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História/Projecto Lusitânia 100: “Cabo Verde teve um desempenho fundamental na história das grandes travessias aéreas do século XX”

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Educação, Cultura e Cidadania são os três pilares fundamentais que a Associação “Lusitânia-100” vai apresentar às autoridades cabo-verdianas, no âmbito do projecto de divulgação, em 2022, do 100° aniversário da primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul. Esta associação foi criada em Portugal com o intuito de assinalar o grande feito histórico dos lusos Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Esta epopeia, ocorrida em 1922, fez com que Cabo Verde tivesse desempenhado um papel fundamental na história das grandes travessias aéreas do século XX. As celebrações do centésimo aniversário desse feito pelos ares entre Portugal e Brasil – passando pelas Canárias – estão a ser preparadas sob o lema “para lembrar, para inspirar, para unir”. O presidente da “Lusitânia 100”, João Moura Ferreira, entende que elas são uma forma de dar a conhecer aos mais jovens a importância da efeméride, que proporcionou grandes oportunidades económicas e outras, também, a Cabo Verde.

Por: João A. do Rosário 

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Mindel Insite – Em 2022 celebra-se o centésimo aniversário da primeira Travessia Aérea no Atlântico Sul, bem como os 200 anos da independência do Brasil. Diga-nos o que é o projecto “Lusitânia- 100” e o que pretendem com a vossa iniciativa?

João Moura Ferreira – “Lusitânia 100” é o nome abreviado do projecto da “Associação Lusitânia 100 Anos”. Embora a Lusitânia, antiga província romana, já exista há mais de 2.000 anos, o nome da associação deriva do baptismo do primeiro hidroavião usado na Travessia do Atlântico Sul, o “Lusitânia”.  O “100” está relacionado com a comemoração do centenário da Travessia de 1922, que acontecerá em 2022. O “Lusitânia” foi um hidro-avião encomendado especialmente para a travessia e é um exemplar único na história da Aviação Mundial. Era da mesma família dos hidro-aviões Fairey III D, então usados na Aviação Naval Portuguesa.

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Pretendemos divulgar os feitos heróicos de Sacadura Cabral, o piloto, e de Gago Coutinho, o navegador. E, tal como na viagem original, de 1922, pretendemos também homenagear o bicentenário da independência do nosso país-irmão, o Brasil. Contudo, a comemoração de 2022 será ainda mais rica: existe um novo país independente, a República de Cabo Verde, e uma nova Autonomia, a “Comunidad Autónoma de Canarias”.

MI A mensagem do Projecto Lusitânia 100 é: “Para Lembrar, para Inspirar, para Unir”. O que querem alcançar com tal lema?

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JMF – Relativamente ao “Lembrar” digo que muitas pessoas que partilham a língua portuguesa conhecem a realização da travessia, contudo desconhecem a riqueza dos detalhes técnicos, científicos, e principalmente humanos, que permitiram a Travessia. Por outro lado, no mundo fora da língua portuguesa existe um desconhecimento alargado sobre os feitos de Sacadura Cabral e Gago Coutinho. É uma enorme injustiça, quer para os dois aviadores, quer para Portugal, como país. É também isto que queremos corrigir.

Sobre o “Inspirar” consiste no facto de toda a história da preparação da travessia ser rica e complexa. Nasceu como um sonho, nas profundezas das florestas de Moçambique cerca de 1908. O trabalho científico aí feito por ambos (e muitas outras pessoas) durante anos, na dureza do clima e da geografia, forjou personalidades decididas e com vontades de ferro. As dificuldades criaram equipas de trabalho coesas, com confiança mútua. 

Para concretizar o Sonho, foi necessário qualificar o piloto (em França, durante a 1ª Guerra Mundial, 1914-18), inventar um método de navegação aeronáutica de precisão, inventar e fabricar os respectivos instrumentos (Sextante com horizonte artificial e o Corretor de Rumos), desenvolver métodos operacionais, descobrir (e adaptar) um avião capaz de fazer a Travessia, e testar tudo na prática.

A prova decisiva teve lugar em 1921 e o voo experimental Lisboa-Madeira, de 963 km, num avião Felixstowe F.3, da Aviação Naval, pertencente à Marinha Portuguesa. Foram testados, na prática, o método de navegação de Gago Coutinho, a preparação das equipas para viagens longas e a respectiva logística. 

Chegaram brilhantemente à Madeira, sem qualquer apoio externo durante a viagem. Devido as limitações de orçamento, o avião para a Travessia teria que ser um monomotor, o que ainda hoje é uma solução perigosa e arriscada, para voar sobre o Mar. 

E, na época, não havia nenhum avião monomotor que conseguisse dar o “Grande Salto”: a escala mais longa difícil e perigosa, Cabo Verde – Fernando Noronha. Seriam 2.309 km sozinhos sobre Atlântico-Sul, sem qualquer ajuda exterior. Seria o equivalente a fazer Lisboa – Berlim, sem escalas. Teriam que atravessar uma tempestade tropical permanente – a ITCZ (Zona de Convergência Inter-Tropical).

Consequentemente, teve que ser especialmente adaptado um avião – o “Lusitânia”. A travessia, propriamente dita, está bem detalhada no “Relatório da Travessia”, que hoje faz parte do Património Imaterial da Humanidade, da UNESCO.

Quanto ao “Unir” queremos que este projecto seja um esforço conjunto das comunidades que foram tocadas pela travessia: Portugal, Cabo Verde, Brasil, e Canárias. A partir de um facto histórico, que é pertença destes países e comunidade, queremos aprofundar as ligações na sociedade civil.

Partida de Sacadura Cabral e Gago Coutinho de Lisboa, junto à Torre de Belém, a 30 Março de 1922.

MI – Evocam a travessia no seu aspecto fundamental de inovação e da ligação ao mundo de língua portuguesa. Isto é uma afirmação de confiança nos Países de Língua Portuguesa?

JMF – Sim, claramente. A travessia só foi possível devido as inovações que criou, a confiança absoluta na matemática e na astronomia e aos factores humanos presentes durante todo o percurso.

Por exemplo, no que respeita aos “factores humanos”, a bordo de aviões, desde 1978 que é formalmente chamado de “CRM – Crew/Cockpit Resource Management / Gestão de recursos de tripulação/cockpit”. E, contudo, esta técnica foi brilhantemente empregue por Sacadura e Gago Coutinho, garantindo ambos uma gestão exemplar de toda travessia, 56 anos antes do CRM ter sido teorizado!

Considero que esta criatividade para a solução de problemas é uma característica muito especial de Portugal, Cabo Verde e Brasil. Temos desenvolvimento diferentes, em campos diferentes. O grande desafio que se coloca à nossa geração é conseguir entre “nós”, CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) partilharmos o que temos de melhor, de modo a que nos possamos ajudar e desenvolver juntos.

E a Lusitanidade, esse património comum de muitas diásporas espalhadas por todo o Mundo, é ainda mais alargado do que a CPLP. Desde Goa, no Índico, passando por Malaca e pelo Havai, no Pacífico, e em todos os continentes, o sentir da Lusitanidade está presente. E gostaríamos de chegar a todas estas diásporas.

MI – Quais os aspectos de maior relevância do Projecto Lusitânia 100?

JMF – O projecto “Lusitânia 100” é a parte portuguesa de um projecto mais vasto. Está estruturado em três sub-projectos distintos. Existe o Projecto técnico, que visa construir uma réplica voável de um dos aviões da travessia, o “Santa Cruz”. Foi o terceiro avião, aquele que chegou ao Brasil, e que esteve, posteriormente, em Macau. É um objectivo ambicioso, só possível se conseguirmos reunir vontades e disponibilidades, competências técnicas e recursos financeiros. Actualmente, todas são escassas.

Há o Projecto Cultural que consiste na divulgação da travessia envolvendo as escolas, a CPLP, e o mundo inteiro. Queremos envolver pessoas, e aproveitar esta oportunidade, para prepararmos uma homenagem condigna.

O Projecto Operacional, em que vamos realizar demonstrações de voo locais, em Portugal e Cabo Verde, e se possível, nas Canárias e no Brasil. 

“Estamos focalizados na promoção dessa viagem como forma de dar a conhecer aos mais jovens a importância da Travessia que proporcionou grandes oportunidades a Cabo Verde, sobretudo a nível económico.”

MI – Qual é o envolvimento de cada um dos 4 países da Travessia: Portugal, Canárias/Espanha, Cabo Verde e Brasil?

JMF – Curiosamente, nasceram autonomamente em diversos países, há mais de uma década, movimentos espontâneos para homenagear a Travessia de 1922. O mais antigo aconteceu em Portugal, em 1995. Chamava-se “Lusitânia 75” e procurava comemorar os 75 anos da Travessia. Foi feito um importante trabalho de divulgação e avançaram muito nas componentes técnicas, nomeadamente na parte estrutural e de estudo aerodinâmico.

No Brasil também existem movimentos de celebração da Travessia, bem como movimentos relacionados com o grande pioneiro brasileiro Santos-Dumond. Os objectivos destes movimentos são essencialmente culturais e formativos, embora tenha sido construída, noutro contexto, uma réplica voável do célebre avião 14-Bis de Santos-Dumond.

Em Cabo Verde, o jornalista Ildo Rocha Fortes, residente em Portugal desde 2010, iniciou um projecto semelhante, em 2011, com o objectivo de comemorar o 90º aniversário da Travessia. Em 2012, começou o Projecto Lusitânia 100, em Portugal. Por diversas felizes coincidências fomos tomando conhecimento da existência uns dos outros.

MI – Cabo Verde e Portugal estão ligados por fortes laços históricos, culturais, linguísticos e sociais. Como tem sido esses contactos e articulação com Cabo Verde?

JMF – Os contactos com pessoas de Cabo Verde têm sido muito bons. Existe uma grande afinidade no modo de sentir entre os parceiros cabo-verdianos e portugueses. Já fomos recebidos pelo Sr. Embaixador da República de Cabo Verde, Dr. Eurico Correia Monteiro, a quem apresentamos este projecto. E posteriormente fomos também recebidos pelo Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Luís Felipe Tavares. Existe uma sintonia muito completa relativamente à importância e oportunidade de um projecto como este.

Estamos focalizados na promoção dessa viagem como forma de dar a conhecer aos mais jovens a importância da Travessia que proporcionou grandes oportunidades a Cabo Verde, sobretudo a nível económico.  No caso de Cabo Verde, a sua localização na rota dos três continentes, África, Europa e Américas é sem dúvida umas das maiores riqueza do país. Para Cabo Verde elaboramos as linhas gerais do programa com identificação dos três pilares fundamentais: Educação, Cultura e Cidadania.

Identificamos os pontos focais, em Mindelo (S. Vicente), o engenheiro Carlos Monteiro, artista musical e activista ambiental, e na Praia (Santiago), a escritora e activista social Yara dos Santos, precisamente ilhas onde Gago Coutinho e Sacadura Cabral passaram antes de partir para o “Grande Salto”, de Cabo Verde para os Penedos, já território do Brasil.

Depois da institucionalização do projecto junto das entidades, estamos a preparar a socialização do programa com a sociedade civil, a fim de recolhermos subsídios que possam ajudar a melhorar o conteúdo de todas as suas vertentes. Contamos com forte envolvimento das escolas de todos os níveis de ensino, de organizações ligadas à cultura e principalmente dos jovens. 

MI – Certamente as autoridades terão as comemorações oficiais. Como pretendem articular com as instituições desses países? 

JMF – Naturalmente que cada nação terá a sua comemoração oficial que entender fazer. A comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil é um marco muito importante na vida do Brasil. O nosso projecto apenas colabora com as comemorações oficiais naquilo que pudermos realizar.

Esperamos também que as comemorações do centenário da Travessia Aérea do Atlântico Sul, sejam uma oportunidade para reforçar as relações entre povos e culturas que tem o Atlântico Sul como fonte inspiradora, que poderá potenciar iniciativas inovadoras e novos desafios a bem da humanidade. Somos um movimento da sociedade civil de 3 países, e resultamos da convergência do sentimento dos cidadãos dos países envolvidos na travessia. 

Notas da Travessia

Notas da Travessia

A Travessia teve o seguinte percurso: saiu de Portugal no dia 30 Março de 1922, em direcção às Canárias (Las Palmas). Chegou a Cabo Verde (São Vicente) no dia 5 de Abril. Partiu para a Cidade da Praia a 17 de Abril, com um voo que durou 2 horas e 15 minutos. No “Grande Salto”, da Praia para os Penedos de S. Pedro e S. Paulo, tiveram muitas dificuldades, num voo de 11h21 m de duração, e perderam o “Lusitânia” na amaragem nos Penedos.

O segundo hidro-avião partiu de Fernando de Noronha, mas teve uma avaria de motor, e amarou de emergência, no oceano. Estiveram nove horas à deriva, até serem recolhidos, cerca da meia-noite, por um navio de passageiros. . 

Com um terceiro avião concluíram a travessia. Tocaram o continente sul-americano, no Recife, e posteriormente, chegaram ao Rio de Janeiro no dia 17 de Junho, no meio de enorme manifestações populares de alegria. 

Números finais do raid


DataPartida (GMT)ChegadaDuraçãoDistância (km)
Lisboa – Las Palmas30 Março7h0015h378h371302
Las Palmas – Gando2 Abril11h1311h340h2128
Gando – S. Vicente5 Abril8h3519h1810h431572
S. Vicente – S. Tiago17 Abril17h3519h502h15315
S. Tiago – Penedos18 Abril7h5519h1611h211682
Fernando Nor. – Mar11 Maio11h0117h356h34889
Fernando Nor. – Recife5 Junho10h4815h204h32556
Recife – Bahia8 Junho11h0516h355h30704
Baía – Porto Seguro13 Junho10h3014h334h03393
Porto Seguro – Vitoria15 Junho10h5514h353h40482
Vitoria – Rio de Janeiro17 Junho12h4217h324h50463

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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