou a maldição’, como parte do processo de ser aceita em Harvard, como aspirante à médica ou advogada. O professor, embora brilhante, não parecia ser um especialista em lidar com as necessidades psicológicas da moça, constata Kadidja. Isto a tranquilizava porque percebia o quanto todos eles eram apenas indivíduos tentando criativamente, cada um à seu modo, fazer o seu melhor para resolver os seus próprios problemas. Cada uma destas pessoas enfrentando as histórias que escolheram para si, ao mesmo tempo, cada uma delas lutando contra um oblívio imposto.

Mais de dez anos depois, enquanto Kadidja, agora sniper e antropóloga forense, atua em Lagos na formação de grupos táticos femininos de defesa, com vistas a enfrentar e desmantelar o sistema de sequestro de meninas em massa perpetrado por rebeldes da Boko Haram na Nigéria, outra aluna aparentando a mesma idade da anterior, interveio e  a interrompeu durante a aula. “Eu estou cansada” ela disse, “de ouvir tanto sobre este assunto da escravidão. Podemos escutar sobre a história dos milionários negros?” Kadidja, surpresa pela natureza da pergunta, interrogou-se em silêncio, “Será que os tempos mudaram tão depressa assim, ou o abismo, entre as questões da moça na aula do Dr. Jafari e as da moça nigeriana tímida na minha frente agora, refletia apenas reflexões de diferenças de classe?

Kadidja lembra-se da moça de há dez anos atrás. De como ela se segurava tão firmemente ao argumento do navio negreiro. Agora compreendia porque ela queria pular do navio, enquanto se preparava para a escola de medicina ou advocacia em Harvard, ou em qualquer outra universidade. Guardiã do futuro de uma raça aprisionada cujos filhos homens não vivem tempo suficiente para ter um passado. Aquela aluna de há dez anos precisava desta narrativa de resistência. Nietzsche estava equivocado: não se trata de bagagem extra, mas de uma bagagem necessária para a jornada, e afinal das contas, ponderava Kadidja, “Quem sou eu para decidir qual passado é o melhor ou o pior para as pessoas? Quem precisa decidir entre um bando de milionários falsos, ou a medalha de Santo Henrique e as ruínas do seu palácio decrépito?

Kadidja sentiu vontade de mobilizar a ordem do tempo e colocar ambas as jovens mulheres na mesma sala e pensou consigo mesma. “Teríamos partilhado histórias que ainda não estão nos arquivos. Teríamos lido juntas a história de Ntozake Shange sobre uma moça mestiça que sonhava com Toussaint Louverture e a revolução que o mundo preferiu esquecer. Então, teríamos retornado juntas aos diários e registros dos capitães dignitários e dos morgados e seus terratenentes, à história econométrica e a sua indústria de estatísticas e nenhuma de nós sentiria medo dos números. Os factos brutos não assustam mais do que o escuro. Você pode brincar com eles se estiver entre pessoas amigas. Eles são assustadores apenas se você os interpreta sozinha.”

Todas precisamos de histórias que nenhum livro pode contar, mas elas também não se encontram nas salas de aula. Pelo menos não nas salas de aula de história. Elas estão nas lições que aprendemos em casa, na poesia e nas brincadeiras e jogos de criança. Naquilo que resta da história quando fechamos o livro de História recheado de factos verificáveis. Caso contrário, por quais motivos uma mulher negra nascida e crescida no país mais rico do mundo, durante o último período do século XX, teria mais medo de falar sobre a escravidão do que um planter no Saint-Domingue colonial apenas alguns dias antes de eclodir as piores revoltas abolicionistas do seu tempo?

Kadidja não tinha dúvidas de que essa era uma história para as jovens e mulheres negras que ainda têm medo do escuro. Embora elas não estejam mais sozinhas, esta história pode mostrá-las porque elas ainda acreditam que estão. Ela já passou por estas provações. Ter que compreender e aprender a desvendar os propósitos das armadilhas da quimera irascível. 

Afinal, Kadidja sabe perfeitamente que o mundo ocidental foi criado algures nos inícios do século XVI em meio a uma onda global de transformações materiais e simbólicas. As expulsões definitivas dos muçulmanos da Europa, as tão propaladas viagens de exploração ou descobrimentos, os primeiros desenvolvimentos do colonialismo mercantil, e a maturação do estado absolutista estabeleceram as condições para que os governantes e os mercadores do mundo cristão conquistassem o cenário da Europa e do resto do mundo.   

Este itinerário histórico era político como invoca – Colombo, Magellan, Charles V, os Hapsburgs e os momentos de viragem que estabeleceram o seu ritmo – a reconquista de Castela e de Aragão, as leis dos Burgos, a transferência do poder papal dos Bórgias para os Médicis. Estes desenvolvimentos políticos concorrem com a emergência de uma nova ordem simbólica. A invenção das Américas (com Waldseemuller, Vespucci e Balboa), a simultânea invenção da Europa, a divisão do meditarrêno por uma linha imaginária traçada entre o sul de Cádiz e o norte de Constantinopla, a ocidentalização do cristianismo, e a invenção do passado greco-romano para a Europa ocidental foram todas etapas de um processo através do qual a Europa se transformou no Ocidente. 

O que nós chamamos de Renascimento é, na realidade, mais uma invenção em seu  direito legítimo, do que um renascimento propriamente dito. Aquele fenômeno foi inaugurado a partir de uma quantidade de questões filosóficas para as quais os políticos, os teólogos, os artistas e os soldados providenciaram respostas concretas e abstratas. O que é a beleza? O que á a ordem? O que é o Estado? Mas, acima de tudo: O que é humano?

Kadidja pondera!

(a continuar…)

Em memória ao saudoso antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot (1949-2012).Leitura de base Silencing the Past: Power and the Production of History (Trouillot, 1995).

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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