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Opinião
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Quem ainda está vivo, amanhece

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Por Alcides Lopes, PhD.

Estive ausente, nem lembrei-me de enviar mantenhas. 

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Se as calosidades nas mãos das nossas preciosas rabidantes, das nossas preciosas famílias de agricultores, pecuaristas e pescadores são vestígios do trabalho duro e cansado, as calosidades espirituais dos nossos políticos, por sua vez, são a consequência da catástrofe que gangsteriza a nossa sociedade, vilipendia a nossa simplicidade, abusa da nossa morabeza e subtrai as mulheres e crianças.

Andei por aí! 

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Cavalguei as constelações  das atmosferas de vigilância que escrutinam as nossas características mais próprias, invadem nossos precários domínios da propriedade privada, atentam contra as nossas aspirações mais íntimas, pessoais e profanam o sono dos justos. 

Que época elusiva é esta na qual nos esbarramos nas imagens tardias de um futuro cosmético? Estamos imersos na dinâmica difusa e contraditória de um caldo de incertezas mais certas que a própria certeza em si. 

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Se as calosidades nas mãos das nossas preciosas rabidantes, das nossas preciosas famílias de agricultores, pecuaristas e pescadores são vestígios do trabalho duro e cansado, as calosidades espirituais dos nossos políticos, por sua vez, são a consequência da catástrofe que gangsteriza a nossa sociedade, vilipendia a nossa simplicidade, abusa da nossa morabeza e subtrai as mulheres e crianças.

Um tipo de corrosão, provocado pela presença de aditivos putrefatos, verte nas costuras de nossas instituições mais caras e expõe uma ferida infectada de right wingers e liberais ocupados em remendar e ocultar os vazamentos redolentes da catástrofe. A esta altura é notável o tipo negligente de trabalho realizado nas estruturas do Estado pelas excrescências nepóticas do partido. Seja por qual partido for ou por qual competência técnico-política. Um trabalho negligente, em várias frentes, cujos efeitos têm sido paroquialmente denunciados por intelectuais da nossa sociedade, em várias instâncias.

De longe, o perigo mais iminente que ameaça uma “cultura” alienada é o medo da emergência da verdade. Principalmente quando a “cultura” em questão é embranquecida em vários aspectos, dolosamente ignorante, alheia à fantástica diversidade artística e ao manancial milenar de saberes salvaguardado pelas tradições orais da sua população. Como argumenta o fenomenal filósofo estadunidense Cornel West: “a condição da verdade é permitir ao sofrimento elevar a sua voz.”

Nesta condição, o nível mais alto da excelência espiritual condensa-se nas canções de saudade. Ora, as nossas formas de cantar o lamento, a resa, konbersu sabi, gêneros musicais como morna, talaia baxu ou boxôm são lentes através das quais aprende-se o significado da boa morte e, sobretudo, aprendermos o que significa ser humano – viver uma boa vida. A dignidade inabalável perante a visita desavisada da catástrofe.

Apesar deste tempo vestido em camisa de forças contraditórias, as tendências funestas da crescente pobreza, a imobilidade involuntária e a criminalidade epidêmica emergem perante o enfrentamento da questão da expropriação de terra, da questão do desemprego crônico e da decadência do sistema educativo. Ainda assim, as pessoas conseguem acreditar em histórias sobre os modos capitalistas de produção. There ain’t no such thing, interpela-nos brother Cornel West.

Enfrentamos questões abrangentes tais como a questão do solo, das expropriações e das demolições das precárias habitações autoconstruídas de sol a sol, noites frias adentro, entre suor e lágrimas, pelas pessoas mais vulnerabilizadas da nossa sociedade. Ou mesmo, referimo-nos às metodologias de construção civil e industrial que acarretam um grande desperdício evitável: a sobreposição acrítica das manias e vícios partidários e dos conceitos obsoletos de desenvolvimento e progresso; a recusa ao diálogo, a própria falta de condições para o diálogo, a desconsideração e invalidação dos argumentos locais; sobretudo, o problema incontrolável de perda de solo arável devido à erosão, as chuvas torrenciais, a qual se acentua no antropoceno contemporâneo em escala global.

As problemáticas que sitiam as condições institucionais e a vasta informalidade, as carências práticas dos recursos humanos e a pobre inteligência do mercado preocupam e enfraquecem os discursos que liquidificam as formalidades legais e focam nos conceitos guarda chuva de empreendedorismo, sustentabilidade e resiliência. Desta forma, no contexto do trabalho em Cabo Verde, estas palavras são uma ratoeira da qual o sujeito raramente se safa, na medida em que é coagido pelo comprometimento a [des]lealdades políticas impróprias e muitas vezes desprovidas de qualquer ética. Formas sub reptícias das estratégias de dominação e do exercício do pequeno poder. Que fique aqui bem claro, que os acadêmicos ou intelectuais não se excluem desta moléstia.

A crítica da dominação, ou se preferir, a crítica reflexiva sobre os constrangimentos desnecessários da liberdade humana é tão antiga quanto o conceito ocidental da razão. Invoco Trent Schroyer, não apenas neste aspecto, mas também considerando o movimento descendente proclamado por Platão: Kateban. Invoco a conspicuidade da visibilidade na conceituação clássica da razão na filosofia e a sua habilidade de ver o invisível – enxergar a essência para além da aparência, não antes de sofrer e superar a ofuscação da luz real no processo de êxodo da caverna.

A firmeza e determinação são requerimentos imprescindíveis da luta contra as oligarquias e plutocracias seletivas que teimam em minar as instituições defensoras dos direitos da população. Cabo Verde precisa combater a comodificação do uso do poder arbitrário contra, especialmente, as pessoas cidadãs comuns.

Ai nha Genti! Ali ben tempu. Sim, já é tempo. É tempo de quebrar os nossos próprios tabus. O mundo contemporâneo se define através da diluição de fronteiras. Não obstante, o estado de vigilância e de insegurança, no qual vivemos, compele os diversos grupos subalternizados ao confinamento das fronteiras: aquela linha visível e perceptível da demarcação seja em que dimensão for. Podemos dizer que houve alguns estalos nestes últimos anos, alguns despertares maravilhosos, vozes femininas ambas poderosas e comuns ecoam pelo mundo, mas, forças obscuras se elevam sorrateiramente dos buracos dos esgotos, sobem pelas paredes assombrosas e tentam se apoderar da tela do visível e transfigurar, distorcer as realidades.

Portanto, esta vitória do José Maria Neves, ou melhor dizendo, de parte da população cabo-verdiana, contra aquilo que parecia ser mais um caso extravagante de coquetterie entre o governo e a extrema direita portuguesa e cia. lda., nada mais é do que um momentum. De repente, como num passe de mágica, o verde da ilha de Santo Antão azulou. Azulou geral, maravilhosamente em contacto com o azul do mar que alimenta a classe pescadora, ou o azul profundo do céu que aguarda pacientemente as águas. 

Mas, a realidade é esta. Os maiores desafios para a democracia cabo-verdiana são de natureza estrutural. Não seria difícil escolher casos flagrantes de abandono e descaso com os pecuaristas, os agricultores, os pequenos comerciantes e informais. A boçalidade das instituições de poder local, com os seus expedientes coimados por uma horda de aproveitadores e oportunistas políticos. 

O “novo” Presidente da República deve sim manter uma relação duradoura, madura e de responsabilidade excepcional com a Educação deste país. Portanto, é auspicioso que Sua Excelência se aperceba fora da sua zona de conforto, mesmo unhoused e unsettled das suas preferências. 

Este convite vai além das imediações da sua alma e dos subúrbios do seu coração. Estende-se ao exame das estratégias de vigilância inerentes às teorias da violência, às críticas da dominação e da alienação, às exigências do meio ambiente, ao bem estar da população e à sociabilização sustentável. Ou seja, se se investe no turismo, de jeito nenhum as populações das ilhas, sua cultura e particularidades devem ficar de fora. Elas são parte constituinte.

Destarte, a boa governança implica uma revolução na forma através da qual o Estado lida com a cultura, as artes e a educação. Ou seja, em que termos o Estado se comunica com a sua população? Almeja-se uma relação pedagógica e natural – religare – com a música, a dança, o teatro e as outras artes para além do narcisismo que expõe, de forma invertida, as piores neuroses e psicoses coloniais de supostas elites agonísticas, em detrimento da educação sistemática e perene das gerações cabo-verdianas presentes e vindouras. 

A forma como o Estado lida com as artes, a educação e a cultura define a forma como o Estado lida com a economia e o bem estar da população do arquipélago.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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