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Trá boca de morte

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Depois do funeral seguiu-se uma inútil discussão pois era evidente que a escolha do bar para ir “trá boca de morte” recairia no “Nôs Vida”, trás de çumter, especializado em hambourgoff e scopeta quando “ka tem morte” e em tudo o que é cacos e bafas nos dias bons, ou seja quando morre alguém.

O bar “Nôs Vida” é a real encarnação de que em Mindelo, depos de mort nôs ê tud igual. Já lá vi advogados, escritores, pescadores, putas, médicos, portanto, ricos, remediados e pobres, ou seja todos aqueles que são sensíveis à alma mindelense.

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Naquele dia eramos uns dez só no nosso grupo, chegamos ao bar, onde já estava muita gente, a rir e a falar alto, dava um jogo do Porto na TV, numa mesa de benfiquistas quase todos implicavam com o Marega tendo um deles dito, que ”kel bic de kel fdp tava da pa fazê uns 30 torresmos”.

Ia chegando muita gente, mandingas, putas, caras e baratas, muitas mulheres, quase nenhuma vestida de preto, persistindo o bom gosto mesmo em hora de funeral.

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Os donos do bar não paravam, duas filhas e uma amiga faziam um vaivém incessante do balcão para as mesas, ao fundo música alta, muita gente de pé, chega o pessoal que tocou no funeral, começa-se a ensaiar uma batucada e a relembrar o nosso amigo morto e suas imortais peripécias.

Chamou a atenção de todos a chegada de um preto de 2 metros, com um olho igual às bolas conga quando jogávamos matas (e não matis como se diz agora), da mesa de benfiquistas seguindo o jogo do Porto, dizem logo, “este é primo do Abboubakar”, “bsot cuidod ele ê futcer”, avisa um chauffeur de táxi, posicionando-se frente ao frigorífico da Superbock para que um camarada tirasse às escondidas duas garrafas que não iriam ser pagas.

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Uma linda mulher, conhecida por Perola Negra, assumia atitudes de estrela e recusava o abraço de um advogado que estava connosco, quase lhe mandando o copo de bandoi ao chão. “Bô ta c’vuta rapaz? Jam dzeb li bô ca ta pô. Mi um tem xerém quente e diaza um ka oia faça de Deus, se um panhob um ta matob, sentá num lugar pa um ca ptob pa tête”. O advogado em desespero de causa ainda prometeu, brincando, deixar-lhe algo em testamento. Perola Negra respondeu logo “agora bô crê ê morrê de bala, bô sabê que quonde tem herança família ta trá pistola logo na çumter”.

Na nossa mesa, já cheia de garrafas de cerveja e cálices de grogue, bandoi e estompê, lembrou-se a cena de um amigo que tinha oferecido uma foto a uma puta em Rotcha Nú, mais exatamente na Rua das Pernas, tendo a gaja colocado a foto na mesa-de-cabeceira numa moldura “kretcheu”. Todos os que iam à cama da puta, famosa pelos seus gritos fingidos que acordavam os vizinhos mas que conquistavam os clientes, acabavam por ver a foto e a primeira coisa que faziam no dia seguinte era dar a noticia na Rua de Lisboa, o que causou problemas ao amigo pois a anedota chegou à boca da esposa.

Um senhora que vendia mancarra chegou a ensaiar uns passes de samba, deu uma ‘topada’ à entrada e exclamou “pqp, bsot ca ta compô esse entrada?”, “txam pô bsot ele?”, “pô kel mancarra derriba de mesa, bo bem li dá-me um fala”, acho que terão resolvido algum pendente pois voltaram do pequeno quintal, a vendedeira com quatro milenas nas mãos. ‘Dnher na mon , costa na txom, ka ninguém espia-me…”. O amigo que lhe tinha dado os 4 contos começou a ‘fazer garganta’ e a dizer que sentia-se muito mal por pecar ao deixar a mulher em casa para ir ficar com a vendedeira. “No teu caso não é pecado, é milagre se conseguires alguma coisa”, “bá gôrá bô mãe, cadelo da merda, nha fama de cmedor è espaiod na tud Fund de Nova Moca”, “Sentá li bô cmê esse moreia, moss, larga cont de pxá da mon bô ca passa vergonha”.

Comíamos mancarra quando chega Djulay, mon croc ta pedi esmola, “amor, dá Djula um cosa”, vai passando pelos clientes, um deles, bem disposto e com muitos cacos já na mlera, sorri, Djula diz-lhe, “ranja-me 100 escud pa alma de falecid”, “um tem sô um nota de 200 bala , Djula”, “enton tmá 100 bô dá-me kel 200, amor”, negocio feito, Djula vai ao balcão e pede logo “um vin, ma cuidod bo ka butzal, tcham ba ta dzeb”.

Quando veio à baila a questão do preço de bilhetes de avião, um incorrigível abusado perguntou se alguém sabia quanto tinha pago o nosso Brodix por um bilhete até o céu, todos disseram não saber mas que de certeza tinha sido mais barato do que os voos inter-ilhas e sem pagar taxa nem visto. A brincadeira do bilhete para o céu não agradou a um amigo católico que estava na mesa, tendo o abusado lhe garantido que não precisava se preocupar, ’o nosso Brodix deve ter viajado com um zorro, Deus ca ta pol oi de cima’.

Um médico cubano que chegou ao bar apenas sorriu perante a algazarra do lugar e comentou em portunhol que para se conseguir viver em S.Vicente, “hombre, oh loco o borracho”. “Bô pa bô vra crioulo faltob ê bibê aga de solda, diab”, disse-lhe um amigo naquele ambiente que parecia mais de festa do que o prolongamento de um funeral.

Já passava das 22h quando se bebia o 7º grogue (‘oh c mo grogue ê sabe, jam sinti coração começa ta trabaia dret…’ comentou alguém), toca o telemóvel de um amigo na nossa mesa, fica com ar preocupado e depois de desligar pede silêncio:

‘Nh’amdjer dzê que Brodix caí na corrente na sessão e ele dzê já ta na hora de cada um espiá solera de sê porta’’.

Uma ultima rodada foi pedida, tud gente já c pê olt de txom, mandamos o grogue goela abaixo e despedimo-nos do Brodix com a dor simples, natural e ingénua, quase deliciosa, de um povo cantador, dançador e que acredita em Deus, futçaria e espiritismo.

Um camarada pede mais um grogue, vai à porta, olha para o cemitério, levanta o cálice e deita a bebida ao chão: “pa bô, Brodix”. Foi a despedida do corpo de alguém que durante muitos anos foi fiel intérprete da alma estóica, sensual e carnavalesca de uma ilha.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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6 Comentários

  1. Acho que uso de outro termo em vez de “puta” cairia melhor.
    O jornal não devia aceitar artigos com tal linguajar. Mas como não sou eu a decidir isso, fica a minha humilde opinião.

  2. Gostei imenso, fartei-me de rir com este humor tipicamente mindelense. Quanto à linguagem que um comentarista crítica acho que o termo “puta” deve ser visto dentro do contexto do conto que não tem nenhuma preocupação puritana. Aliás o termo “prostituta” não se adaptava no estilo desta peça.Não sei se é ficção mas é um retrato bastante fiel da realidade da vivência quotidiana no Mindelo nessas ocasiões.
    Para o autor: – Que venham mais histórias com este estilo bastante aparte.

  3. Esse cara é bom.
    Rocca Vera Cruz, que sigo no Facebook, mas Vontade de agradecer um dia pelo contributo dado a cultura caboverdiano. Que fique a publicar estes contaosvem obras.
    O povo agradece.

  4. Grande texto, típico humor e típica linguagem mindelense, que venham mais histórias como esta que retratam o quotidiano dos Crioulos, obrigado

  5. Abo e trividu isso sim… mudar o nome mudaria a essencia do conto… Nao tem mal nenhum esse termo> Ou bu ka gosta de um puta??

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