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Um olhar crítico e científico sobre Imunidades Parlamentares

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Por: Olavo Francisco Franco Freire

S.Exª. Senhor Presidente da República de Cabo Verde, ao ser confrontado com a questão de levantamento da imunidade parlamentar, ironicamente afirmou que a Assembleia sabia que a consequência do levantamento da imunidade seria a detenção do Deputado. Salvo o devido respeito, discordamos em absoluto, pois, de acordo com as teses doutrinárias e jurisprudenciais expostas, não compete à Assembleia invadir a esfera do poder judicial, sob pena de conflito insanável entre os órgãos de soberania.

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As imunidades Parlamentares surgiram no contexto da Revolução Francesa no final do séc. XVIII como prerrogativa do parlamento moderno e do sistema representativo e assumiram desde a sua origem uma relevância teórica e prática muito considerável. O estatuto de imunidade que os deputados gozam visa, em termos sintéticos, a proteção de todas as funções constitucionais, isto é pretende-se que os parlamentares possam manifestar com absoluta liberdade qualquer opinião e exercer os votos de acordo com as suas convicções, sem temer a possível submissão a um processo penal, sendo certo que existem, de um ponto de vista politico, limites relacionados com a disciplina de voto (cfr.Hans Kelsen, apud Carla Amado Gomes, Estudos de Direito Parlamentar, p 566) – “os eleitores não designam os deputados em função de suas qualidades pessoais; o seu voto significa, antes, um ato de adesão a um determinado Partido, de modo que o candidato obtém o seu mandato em virtude da sua filiação em determinado Partido.”

Esse fundamento, dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em relação à Assembleia da República, acha-se no essencial, em duas razões (a) defender o deputado contra qualquer perseguição ou intimidação das autoridades, garantindo assim a sua integridade física, moral e política; (b) impedir que outros órgãos do Estado possam influir sobre a composição da Assembleia através da prisão de Deputados.

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Assim, a imunidade não consiste em isentar o deputado da possibilidade de ser detido, preso, ouvido ou julgado, mas apenas em proibir que o seja sem a autorização da Assembleia, que, deste modo, poderá averiguar se no caso há algum indício de que se verificam as razões que justificam essas imunidades, a defesa do Deputado contra perseguição ou intimidação e a preservação da composição da Assembleia.

Na visão de Jellineck, se para o parlamentar “não existe um direito a não ser detido, a não ser castigado, em contrapartida, as normas jurídicas que estabelecem tais privilégios, limitam necessariamente o poder do Estado em beneficio de determinados indivíduos, de tal modo que se amplia a sua esfera de liberdade”, temos a considerar teses doutrinárias que visam a compreensão da natureza jurídico-penal das Imunidades Parlamentares, de modo a desconstruir algumas declarações públicas desprovidas de fundamentações aceitáveis doutrinária e jurisprudencialmente, salvo o devido respeito. Na perspetiva de Fiandaca e Musco, não é aceitável reconduzir as imunidades à categoria de causa de exclusão da pena pois o seu efeito seria simplesmente a não aplicação de uma pena mesmo estando em presença de um facto criminal. O Parlamento apenas analisa os pressupostos que o permite ou não autorizar o levantamento da Imunidade ou a suspensão do mandato para o efeito de procedibilidade, pelo que a sua recusa, mesmo nos casos em que é obrigatória a decisão de autorização, obsta o prosseguimento do processo, torna-se imperioso considerar que não compete à Assembleia aferir da Culpabilidade ou Inocência do deputado, este papel é da competência do Poder Judicial.

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autorização da Assembleia é desde logo um imperativo nos crimes fora de flagrante delito cuja pena seja inferior a três anos, porque naqueles em flagrante delito, cuja pena seja superior a três anos, o levantamento da imunidade é obrigatório, e dá-se automaticamente. Também há casos fora de flagrante delito cuja pena em abstrato seja superior a oito anos em que a autorização do Parlamento também é automática.

Fazendo uso da hermenêutica jurídica, numa interpretação a contrario sensu do art° 170° da Constituição da República de Cabo Verde, o n°2 do referido art.° afirma que “nenhum deputado pode ser detido ou preso preventivamente sem a autorização da Assembleia, salvo em flagrante delito por crime a que corresponda pena de prisão, cujo limite máximo seja superior a três anos.” Significa dizer que a autorização da Assembleia é desde logo um imperativo nos crimes fora de flagrante delito cuja pena seja inferior a três anos, porque naqueles em flagrante delito, cuja pena seja superior a três anos, o levantamento da imunidade é obrigatório, e dá-se automaticamente. Também há casos fora de flagrante delito cuja pena em abstrato seja superior a oito anos em que a autorização do Parlamento também é automática.

Há ainda a considerar a tese sobre a natureza jurídica das imunidades parlamentares sobre a causa de exclusão da tipicidade ou da ilicitude, defendida por Marinucci e Dolcini, referindo que a imunidade parlamentar se trata especificamente dentro das causas de justificação de exercício de um direito, visto que a preocupação da norma constitucional é a de garantir o livre e independente exercício da função. Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram que a irresponsabilidade surge associada à liberdade de opinião, “à liberdade de parla”, ao privilégio da palavra ”à liberdade desvinculada no âmbito de exercício da função de Deputado, a irresponsabilidade segundo eles, visa garantir a funcionalidade do Parlamento (dimensão objetiva), garantir a liberdade de expressão de voto e de decisão dos Deputados (dimensão subjetiva).

Jorge Miranda e Rui Medeiros consideram que o regime de irresponsabilidade dos Deputados constitui uma exceção ao princípio de responsabilidade, seja qual for a qualificação dogmático-penal que se lhe dê, e seu ratio é preservar as livres opções políticas dos membros do Parlamento. Almeida Santos refere que em Portugal, como em muitos outros países que seguem o modelo francês, o Deputado não responde, nem civil, nem criminal nem disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitir no exercício das suas funções.

Paulo Pinto de Albuquerque recorre à analogia para salvaguardar a liberdade de atuação política dos órgãos (políticos) de soberania. Claus Roxin é claro em afirmar que a imunidade é o melhor templo de uma causa de exclusão de punibilidade, em virtude da qual estão isentos de pena os votos e manifestações parlamentares com exceção dos insultos conscientemente difamatórios. O autor considera que os insultos verbais ou a difamação em que podem incorrer os Deputados no Parlamento, não são apenas típicos, ilícitos e culposos, mas também do ponto de vista preventivo e da comparação com casos “normais” merecedores de uma punição maior.

Finalmente vamos analisar o parecer do Conselho Consultivo da PGR – Ministério da Justiça – Assembleia Regional da Madeira em 13/3/2009. O pedido de autorização deve conter desde logo a afirmação da existência de fortes indícios de que o Deputado tenha praticado um determinado crime, tal como a qualificação deste, para efeito de aferição da respetiva moldura penal, visando apenas a análise dos pressupostos para autorizar ou não a suspensão do mandato, mas nunca ajuizar sobre a inocência ou a culpabilidade do Deputado, pois esta pertence à competência do poder judicial, que é um outro órgão de soberania. Como resulta do princípio da separação de poderes e do fundamento material da intervenção parlamentar, a concreta ponderação dos elementos a fornecer e o juízo valorativo sobre a natureza dos indícios são Insindicáveis pela Assembleia.

A intervenção desta não visa controlar (internamente) o exercício de específicas competências por parte das autoridades judiciárias, mas sim, garantir (externamente) a dignidade da Assembleia e que outros órgãos do Estado não interfiram indevidamente no exercício da função parlamentar ou na sua composição.

S.Exª. Senhor Presidente da República de Cabo Verde, ao ser confrontado com a questão de levantamento da imunidade parlamentar, ironicamente afirmou que a Assembleia sabia que a consequência do levantamento da imunidade seria a detenção do Deputado. Salvo o devido respeito, discordamos em absoluto, pois, de acordo com as teses doutrinárias e jurisprudenciais expostas, não compete à Assembleia invadir a esfera do poder judicial, sob pena de conflito insanável entre os órgãos de soberania.

Ao Parlamento apenas lhe compete aferir os pressupostos da norma para o efeito de concessão ou não da autorização que lhe foi solicitada pelo PGR. O fundamento das imunidades reside na necessidade de proteção do Parlamento e, reflexamente, do Deputado, face a eventual utilização da via penal com o propósito de perturbar o funcionamento da Assembleia ou alterar a composição resultante da vontade popular.

Julgamos que a solução proposta equilibra os dois universos em causa, a mediação feita pelo Parlamento, neste tipo de circunstâncias, não é uma prerrogativa nem nenhum direito dos Deputados, é a Dignidade do órgão de Soberania, Assembleia Nacional.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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