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Camarada Cabral: assim é a luta de libertação. 

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Temos que fazer o sacrifício. Coragem e avante. 

Vitória para o P.A.I.G.C. 

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Vida longa ao Povo da Guiné e Cabo Verde.”

Última mensagem enviada a Amílcar Cabral por Domingos Ramos 

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antes de tombar corajosamente em batalha  no dia 10 de novembro de 1966.

Fonte: Sonia Borges (2019).

Por: Alcides Lopes (PhD)

Durante o trabalho de campo de pesquisa, realizado na área metropolitana de Lisboa em 2018 e 2019, desfrutei de um único vínculo institucional em Portugal. O meu vínculo foi com a Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ), na Cova da Moura, em Buraca, Amadora. 

Devido ao golpe de 2016 no Brasil, iniciou-se um processo de desmantelamento e depredação das estruturas sócio-económicas e de financiamento das áreas de pesquisa e ensino, principalmente das artes, cultura e ciências sociais. Nunca tive a mínima chance de conseguir uma Bolsa Sanduíche [financiamento da Capes para realização de pesquisa de doutorado no exterior], mesmo tendo declarado, no ato da seleção do projeto de doutorado, o qual fora aprovado, que a bolsa sanduíche era essencial para a concretização dos objetivos da pesquisa. 

Para além de outros percalços domésticos, quando chegamos em Lisboa, não foi possível iniciar a pesquisa ao abrigo do INET-md, por exemplo. E o mais sensível, é que a produção sobre o Kola San Jon, por parte do INET-md, interessa diretamente à minha pesquisa de doutorado. Portanto, se foi possível ter acesso aos textos e teses, na biblioteca do Moinho, o mesmo não se pode dizer com relação às estruturas de laboratórios de etnomusicologia e do audiovisual. 

No Moinho (ACMJ), entretanto, sob a orientação das diretrizes inerentes à instituição, a partir de uma abordagem colaborativa orientada pela pesquisa antropológica, foi-me permitido realizar o trabalho de campo de pesquisa junto aos grupos tradicionais, como Kola San Jon e o Finka Pé, aos músicos e artistas e da população do bairro no geral. Cova da Moura foi a base. Na ACMJ, nos cafés, nas casas das pessoas e nos largos fui apresentado a uma diversidade de redes, um rizoma chamado Djunta Mô

Uma bateria de reuniões e atividades lúdico pedagógicas constitui parte integralmente significativa dos dados produzidos através do método de observação participante, do engajamento coletivo e do voluntariado praticados quotidianamente nas premissas do Moinho. Os funcionários, os estagiários, outros voluntários de diferentes funções, as crianças, os adolescentes, os adultos e as pessoas garandi, todas e todos contribuíram de algum modo para a realização da pesquisa.

Um dos desafios solitários enfrentados foi a necessidade de aventurar-me em busca de espaços institucionais externos ao bairro, que estivessem dispostos a escutar sobre a pesquisa em torno da história do Kola San Jon de Cova da Moura. Nesta esteira, submeti vários trabalhos em seminários, congressos e simpósios, de áreas diversas, sendo selecionado para o Encontro Nacional de Investigação Musical na Escola Superior de Música do Porto; para o evento In Progress 3, realizado pelo  Centro de Estudos sobre a Ásia, África e Américas do ISEG; e, finalmente, para o Seminário Direito à Cidade da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, realizado em homenagem ao cinquentenário da famosa obra de Henri Lefebvre, Le droit à la Ville (1968). 

Mas, a leitora ou o leitor que não se deixe enganar. Pois, se, por um lado, as universidades e institutos superiores de ensino e pesquisa portuguesas ofereciam-me oportunidades desafiadoras para compartilhar as minhas inquietações junto a diferentes comunidades acadêmicas do país, por outro lado, a agenda de atividades e eventos da ACMJ não deixavam nada a desejar.

Geralmente, a agenda de atividades da associação é votada em plenário com antecedência, de modo que, tudo o que é programado, é previamente discutido. Reuniões regulares entre diferentes grupos e configurações abordam uma variedade de interesses que permeiam a vida  na comunidade. A procura do bairro por parte de investigadoras e investigadores do mundo inteiro é marcante. Durante o período que frequentei o Moinho conheci pesquisadoras da Suécia, da Espanha, da China, da Argentina e do Brasil e pesquisadores da Itália, do Japão e dos Países Baixos.

Todas e cada uma dessas pessoas estavam envolvidas com o bairro através da associação. As suas atividades envolviam as condições de emprego e formação profissional, saúde física e psicológica da mulher, prevenção da violência doméstica, sobre o abuso do álcool e outras substâncias químicas, segurança, segurança alimentar, turismo “étnico”, educação e arte, dança, desporto, produção musical, cinema, tradições e patrimônio cultural. Para além da maioria das pessoas serem mulheres, impressionava também a quantidade de pesquisadoras das diversas regiões do Brasil presentes e atuantes no local.

Naquele ambiente, profícuo e agonístico, dava gosto assistir aos mais variados debates e argumentações entre pesquisadores, funcionários, voluntários e moradores de diferentes gerações e convicções. Entretanto, desde uma das primeiras reuniões, um ativista, educador, músico e pensador político levantou uma questão, a qual ficou presa às minhas inquietações.

Flávio Almada (LBC) falou sobre a produção do conhecimento construído de diversas formas, para diferentes usos,  no dia a dia da vida da associação e da comunidade. Reivindicava, na ocasião, que aquelas formas de conhecimento fossem apropriadas pelos moradores e profissionais do bairro e, eventualmente, fossem criticamente exportadas para outros ambientes, outras dimensões do debate.

Não que isso nunca tenha acontecido anteriormente. Antes pelo contrário, tinha acontecido tantas vezes que era necessário centralizar esta construção às necessidades da população do bairro e das pessoas que prestam serviços ou se servem da associação. Como bem nos ensina a saudosa bell hooks, “decolonialidade é um ato de centralizante”. 

A rotina quotidiana obriga-nos a lidar com relações oposicionais e disputas constantes. A nossa linguagem, por ser demasiadamente binária, choca com as exigências da diversidade. Esta, por sua vez, é uma língua que a dominação não fala. Por estes motivos, é salutar questionarmos as nossas intenções no dia a dia. Estarmos sincronizados, saber de nós e sermos capazes de nos avaliar criticamente. Como podemos conceber o nosso dia em termos de cuidado?

No seu maravilhoso documentário, disponível no youtube: Geographies of Racial Capitalism with Ruth Wilson Gilmore – An Antipode Foundation film, a geógrafa e abolicionista prisional estadunidense afirma que a relação entre escravidão e raça, raça e privação de liberdade, privação de liberdade e trabalho é uma relação que estamos constantemente tentando desembaraçar. Não obstante o perigo, tentamos sempre ignorá-la ou mesmo, simplificá-la. Isto porque, a sua complexidade é crucial para as ações que praticamos no momento atual, no intuito de desfazermos a catástrofe do encarceramento em massa.

Ruthie Gilmore esclarece que toda a luta de libertação é localmente baseada. Sim, pode variar de escala, mas esta condição é inalterável. Pois, a condição de luta de libertação é específica às necessidades diárias das pessoas nela envolvidas. É nesta lógica que ela se inteira da história de luta do bairro da Cova da Moura, da história das autoconstruções  e dos episódios arbitrários de demolição, desapropriação, realojamento etc. 

Portanto, Gilmore argumenta sobre os saberes, as técnicas e as estratégias de resistência ativadas no seio da população, no intuito de resistir e defender a integridade da sua comunidade. Enquanto passeia pelas ruas do bairro na companhia de LBC, faz-nos recordar que as pessoas, inicialmente, mobilizaram-se para salvar suas casas e a sua comunidade, num processo, durante o qual foram desenvolvidos grupos de estudo. Os objetivos destes grupos não se restringem à compreensão das intrincâncias e vulnerabilidades locais, ou da forma como o Estado lida com a situação, mas também, abrangem a história do colonialismo, do racismo, a situação atual da cidadania, a sua relação com os estudos afro-americanos, a fortificação da Europa (através das atmosferas de vigilância), a feminização da migração, entre outros factores. 

Voltando um pouco no tempo, lembro-me do dia 10 de outubro de 2018, em Cova da Moura, quando aconteceu um debate extraordinário. Naquela tarde, reunimos na Sala Intergeracional com Ruthie Gilmore, a professora e pesquisadora Inocência Mata, o ativista antirracista Mamadou Ba, o filósofo Achille Mbembe, o tradutor Apolo de Carvalho, os membros da associação, moradores do bairro e visitantes. Foi realmente uma daquelas tardes inesquecíveis. Eu mal podia acreditar que tudo aquilo estava acontecendo no cerne da “minha” pesquisa de campo. Simplesmente fantástico. 

Na noite anterior, em Lisboa, tinha assistido, pela primeira vez, ao filósofo camaronês durante a Conferência “Para um mundo sem fronteiras” na Culturgest, de 9 de outubro de 2018. Após uma palestra de altíssima qualidade e amplo escopo, foi aberto um espaço para a colocação de perguntas pelos mais corajosos. O anfiteatro estava cheio, na sua maioria, de alunos universitários e professores devido à grande fama, mundialmente conhecida, do pensador. Lá estava eu, em pleno trabalho de campo de pesquisa, inusitado e imprevisível, e não resisti em colocar uma questão ao respeitável orador.

Peguei no microfone, tremendo igual a uma vara verde, ejetei com dificuldade – não pelo desconhecimento da língua inglesa – algumas palavras que formaram uma questão. Na época, o Brasil se encontrava em plena campanha política, eivada pelo sangue nos olhos da elite do atraso, pelo ódio explícito de Lula e do PT e pela cegueira néscia que elegeu Bolsonaro. Perguntei então, ao Sr Mbembe, que futuros, que soluções para aqueles grupos minorizados na sociedade brasileira, a exemplo dos quilombolas, poderia-se descortinar com a virada político ideológica que o Brasil estava prestes a enfrentar? 

Ele respondeu: 

Ser minoria, em qualquer sociedade, é ocupar uma posição de vulnerabilidade. Quando se está nesta posição, tudo o que se tem pode ser tomado muito facilmente. Tudo o que você estiver tentando construir, pode ser facilmente destruído. Por conseguinte, o indivíduo ou o grupo precisa estar sempre preparado para recomeçar. A vida política e cultural que se vive em um ambiente minoritário é uma vida que precisa nos preparar para realmente ter disposição e querer começar de novo. Estar, constantemente, pronto para reconstruir com a consciência de que as vitórias, quando acontecem, são sempre marginais.

O que importa realmente é sustentar e garantir aqueles ganhos marginais e assegurá-los como base para alcançar novas vitórias. Minoria significa que a sua face, e afirmo literalmente, a sua cara está sempre suscetível a não ser vista, não ser reconhecida. Exige um grande esforço por parte da maioria da sociedade para enxergar, na tua face, a sua própria face. Eles sempre enxergam, na tua face, a face de outra pessoa. Uma face da qual não temos certeza da sua origem. Assim, por garantia, somos obrigados a nos sujeitar ao uso de uma série de dispositivos de verificação.

Com relação à sua questão sobre como sair desta condição de minoria. Aqui defendo que depende das situações históricas que se está vivendo. O projeto de Fanon era sobre a indiferença para diferença, ou seja, um ser humano entre muitos que quer ser tratado da forma como se tratam os outros, por direito. Isto, na realidade, é revolucionário. Diferença, até onde sei, é um momento dialético em prol de algo mais abrangente. Defendo que o que precisamos neste momento é de uma noção de comunalidade (…). Atualmente, o problema é que a diferença na identidade tem sido usada para construir as condições de autopromoção. Neste sentido, a diferença na identidade foi percebida pelo credo neoliberal, como forma de despolitizar os grupos. Impossibilitar a concretização de coalizões, enquanto entretém o tipo de narcisismo sem o qual não teria qualquer atração na atual vida cultural contemporânea.

Na atual situação em que vivemos, precisamos re-implantar a crítica da política da identidade e da diferença, em um cenário no qual, as forças conservadoras são as mais versadas no seu uso. Portanto, outras formas de mobilização que permitam coalizões precisam ser engendradas. A política da identidade não é mais tão progressiva como costumava ser durante o último quarto do século anterior. Houve uma virada massiva e precisamos inventar outros modos de mobilização (coming together/juntá môn) que permitam-nos encontrar espaço neste mundo que se tornou inextricavelmente conectado.

(Achille Mbembe, Culturgest 2018. Tradução minha).

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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