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Concentração, Desconcentração, Centralização, Descentralização, Regionalização e Autonomia

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Por: Júlio Manuel Faria da Conceição

Concentração, Desconcentração, Centralização, Descentralização, Regionalização, e Autonomia – Temas bastante abordados na actualidade, mas que não se confundem.

Procuraremos explanar estes conceitos tendo em conta o nosso contexto de organização administrativa, pois falando dum território como Estado independente e soberano, automaticamente este deverá ter a capacidade de estabelecer a sua organização política, económica e, dentro deste contexto em análise, também a organização administrativa, assim sendo será pertinente fazer um recuo no tempo e começar a partir da independência nacional, a 5 de julho de 1975.

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Com o intuíto de se etabelecer a organização política do Estado aprovou-se a LOPE (Lei de Organização Política do Estado), não sendo uma Constituição propriamente dita, foi elaborada para vigorar durante noventa dias, mas acabou por vigorar durante cinco anos. Como era constituída por vinte e três artigos, é escusado dizer que não havia uma parte que estipulava a organização administrativa, pese embora com a proclamação da República de Cabo Verde como Estado independente, ipso facto verifica a existência duma Constituição em sentido material, em que as linhas orientadoras do ponto de vista da organização administrativa não constam na constituição em sentido formal, mas existem na constituição em sentido material. 

Como se fez a Organização Administrativa após a independência nacional?

Num contexto de Partido Único, após a independência nacional optou-se pelo sistema de organização administrativa centralização com desconcentração, por imposição constitucional, e será pertinente desdobrar estes conceitos, segundo o Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, admitindo o seguinte:

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Centralização – é o sistema que todas as atribuições administrativas de um dado país são por lei conferidas ao Estado, não existindo, portanto, quaisquer outras pessoas colectivas públicas incumbidas do exercício da função administrativa. 

Desconcentração – é o sistema em que o poder decisório se reparte entre o superior e um ou vários órgãos subalternos, os quais permanecem, em regra, sujeitos à direcção e supervisão daquele. 

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Este cenário demonstra que neste sistema existe uma única pessoa colectiva pública que é o Estado, em que as competências decisórias repartir-se-ão entre o Governo – como órgão competente para exercer a função administrativa – e órgãos subalternos, tendo como pano de fundo a organização vertical. Não havia a figura de Presidente de Câmaras Municipais, mas sim de Delegados do Governo nas diferentes ilhas. Havia um governo central, que dentro da mesma pessoa colectiva pública atribuia determinadas competências aos subalternos, neste caso concreto aos delegados do governo. 

Posteriormente, a constituição de 1980, no seu artigo 94.º sob epígrafe “do poder local”, veio formalizar o sistema administrativo acima exposto, admitindo que “os órgãos do poder local fazem parte do poder estatal unitário…”, reforçando o conceito de organização administrativa, centralização com desconcentração.

No entanto, em 1989 houve vontade legislativa para que grupos de cidadãos pudessem apresentar as suas listas para os órgãos do poder local, admitindo a ideia embrionária de uma possível abertura para a descentralização, que não chegou a consumar.

A possibilidade de grupos de cidadãos independentes apresentarem candidaturas nas eleições municipais foi consagrada pela lei eleitoral de 1989, ao estabelecer no seu artigo 21.º: para além dos órgãos competentes do PAICV, podem apresentar listas de candidatos às eleições à Assembleia Municipal, à JAAC-CV, OMCV e à UNTC-CS, através dos respectivos órgãos competentes e grupos de cidadãos correspondentes a 50 vezes o número de mandatos atribuídos ao respectivo círculo eleitoral. No entanto, como se sabe, este mecanismo nunca foi testado, já que, com a abertura política ao multipatidarismo, a respectiva lei foi alterada e as eleições municipais foram organizadas num outro contexto político. Silva (2020, p.487)

A queda do artigo 4.º da Constituição de 1980 e a posterior organização administrativa

Com a queda do artigo 4.º da Constitição de 1980, revisão feita pela Lei Constitucional n.º2/III/90 de 29 de Setembro, estipulava que a apartir de então era livre a constituição de partidos políticos.

Clarificando o quadro constitucional e legal da transição, a dinâmica política e social promovida pelo PAICV e pelo MPD levaram a profundas mudanças no sistema político e constitucional, graças ao consenso mínimo a que se chegou sobre o calendário para a transição política. Cumprindo o estatuído na lei eleitoral para as eleições legislativas, o Presidente da República marcou a data das eleições para 13 de Janeiro de 1991. O MpD saiu vencedor com maioria qualificada de dois terços dos deputados. A Constituição de 1980 estava em perigo. Silva (2014, p.31)

Foi neste contexto de mudança política, económica e social que foi necessário ajustar a Constituição tendo em conta as reais necessiades que o momento estava a determinar, e o direito como uma ciência socialmente situada, que tem que acudir as pulsações diárias da sociedade para que a sua aplicação possa ser eficaz, abriu o caminho para a aprovação da Constituição de 1992 na sua versão originária, que veio a estipular uma nova organização administrativa. Nascia assim o conceito de descentralização no nosso ordenamento jurídico, devidamente plasmada no capítulo V, Título VI, que admitia o seguinte:

Artigo 252.º Do Poder Local (actual artigo 230.º)

1 – A organização do Estado compreende a existência de autarquias locais;

 2 – As autarquias locais são pessoas colectivas públicas territoriais dotadas de órgãos representativos das respectivas populações, que prosseguem os interesses próprios destas. 

Artigo 253.º Categorias de Autarquias Locais (actual artigo 231.º)

As autarquias locais são os municípios, podendo a lei estabelecer outras categorias autárquicas de grau superior ou inferior ao município.

As autarquias locais são pessoas colectivas públicas de população e território, correspondentes aos agregados de residentes em diversas circunscrições do território nacional e que asseguram a prossecução dos interesses comuns resultantes da vizinhança mediante órgãos próprios, representativos dos respectivos habitantes. 

A existência constitucional de autarquias locais e o reconhecimento da sua autonomia face ao poder central fazem parte da própria essência da democracia e traduzem-se num conceito juridico-político de descentralização.

Onde quer que haja autarquias locais, enquanto pessoas colectivas distintas do Estado, e dele juridicamente separadas, poderá dizer-se que há descentralização em sentido jurídico. O que significa que as tarefas da Administração Pública não são desempenhadas por uma só pessoa colectiva – o Estado –, mas por várias pessoas colectivas diferentes. Desde que, além do Estado, haja outras pessoas colectivas diferentes dele, encarregados por lei de exercer actividade administrativa, há descentralização em sentido jurídico.      

Quando, além da descentralização em sentido jurídico há descentralização em sentido político-administrativo, e portanto os órgãos representativos das populações locais são livremente eleitos por estas, estamos na precença dum fenómeno que se chama auto-administração: as populações administram a si próprias. Do Amaral (2016, p. 408 – 413).

Em Cabo Verde as populações elegem os representantes das autarquias locais, e pela prerrogativa Constitucional dos artigos acima citados, podemos admitir que este conceito engloba as freguesias num plano inframunicipal ou inferior ao município, o próprio munícipio, e as regiões que se encontram num plano supramunicipal ou superior ao município. 

Na nossa organização administrativa ainda não instituímos as freguesias, existindo neste momento 22 municípios, e em relação á criação de regiões que perfeitamente podemos também denominar de regionalização, tema bastante debatido na actualidade, aliás em 2017 o Governo avançou com uma proposta de Lei de Regionalização que não teve a maioria necessária no parlamento para a sua aprovação. 

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Nos termos do artigo 245.º da Constituição da República de Cabo Verde, admite que: “as autarquias locais gozam de poder regulamentar próprio, nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias locais de grau superior ou das autoridades com poder tutelar”. 

Tendo em conta o preceito acima citado, dizer que no nosso ordenamento jurídico neste momento, é possível proceder a Regionalização, mas uma Regionalização meramente Administrativa, pois a moldes do munícipio seria diferente no que tange ao espaço territorial, pois é claro que uma região ocupa um espaço territorial maior que o município, mas assemelham-se, pois ambos a luz da nossa Constituição têm poderes meramente regulamentares, não podendo de per si produzir as suas próprias leis, não dispondo de uma assembleia legislativa, mas sim de um órgão deliberativo com poderes meramente regulamentar.

É claro que existem graus de descentralização, que se adaptam ao modelo de autarquias locais instituídos no nosso ordenamento jurídico, que são os seguintes:

  1. Atribuição de personalidade jurídica de direito público;
  2. Além da personalidade jurídica de direito público, atribuição de autonomia administrativa;
  3. Além da personalidade jurídica de direito público, e de autonomia administrativa, atribuição de autonomia financeira;
  4. Além das anteriores, atribuição de faculdades regulamentares;

Descentralização, Regionalização e Autonomia.

Até agora já sabemos que a Descentralização pressupõe criação de uma pessoa colectiva distinta do Estado com funções administrativas; a criação de Regiões ou Regionalização advém da descentralização, consubstancia num dos tipos de autarquias locais, e a Regionalização, caso implementado no nosso ordenamento jurídico, será meramente administrativa; a Automonia é o grau de Regionalização mais profundo, que efectivamente consubstancia na Regionalização Política, que, para além dos pontos citados acima das alíneas a) á d), também implica atribuição de poderes legislativos próprios. Aqui sai da descentralização administrativa e entra na descentralização politica, já não se está perante uma mera auto-administração, mas está acima de tudo perante autogoverno.

Para que haja Autonomia ou a criação de Regiões Autónomas em Cabo Verde, este deve ser precedido de uma ampla reforma do Estado, pois este procedimento implica a instituição de um Governo Regional, e uma Assembleia Legislativa Regional, capaz de autogovernar-se e produzir as suas próprias leis, pois as Regiões Autónomas diferem na totalidade das Regiões Administrativas que o nosso ordenamento jurídico concebe, pelos motivos já elencados. 

*Jurista

Referências Bibliográficas

Silva, Mario Ramos Pereira (2020): Código Eleitoral Anotado 3.ª Edição. Praia: Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais; Livraria Pedro Cardoso.

Do Amaral, Diogo Freitas (2016): Curso de Direito Administrativo Volume I 4.º Edição. Coimbra: Almedina. 

Silva, Mario Ramos Pereira (2014): As Constituições de Cabo Verde e Textos Históricos de Direito constitucional Cabo – Verdiano. Praia: Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais; Livraria Pedro Cardoso.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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