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Por: Rosário Luz

No início do ano, quando a China atravessava o pico do seu surto de Covid-19, analistas pelo mundo inteiro questionaram a sobrevivência do regime comunista – se a gestão da epidemia fosse deficiente. Aparentemente, não foi; com um misto de medidas de contenção draconianas e um controlo férreo sobre a informação, o regime parece ter contido o chamado primeiro surto com relativo sucesso. 

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Contrariamente, no Ocidente,  a pandemia está a provocar convulsões políticas por todo o lado: viabilizou a dissolução do parlamento na Hungria; demonstrou à Europa os custos do desinvestimento público na saúde; invadiu e ocupou os Estados Unidos – matando a sua população negra em primeiro lugar, obviamente; e impôs um final abrupto à euforia Bolsonarista no Brasil.

Aqui na Tapadinha, numa das primeiras notícias sobre a matéria, o PM afirmou que estávamos preparadérrimos para qualquer contingência. Naturalmente, o povo riu-se e viu que não. Pouco tempo depois, era o Vice-PM a declarar no Parlamento da República que ninguém no Mundo estava preparado; e que os efeitos da pandemia sobre o país serão desastrosos. Serão, de facto. Mas os desastres têm graus; e a extensão do desastre Covid-19.cv dependerá fundamentalmente de dois factores: da capacidade de gestão do Governo e do bom senso dos cidadãos. 

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Se o povo falhar nas suas responsabilidades, poderá ser devastado pela infecção. Até agora, apesar do relaxamento de muitos indivíduos e instituições.cv, a verdade é que alguma coisa – seja a juventude da população, o clima tropical ou o próprio Omulu – tem-nos protegido dos cenários nefastos que se previam, já neste período, para os frágeis sistemas de saúde da África subsahariana.

Mas também é verdade que a maioria dos Cabo-verdianos não precisa de adoecer para sofrer. E no que respeita as patologias económicas causadas pelo vírus SARS-CoV-2, Cabo Verde apresenta três factores de altíssimo risco: o grau de informalidade da economia; a dependência do emprego no turismo; e a dependência quase total de consumidores e produtores nas importações. 

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As economias informais sustentam existências precárias: sem contratos ou garantias; sem proteção social; e sem poupanças. Os trabalhadores e empreendedores informais vivem dos fluxos do dia-a-dia; se não os puderem realizar, estão quilhados. Os sucessivos governos de Cabo Verde não regularam – e até promoveram – o trabalho informal, porque retirava-lhes a pressão sobre a sempre problemática oferta de emprego. 

Mas as medidas de contenção exigidas pela atual crise sanitária expuseram rapidamente os perigos dessa solução; e ilustraram a dependência desta grande fatia da força de trabalho.cv na benevolência do Estado – pois a sua labuta diária não lhe granjeia o direito a qualquer proteção durante a suspensão da sua atividade. Para além disso, pós-lockdown, durante a implementação  do chamado “novo normal”, as medidas de distanciamento social e as diretrizes reservadas para os trabalhadores informais poderão ser extremamente lesivas do tipo de atividade. Que impactos terão sobre suas economias domésticas?  

Um segundo risco para o agravamento do quadro Covid-19.cv é a dependência da economia e do emprego no sector do turismo. Ao longo de toda a nossa História, a logística foi o nosso único real bem de exportação. O território.cv deve as poucas conjunturas de crescimento que conheceu a uma oferta de serviços logísticos: o comércio triangular na Ribeira Grande de Santiago; o negócio do carvão no Porto Grande do Mindelo; os serviços aeroportuários na ilha do Sal; e, presentemente, o turismo por todo o país. 

A cada vez que a economia de exportação logística falhou, Cabo Verde mergulhou na recessão. A cada vez que somos obrigados a contar apenas com recursos autóctones,  morremos de fome. O corolário é que a nossa economia sobrevive num contexto de globalização. Visto que a primeira vítima do SARS-CoV-2 é a própria globalização – o colapso da mobilidade e a queda das trocas internacionais de bens e serviços – podemos prever que o impacto sobre as empresas, o emprego e as receitas do Estado.cv será sísmico. 

Quanto à nossa dependência estrutural de importações…. Cabo Verde produz pouco mais do que algumas espigas de milho e uns dois pés de cana. Pela mesma razão que os serviços logísticos são a única coisa que temos para exportar, o nosso mercado de consumo, a nossa indústria incipiente e todos os nossos serviços – nomeadamente os de saúde – dependem absolutamente da importação. 

Sem investimento externo e sem a exportação de serviços turísticos e aeroportuários, a nossa capacidade de importação ver-se-á seriamente limitada. Se a dinâmica for acompanhada por quebras significativas de produtividade nos nossos centros de abastecimento alimentar e industrial – e, previsivelmente, por flutuações de preço igualmente significativas – o impacto sobre os consumidores e fornecedores.cv será devastador.

Foi por isso que, para além de assumir que ninguém estava preparado para enfrentar esta confusão, o nosso Vice-PM também nos comunicou, pedagogicamente, que teremos que “aprender a viver com menos”. É verdade; mas “menos” não é um conceito absoluto. Para alguns, “menos” incide sobre viagens e automóveis; para outros, sobre o já insuficiente pão de cada dia. Como é que a sociedade.cv – famílias sem sustento e uma juventude encurralada – lidará com o seu “menos”? Como lidará com a comparação inevitavelmente traumática entre o seu “menos” e o da minoria privilegiada? Será de forma pacífica e pachorrenta? Ou será de forma violenta? 

Na Boa Vista, as autoridades tiveram dificuldade em conter uma desordem provocada por duas centenas de trabalhadores hoteleiros irritados com as condições da sua contenção. Sendo assim, de que ferramentas dispõe o Estado.cv para gerir as reivindicações previsivelmente mais assertivas de uma população urbana densa, depauperada pelo lockdown na cidade da Praia? E, posteriormente, com que estratégias minimizará as convulsões sociais – a criminalidade, por exemplo – causadas pelo agravamento radical do desemprego, a nível nacional

O Estado.cv – eterno pedinte, altamente endividado e com as suas parcas receitas igualmente comprometidas pela pandemia – ver-se-á grego para responder à enorme demanda de gerência institucional e assistência social despoletada pela conjuntura. A competência e visão do poder político seriam fundamentais para controlar os estragos provocados pela pandemia à economia e ao tecido social.cv. Infelizmente, um aumento de pressão sobre a governação não implica uma aquisição equivalente de competência e visão. 

A tendência generalizada da classe política e executiva.cv tem sido governar o país segundo os interesses imediatos das suas pessoas e corporações. O Poder.cv não estuda; não se capacita; entrega sistematicamente chefias estratégicas a cabos eleitorais sem nenhuma competência para o cargo; e, nas suas inúmeras deslocações ao exterior, ao serviço da Nação, em vez de observar e aprender, vai ao shopping. Ao longo de décadas, o efeito cumulativo desta ideologia política sobre a administração do Estado foi catastrófico; e resultou na sua incapacidade de responder eficientemente a qualquer crise – mormente desta dimensão e complexidade.  

Na sequência da crise financeira de 2008, José Maria Neves garantiu demagogicamente aos eleitores que Cabo Verde estava “blindado” contra os seus efeitos. Mas rapidamente – e até ao final do seu terceiro mandato em 2016 – passou utilizar essa mesma crise para justificar a estagnação económica que se instalou no país. No sector turístico, especificamente, é verdade que o colapso financeiro.eu ditou a paragem de um conjunto de investimentos em curso. Mas com a Primavera Árabe, o destino.cv aumentou de competitividade e a procura turística continuou sólida. Aliás, a contribuição do sector para o PIB demonstra-o. O que não aconteceu foi a reflexão desse crescimento sobre o desenvolvimento do país e o bem-estar dos trabalhadores; facto que se deveu muito mais à falta de visão económica do Estado do que ao fall out da crise europeia.

O povo.cv – apesar de muito mais fatigado do que há umas eleições atrás – ainda assim não será doido de culpar o Governo pelas consequências da pandemia; mas dificilmente permitirá que, desta vez, o poder político utilize a adversidade para justificar a má gestão. E certamente julgá-lo-á nas urnas, nas próximas eleições; não pelo desastre, mas pela eficiência ou ineficiência na sua contenção.   

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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9 Comentários

  1. É de admirar que uma Senhora com esta capacidade de avaliação do que se passa em Cabo Verde, não esteja a liderar algum ramo nuclear da actividade política, económica e social do País. Nosso País que, em matéria de líderes, a penúria é tão gritante como é crónica a nossa dependência estrutural de importações.

  2. Concordo com o Sr , ate’ axo q a CMSV fica pequena pra ela ,Cv necessita de pessoa com visão amplia para liderar o pais .Ela tem demostrado amplia capacidade de analises ,como ser seu meta sacar do marasmo CV .

  3. Pois é Sr. Augusto, os problemas e deficiências de CV a vários níveis, já há muito tempo que foram identificados. Sem desprimor do trabalho de análise da articulista, o que realmente falta no nosso país é a capacidade de visão estratégica, e isso é apanágio dos verdadeiro estadista, ou se quisermos, dos governantes e não de simples políticos cujo alcance da sua actuação não vai para além da duração dos ciclos eleitorais. Resumidamente, a identificação e levantamento dos problemas que o país padece, é um dado adquirido, o que falta é a procura e implementação de soluções inteligentes e viáveis. Cordialmente,

  4. Nem com esta Pandemia o SNS investe na criação das unidades de terapias intensivas Pediátricas e de adultos nos Hospitais , pressionado pelas experiências noutros países compro maquinas de ventilação para assistir doentes graves ,mas não os profissionais especializados , veja a preocupação expressada pelos médicos q assistiram a doente COVID19 no HBS , com a “falta de pessoal para ventilar a doente” , caso a evolução obrigara entubar e acoplar-lhe a maquina de ventilação ,que, não e’ o mm q oxigenoterapia . Esta crises e’ SANITÁRIA que voltou econômica nas mãos dos políticos .

  5. A meu ver, trata-se de um artigo com uma visão inteligente, mensagem esclarecedora, conteudo crítico e postura política relativamente isenta, sobretudo para as nossas lides cabo-verdianas. Portanto, os meus parabéns à autora deste excelente artigo de opinião.

  6. Boa análise! A analsita está de parabéns! Todavia, uma coisa é escrever sobre política, criticar de forma mais severa as práticas políticas dos políticos, outra coisa é convencer o eleitorado, ganhar as eleições e mostar trabalho, com base no pensamento crítico antes formulado. Não é tarefa fácil para quem sempre esteve a criticar, a apontar dedidnhos.
    Às vezes, sinto-me que há muita gente cheia de vontade de fazer coisas boas neste País, mas o problema maior é conseguir eliminar os chamados vícios entre a vontade declarada e a vontade real. Conheci muita boa gente (aqui e fora das nossas latitudes) que criticava, criticava, avançava ideias interessantes e depois de estar lá “em cima”, perdeu o pensamento crítico, a cabeça. A atual Secretária de Estado da Cultura do Brasil, já mostrou que uma coisa é fazer a novela com sucessos, outra coisa é fazer a política activa, com responsabilidade na língua e na acção.
    Por outro lado, é um risco desmedido, a meu ver, tentar nas analises políticas, nivelar momentos e políticos com medidas iguais para tempos diferentes. Por exemplo, UCS e JMN ainda é cedo para estar a fazer comparações. Ou então as comparações teriam de ser feitas para um período X (p.e. primeiro ano de mandato) e com todos as suas características económicas, sociais, politicas (internas e externas). Fazer uma radiografia de C.V. em 2001/2004, 2016/2019. Alguém já dizia “que não há erro mais simplista de cometer do que julgar a história pelos padrões éticos contemporâneos.”

  7. A camara de SV precisa duma nova ZAU (mulher), e ninguém mais capacitada como esta senhora Rosário, competente, moderna e sem papas na língua.

  8. A capacidade de argumentar de Rosário da Luz é no mínimo impressionante. Ela faz-me lembrar muito, Ana Drago, comentarista da RTP3. Como é possível alguém, com esta capacidade, com uma visão além do normal, não esteja a frente? Não entendo mesmo. É um dos grandes cérebros, que temos neste pequeno país. É de uma tamanha injustiça tremenda, se ela algum dia não aparecer a dirigir ou liderar algo de tão importante nesta terra.

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