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Vladimir Monteiro, porta-voz da missão da ONU na RCA: “A missão de paz está a ser impactada pelo surgimento da pandemia”

A pandemia está a baralhar a missão de paz na República Centro Africana, obrigando a ONU a tomar medidas, uma delas a suspensão da rotação dos milhares de capacetes azuis militares e policiais no país. A informação é revelada pelo jornalista cabo-verdiano Vladimir Monteiro, porta-voz da missão das Nações Unidas na RCA – MINUSCA -, que classifica a Covid-19 como um drama mundial. O choque da doença nesse país preocupa Monteiro, mas também a qualidade da cobertura jornalística neste tempo de crise. Por isso esse ex-profissional da Inforpress enfatiza que a ética e a deontologia ganham outra relevância neste período de Covid-19 e que o direito de acesso à informação deve ser assegurado aos jornalistas para que façam um trabalho rigoroso e transparente.

Por : João A. do Rosário

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Mindel Insite – Vladimir Monteiro, em primeiro lugar explica-nos como é ser um cabo-verdiano funcionário das Nações Unidas e em pleno Centro da África?

Vladimir Monteiro – O sentimento é o mesmo, como funcionário das Nações Unidas, ou como o jornalista que já fui na Inforpress (Ex-Cabopress), A Semana, Rádio Comercial ou Rádio Educativa, isto é, procuro trabalhar com empenho, honestidade e abertura de espírito, como todos os cabo-verdianos, particularmente aqueles que saíram do país. Em relação à Organização das Nações Unidas, é um grande orgulho fazer parte desta entidade que desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, procura curar os males do planeta, como a fome e as guerras, etc., sobretudo em África. Sendo um país com uma população muito limitada, o número de cabo-verdianos funcionários da ONU é baixinho. O facto de sermos poucos causa reacções diversas, mas sempre positivas da parte dos interlocutores que cruzamos pelo mundo fora.

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Uns dizem com curiosidade e alegria que é a primeira vez que encontram um cabo-verdiano, outros evocam Amilcar Cabral ou Cesária Évora. Quanto a mim, procuro contribuir com a minha parte como outros conterrâneos ao serviço da ONU no estrangeiro nomeadamente José Luís Jesus, juiz no Tribunal Internacional do Direito do Mar, Helena Semedo, Diretora-geral Adjunta da FAO, António Monteiro, do OCHA, Carlos Araújo, na área da comunicação, Patrick Teixeira, do PAM, etc. e outros hoje falecidos como o Francisco Monteiro, na OIT. 

MIÉs conhecido em Cabo Verde enquanto jornalista, mas há anos que deixaste o país. Conta-nos as tuas aventuras até parar na República Centro-Africana (RCA).

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VM – Há quase 14 anos que estou fora do país onde trabalhava então como jornalista da Agência Inforpress. Estava na Praia quando um amigo e colega de profissão contactou-me em Novembro 2005 e acabei por parar em Nova Iorque, no serviço português da Rádio ONU. Oito meses depois fui recrutado pelo Gabinete das Nações Unidas na Guiné-Bissau (UNIOGBIS) como oficial de informação. Seguiu-se uma outra missão no Burundi entre Julho 2012 e Outubro 2015, também como oficial de informação. Em Outubro de 2015 juntei-me à missão de paz das Nações Unidas na RCA como porta-voz. Estes 14 anos têm sido uma verdadeira escola de dar e receber, encontros com dirigentes e simples cidadãos assim como de episódios dramáticos e momentos de esperança para os povos desses três países. 

MI – Numa altura em que a Covid-19 assola o mundo, incluindo a África, o que levou o Director-Geral da Organização Mundial da Saúde a apelar o continente para acordar perante as possíveis consequências da pandemia, como é que vê esta situação e, sobretudo, no continente africano?

VM – É um drama. Essa pandemia afecta-nos a todos sem distinção. Não escolhe países, nacionalidades, religiões, cores da pele. Por conseguinte, a saída passa pelo respeito das medidas de prevenção por parte das populações, mas também pela solidariedade como tem defendido o Secretário-Geral da ONU, António Guterres. 

MI – E na RCA, onde trabalha como funcionário da ONU, como é que podemos falar do Covid-19?

VM – Até a data, a RCA registou 11 casos na capital Bangui, mas as autoridades tomaram uma série de medidas de prevenção para evitar o aumento dos casos, particularmente nas regiões. Como todos os sectores, o trabalho da nossa missão está a ser impactado pelo surgimento da pandemia e tivemos que tomar medidas internas tais como a suspensão da rotação dos milhares de capacetes azuis militares e polícias, para prevenir a chegada de novos casos. Mas nem por isso, a MINUSCA suspendeu o seu mandato sobretudo as patrulhas para a proteção das populações que continuam a ser vítimas da violência dos grupos armados, apesar da assinatura em Fevereiro de 2019 de um acordo de paz entre o Governo e 14 grupos armados.  

MI – A BBC anunciou que o país dispõe apenas de 3 ventiladores para 5 milhões de pessoas, será difícil para aquele país controlar esta pandemia, aliás como em todos os países africanos. O que nos diz sobre tal estado de coisa?

VM – Segundo o OCHA, o Gabinete de Coordenação dos Assuntos humanitários das Nações Unidas, a RCA dispõe de um dos sistemas de saúde mais fracos do planeta. Uma das causas prende-se com a violência que destruiu quase tudo. Neste contexto de pandemia, a MINUSCA e todas as agências das Nações Unidas presentes no país têm apoiado as autoridades, sob a coordenação da Organização Mundial da Saúde. Apoiamos na compra de materiais como nas campanhas de sensibilização com a produção de posters, cartazes e distribuição de informação nas rádios na capital e nas regiões.

MI – Quanto ao papel a função da ONU na RCA o que nos pode dizer sobre esta missão, acho que foi prorrogada até o final do ano, como é que tem decorrido? Como é que pode nos caracterizar a situação politica, social, económica na RCA? 

VM – A RCA é um país rico em termos de recursos naturais – ouro, diamante e petróleo (ainda por explorar) – e o solo é bastante fertil. No entanto, os recursos são sobretudo controlados pelos grupos armados na medida em que o Estado está ausente de muitas regiões. Devido a crise que assola o país desde 2013, há cerca de 500.000 deslocados internos e um número quase igual de refugiados nos países vizinhos para uma população de cinco milhões de habitantes, embora se tenha assistido a um regresso voluntário de refugiados ao país. No ano passado, o Governo e os grupos armados, sob a égide da União Africana (UA) e a Comunidade Económica dos Estados da África Central (CEEAC) e o apoio da ONU, assinaram um acordo de paz. A violência tem baixado, mas os confrontos continuam nalgumas zonas, sobretudo no nordeste, muitos edifícios públicos continuam ocupados pelos grupos armados.

O nosso actual mandato, que foi prorrogado até Novembro 2020, prevê um conjunto de tarefas das quais a proteção das populações e dos actores humanitários – que fornecem a ajuda e os cuidados médicos aos deslocados e populações vulneráveis; o apoio à implementação efectiva do acordo de paz e a assistência às autoridades nos preparativos das eleições presidenciais e legislativas previstas no final do ano. Neste contexto de crise sanitária, a nossa missão tem igualmente procurado obter a adesão dos signatários do acordo de paz ao apelo a um cessar-fogo global defendido pelo Secretário-Geral.

Garantir a ética jornalística em tempo de crise

MI – Enquanto jornalista de formação, e num momento em que o mundo enfrenta uma luta contra o desconhecido, como vê o trabalho dos jornalistas? Existe um risco de pressão sobre estes profissionais da Comunicação Social?

VM – Neste contexto de incerteza, a informação é essencial e tem-se notado isso por todos os lados. Incluindo media internacionais como a CNN ou a BBC transmitem vezes sem conta as medidas de prevenção (lavagem das mãos, distanciamento, etc.) que se deve seguir para evitar a doença. Aqui na RCA, os media têm contribuído para a sensibilização das pessoas, embora um número limitado fez circular falsas informações sobre um doente e também afirmando que os estrangeiros são responsáveis pelo surgimento do Covid-19 no país. Isto é inadmissível e perigoso. Por isso, as Nações Unidas apoiaram o Ministério da Saúde e os órgãos de comunicação social, que acabaram por assinar um documento para garantir uma cobertura mediática responsável. Em tempo de coronavírus como noutros  períodos, a ética e a deontologia devem ser a regra ao mesmo tempo que o acesso à informação deve ser garantido aos jornalistas com vista a uma cobertura objectiva.

MI – Há outros cabo-verdianos na RCA?

VM – Neste momento, sou o único cabo-verdiano aqui, mas o paٕís tem cidadãos de países membros da CPLP com quem estou em contacto. Parte do meu trabalho passa-se fora do escritório com a conferência de imprensa semanal ou entrevistas sobre o trabalho da nossa missão e seus 15.000 membros dos quais cerca de 12.000 militares e 2.000 polícias. Eu e a minha equipa organizamos igualmente formações direccionadas aos jornalistas e procuramos financiar alguns projectos para lhes permitir trabalhar e garantir a informação às populações e melhor compreender a razão da presença da MINUSCA na RCA.

Vladmir Nobre Monteiro é jornalista, porta-voz da Missão de Paz das Nações Unidas na República Centro-Africana (MINUSCA). Licenciou-se no Centro de Formação de Jornalista, (CESTI), no Senegal. É um dos jornalistas que no final dos anos ’80 e inicio de ’90 iniciaram a Agência Cabo-verdiana de Noticias (Cabopress), hoje Inforpress.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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