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As problemáticas do ambientalismo dos pobres – Diários do Antropoceno subdesenvolvido

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A ilha de Atlantis, de acordo com Os Diálogos de Timaeus de Locri conhecidos através dos textos clássicos de Platão – o grego, 360 a. C. – desapareceu completa e repentinamente nas águas azuis do oceano, “num único dia de desfortuna”. 

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Por Alcides J. D. Lopes (PhD).

Os eventos climáticos e as manchetes que ressuscitam os debates sobre os problemas urgentes relativos ao meio ambiente não são inteiramente novos. Antes, poderíamos afirmar que estes debates ressuscitam “os velhos esqueletos escondidos nos armários”. Aqueles esqueletos remanescentes dos homens obcecados com “o fincar da bandeira” nas paragens por onde se aventuram, na interminável busca da fortuna pelas imensuráveis pradarias e vales do Novo Mundo. Seja pelo Velho ou Novo mundos, as personalidades obcecadas pela aparência do divino proliferam e, se atentarmos à leitura de Ashis Nandy, as suas condutas desviantes os transformam em autênticos bandit kings.

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O içamento das bandeiras sempre esteve associado aos cumes das colinas, montanhas ou torres. Toda aquela sensação de poder proporcionada pelo manejo da adriça é efêmera, especialmente, se a pessoa e o símbolo não estão unidos por um sentimento de pertença e de sustentabilidade social. Contudo, o que acontece quando se inverte a própria simbologia do içamento da bandeira que se eleva aos céus gracejando para a abóbada celeste ao gosto do vento? E se, em vez de fincar bandeira nas montanhas, ou mesmo na Lua ou em Marte, fincarmos bandeira no fundo dos oceanos? 

Certamente, não devemos ficar surpresos quando alguém nos informar que tal coisa já existe. Sim, com certeza existe. O presidente das Maldivas, Mohamed Nasheed, realizou uma reunião oficial de gabinete sob condições extraordinariamente úmidas: a reunião foi realizada num ambiente subaquático. O evento aconteceu pouco tempo antes da realização do Copenhagen Climate Summit em 2009. Toda a encenação esdrúxula teve um propósito, e o objetivo era realizar um protesto criativo, que chocasse e chamasse a atenção do mundo para situações que as Maldivas já enfrentavam de forma intensiva, há mais de dez anos, e para as quais ainda estamos despreparados porque, justamente, nem aquele episódio de espetáculo presidencial foi capaz de nos sensibilizar como habitantes de um planeta em comum.

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As Maldivas, ilhas localizadas no Pacífico, enfrentam uma ameaça de engolfamento devido ao crescente aumento do nível médio das águas do mar. Evidentemente, o aquecimento dos oceanos não é um fenômeno que podemos captar num cenário dramático, mas trata-se de um fenômeno violento e lento, que embora seja percebido com certa velocidade em termos geológicos, nunca se compara aos estragos causados por um tsunami, por exemplo. Ou seja, não é espetacular o suficiente para aparecer no noticiário das oito, mas mesmo assim, o aquecimento global bate literalmente às portas.

As ocorrências de inundação nas Maldivas são crónicas. Neste sentido, no esforço de sensibilizar e fazer emergir um sentimento de urgência com relação a esta crise incremental, o presidente das Maldivas, mandou preparar um gabinete no fundo do mar no dia 17 de outubro de 2009, todos os participantes estavam em fatos de mergulho. O presidente e os ministros se reuniram em torno de uma mesa ancorada no leito do oceano, com a bandeira das Maldivas fincada atrás deles. Eles, os políticos, com suas máscaras e garrafas de oxigênio soltavam bolinhas de ar que deixavam um rastro agourento. Durante a cerimônia subaquática, o Presidente Nasheed promulgou a lei que compromete a nação a zerar as emissões de carbono em 10 anos.

Como podemos deduzir nos últimos anos, a partir dos recentes eventos catastróficos pelo mundo todo, e das atuais manifestações dos jovens na Europa, nada do que foi prometido em 2009 aconteceu. Na verdade, Greta Thunberg acusou os líderes mundiais de Blá Blá Blá, com uma legitimidade inabalável, e reafirma que há mais de 40 anos falham sistematicamente com as populações mais carentes e as gerações futuras. Por sua vez, a ugandense Evelyn Acham não tem reservas em declarar que afinal chegou a hora do mundo escutar o que os africanos têm a dizer sobre as urgências ambientais do planeta.

É deveras salutar, ver a aderência energética da população jovem, proveniente de diversas partes do mundo, que marcou presença e demandou exigências de uma agenda que denuncia a COP 26 como uma fraude global. Entretanto, é importante estarmos abertos à grande quantidade de informações disposta [ocultada] em relatórios que denunciam a inospitalidade erosiva das relações e atividades empreendidas pelas forças inefáveis que controlam o mundo do hydrocarbon. Falo de forças genocidas. Refiro-me a todas as fealdades inomináveis que acompanham a beleza esplendorosa do século XX e os seus impérios coloniais travestidos de repúblicas.

Na década de 1990, mesmo a Greenpeace não estava preparada para escutar, quiçá aceitar um escritor ativista ambiental africano. Tal foi o caso de desfortuna do ativista nigeriano originário do povo Ogoni, considerado uma micro minoria, pois na época a população era de 500.000 pessoas

Dos episódios mais conhecidos e contestados, do início do século XX, como o genocídio dos harare da Namíbia, do holocausto que se abateu sobre as populações tradicionais e das forças de trabalho operárias compulsoriamente deslocadas nos tempos do Congo Free State e as violações de todos os tipos cometidos por Leopold da Bélgica, das atrocidades dos portugueses em Moçambique e Angola, desde o final do século XIX e, na Guiné, de 1912 em diante. Todas estas intervenções violentas do colonialismo causaram traumas sistemáticos durante as décadas de 1920 a 1970, às vezes difíceis de recuperar, por parte da fortaleza dos espíritos, das tradições de resiliência permeadas por milênios de reverência entre gerações.

Na década de 1990, mesmo a Greenpeace, não estava preparada para escutar, quiçá aceitar um escritor ativista ambiental africano. Tal foi o caso de desfortuna do ativista nigeriano originário do povo Ogoni, considerado uma micro minoria, pois na época a população era de 500.000 pessoas, a qual repentinamente se viu privada de exercer as duas atividades mais importantes para sua subsistência no Delta no Rio Níger: a agricultura e a pesca. Os estragos causados pelo derramamento sistemático de óleo no Delta do Níger, segundo Rob Nixon, equivale a um derrame da dimensão da Exxon-Valdez (1989) durante um período de meio século. E tudo isso, permeado por uma lógica que leva à noção de que “a poluição persegue os pobres” enquanto nos relembra da “divisão internacional da natureza”. 

O ponto de vista do líder estudantil Keniano Wycliffe Mwebi reivindica “o direito moral de defender o meio ambiente contra a apropriação corrupta de terras.” Esta perspectiva remete-nos igualmente ao trabalho do escritor ativista ambiental nigeriano [Ogoni] Ken Saro-Wiwa, à sua conscientização de um testemunho coletivo do trauma emergente e a consequente mobilização em torno do problema. Na sua trajetória, Saro-Wiwa enfrentou extrema dificuldade em conseguir audiência nos EUA e Europa. Quando ele apelou ao Greenpeace pela primeira vez, os representantes disseram-no que não trabalhavam com a região. Que a África estava além do seu mapa ambiental. Por onde ele fosse, Saro-Wiwa era tratado como uma anomalia incompreensível: um escritor africano que se pretende ambientalista? E, ainda por cima, afirmando que os direitos humanos do seu povo estavam sendo violentados por um etnocídio ambiental? Parte do seu problema em ganhar atenção, uma audiência, para os Ogoni não era apenas econômica e política. Citando Rob Nixon, era também um problema imaginativo. 

O ativista nigeriano fez campanha por justiça ambiental. Mas também fez campanha, efetivamente, contra o paradigma centro-periferia. Ele enfrentou não apenas o racismo ambiental, mas também formas preconceituosas de imaginação geográfica. Da mesma forma como, para muitos intelectuais norte americanos, uma nação como a Ogoniland é inconcebível, curiosamente também é, muitas vezes, a ideia de sustentabilidade de um arquipélago quasi desertificado à deriva no Atlântico. 

No mês de outubro de 1995, o New York Times Sunday Magazine celebrava numa publicação o compromisso estabelecido entre os estudos literários críticos, as humanidades ambientais e os estudos pós-coloniais. Na arrojada reportagem assinada por Jay Parini, todos os vinte e cinco autores eram americanos. Nenhum pertencia a além fronteiras. Rob Nixon lembra deste episódio com certo ressentimento. Pois, segundo ele, duas semanas após a publicação do New York Times, Saro-Wiwa foi executado pelo regime militar Abacha na Nigéria. O evento certamente o consagrou como o mártir ambiental africano de maior visibilidade.

Mas porquê mencionei este episódio?

Recordemos as reivindicações da jovem ambientalista ugandense, Evelyn Acham. Reflitamos sobre a invisibilização e silenciamento de Ken Saro-Wiwa enquanto um escritor – um novelista, poeta, memorialista e ensaísta – que morreu lutando contra a ruína do seu povo, os Ogoni, cujas terras cultiváveis e águas piscatórias estavam sendo sequestradas por conglomerados europeus e americanos em conspiração com o regime despótico africano. 

Precisamos ter em conta que é necessário evitar desfortúnios como foi o de Ken Saro-Wiwa por não encontrar seu devido lugar no cânone da literatura ambiental ainda em vida, principalmente por ter empreendido uma longa jornada de luta contra o que ele cunhou de “genocídio ecológico”. Precisamos perguntar se esta negação ou desconsideração foi pelo fato de ele ser um africano. Precisamos compreender que embora os seus escritos não referenciam Thoureau nem ao agrarianismo jeffersoniano, o saudoso Ken Saro-Wiwa animava a sua escrita através das frágeis relações entre etnicidade, poluição e direitos humanos e pelas relações igualmente frágeis entre o local, o nacional e o global.

Não esqueçamos que os direitos humanos são indissociáveis da justiça ambiental, quando se trata de uma comunidade marginalizada que se desdobra de acordo com as exigências de uma crise mais ampla na responsabilidade transnacional. Precisamos ter conhecimento que o ponto de vista do Pentágono aconselha a sociedade americana a se defender contra a invasão de milhões de refugiados climáticos e outras catástrofes. 

As metrópoles que constituem as margens do Atlântico também estão ameaçadas pelas inundações em consequência de 200 anos de experiências proporcionadas pela parcela maioritariamente rica e branca do capitalismo hidrocarbônico globalizado. 

Texto de apoio:

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[Epilogue] Slow Violence and the Environmentalism of the Poor. Harvard University Press. Rob Nixon, 2011.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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