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O não-subsídio da Educação Musical e Artística em Cabo Verde – Um caso de desgovernança para se envergonhar

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Por: Tchida de Nhô Djô ma Nha Tchitcha

Quem é que não se lembra 

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Daquele grito que parecia trovão?

– É que ontem

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soltei meu grito de revolta…

(Amílcar Lopes Cabral).

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“Cabo Verde não precisa de músicos”. “A terra tem muitos talentos’. “O povo é que não sabe aproveitá-los”. “Nesta terra nada dá certo”. “Aqui, as coisas são permanentemente incipientes”. “Tudo está sempre num eterno começo”. “Só se fala em potencialidade, arre!” “Nada parece vingar nesta terra estéril”. “Ah! Pa kê studa musika?”

Nestas frases transcritas acima encontram-se muitas doses de “verdades”, insensibilidades, incompreensões e, principalmente, aquele espírito de qualidades sub-reptícias que insiste em demarcar que nós não servimos para determinadas coisas. Escutei cada uma destas frases, em situações variadas, de pessoas muito diferentes. Mas, posso acrescentar que as escutei de estrangeiros e de nacionais, igualmente.

Cheguei à cidade da Praia em setembro de 2010, à convite da então coordenadora da Escola de Música Cimboa, do Palácio da Cultura Ildo Lobo, a saudosíssima Samira Pereira. Encontrava-me em Porto Novo desde junho daquele ano, depois de passar um período ininterrupto de 13 anos no Brasil, cursando licenciatura em música e trabalhando como professor de inglês, de música e de arte-educação no geral. 

Estagiei como monitor de práticas musicais no Centro de Integração Social e Educação Profissional (CISEP-PE). Participei como voluntário e bolsista no Departamento de Atividades Culturais e Desportivas (DACD) da Prefeitura do Recife, na época de João Paulo e do governo Lula. Participei como arte-educador de várias edições da mobilização dos Sem Terrinha (MST) de Pernambuco na época em que eventos deste tipo eram realizados na Universidade Federal. Fui professor de Inglês no ensino fundamental e médio, professor de iniciação musical e ao violão em escolas particulares e públicas. Estas últimas, através dos programas sociais e culturais em vigor na época do governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2016).

Durante esta trajetória, enquanto fiz parte de uma banda com outros músicos jovens na época em Recife, vi muitos dos jovens e das jovens adolescentes atendidos nos programas desenvolver a consciência política e ingressar ativamente na vida cultural e nas agendas festivas como participantes e integrantes de maracatus, cocos, músicos de bandas de forró, reggae e de outros estilos, regularmente. Isso aconteceu durante a década de 2000.

Quando comecei a trabalhar com a equipe na escola Cimboa, presumia que aquele grupo de profissionais da música estaria ciente e praticando uma forma comum de  “interdisciplinaridade facultativa” para o bom entendimento e funcionamento da música em suas diferentes propriedades interconectadas, e para as formas da sua apreensão, nomeadamente, tátil, auditiva e visual. 

Na época, através da experiência adquirida na prática do método criado pelo compositor alemão Carl Orff, amplamente usado no curso de licenciatura da UFPE, tinha-me também despertado para o papel do “corpo como instrumento de percussão” [este foi o título de meu trabalho de graduação] no aprendizado da alfabetização musical. Na época, não havia sequer a disciplina de percussão erudita  no curso de música da UFPE, uma contradição gritante, visto que, Pernambuco se destaca como uma das capitais das músicas essencialmente percussivas de origem africana e indígenas do Brasil. 

Portanto, quando cheguei em Praia estava com a cabeça cheia de planos. Visualizava as questões de iniciação às práticas musicais atreladas às práticas coletivas de percepção. Uma das primeiras prerrogativas para estudar música é aprender a ouvir e são estas as funções das abordagens rítmica, melódica, polifônica e harmônica no aprendizado musical. Durante a graduação, o aluno cursa quatro anos de disciplinas de percepção e prática, com exercícios e provas de ditado musical para um ou mais vozes.

Com o tempo, aquelas aulas desconfortáveis, recheadas de exercícios difíceis de perceber, vão se organizando de forma prazerosa. A gente aprende a associar os intervalos de quarta e quinta perfeitas, as sextas e as sétimas menores com melodias de canções ou outras peças musicais conhecidas conhecidas etc. Com a prática, aprendemos a compartilhar nossas percepções e afeições sonoras e auditivas com aquelas pessoas que aprendem solfejo, ou participam de um canto coral, ou mesmo cantam na noite. Aprender música tem mais a ver com aprendermos sobre nós mesmos, apercebermos das situações a partir de outras perspectivas e nos posicionar. Música é som e silêncio organizados continuamente em equilíbrio e harmonia no tempo e no espaço – a verdadeira dimensão da vida.

Tive longas conversas e até discussões intensas com Sams sobre estes assuntos. Sobre a minha incapacidade inicial em convencer o grupo de professores que estes aspectos multidisciplinares precisavam ser abordados de forma crítica e incorporados ao programa de ensino da música da escola. Conversámos sobre a importância do solfejo, da iniciação musical, da apreciação e contextualização das histórias das músicas do mundo, o estudo das técnicas em separado dos instrumentos. 

Durante os onze meses que trabalhei no Palácio, fui sub assalariado. Acreditem, o que ganhava não dava nem para pagar a renda do apartamento que dividia com outro forasteiro em Praia. Outros momentos foram bastante positivos e provaram, pela aderência às aulas, que as práticas indicadas estavam a surtir efeito. Contudo, duas coisas causaram profunda decepção e tristeza na época.

Lembro-me da Samira Pereira com água nos olhos quando foi a um quartinho nos níveis inferiores do edifício e encontrou uma diversidade de instrumentos musicais e equipamentos eletrônicos abandonados na escuridão, humidade e mofo. Ela disse-me muito chateada: “Possa pá! N ka te kerdita ke esh gent teve koraja de fase un kosa des, Tchida. Te da-n um dor na korason. Moss, oiá es violino, ark ka ten krina, e es banjo já descolá kel pele, … krêd, tud desafinóde, kebróde, maltratóde. Inacreditável!”

A situação referia-se à quantidade significativa de instrumentos armazenados de forma inadequada, danosa até, no Palácio Ildo Lobo, enquanto centenas de escolas poderiam estar a usufruir do material para propósitos lúdicos. Estava tudo a apodrecer porque as pessoas responsáveis, ou não tinham visão ou não tinham vontade. A inventariação realizada aos itens revelou que aproximadamente 40%  estava danificado, parte destes poderia passar por reparos em alguns casos, ou haviam sumido.

O segundo caso foi a recusa de um dos professores em concordar com as outras atividades estipuladas para a iniciação musical e teórica e prática dos alunos. Aquele gesto feriu-me porque, de cara, deixou transparecer falta de empatia e incapacidade em aceitar melhorias. Menos mal, um dos melhores alunos deste ‘amigo’ professor foi assistir às aulas de solfejo, e outras dinâmicas lúdicas, gostou e preferiu fazer iniciação ao violão clássico com as peças de Henrique Pinto. Nunca esqueci-me desta lição, foi salutar. 

 A aceitação e o desempenho das sugestões de inovações curriculares e programáticas, mesmo num estado incipiente e elementar despertaram a atenção e o interesse da então coordenadora da Casa da Música, a qual lecionava uma disciplina de canto coral na Cimboa, e no mês de abril de 2011, seria contratado pela Uni-CV, como técnico superior [graduado], para atuar como professor de música na universidade.

Não deveria ser necessário reiterar que, como um professor de música licenciado estudei diferentes abordagens disciplinares como o estudo da percepção e instrumentação; estética e estruturação musical; fundamentos da construção musical; metodologias de estudo e pesquisa; técnica vocal; história da arte; história da música, para além das disciplinas referentes ao campo da didática e do planejamento programático de conteúdos adequados; da psicologia da educação; estrutura e funcionamento do ensino; das práticas corporais e instrumentais; do canto coral e da regência de coro e banda, como consta do histórico acumulado da graduação emitido em 2010.

Durante os primeiros meses do contrato, passei bastante tempo num escritório no edifício da reitoria, onde tinha acesso a um computador institucional, com internet e, assim, condições de realizar minhas primeiras tarefas: desenhar um quadro de disciplinas relativas à teoria e prática musical elementar. Portanto, foram meses pesquisando programas similares existentes noutros países, comparando-os com o perfil dos alunos a frequentar o curso. Mas, na primeira reunião com o reitor, na época já na fase cessante, todos os meus planos tiveram que ser reformulados. 

Pois, na época, o reitor prof. Dr. António Correia e Silva partilhava de uma perspectiva que desconsiderava todo o trabalho estrutural de base a ser feito e recomendado por mim, pela Lúcia, de acordo com as nossas observações iniciais. Lembro-me de duas frases que o reitor usou: “No âmbito da cultura, neste caso da música, não se precisa necessariamente partir da base para o teto. Não necessariamente nesta ótica”. Eu pensei incrédulo: “Tá!” 

Defendi este argumento há dez anos e, ainda hoje, defendo-o irredutivelmente. Criar condições de formação de recursos humanos que possibilitem a alfabetização musical e a educação artística nas escolas de base e intermediárias é um dos objetivos nobres de uma escola de música da Universidade de Cabo Verde. Este argumento, defendido há dez anos naquela reunião está diretamente implicado nas políticas de turismo de urbanismo e com as propostas cosmopolitas de desenvolvimento sócio-cultural assinaladas pelos sucessivos governos centrais e municipais.

Estamos nos referindo aqui, ao leque de experiências educativas diversificadas que deve ser proporcionado à criança, ao adolescente e ao jovem cabo-verdiano que vive o contexto contemporâneo. A noção errônea de que o cabo-verdiano não precisa estudar música é alienante, exotizante e restringe a diversidade de opções de desenvolvimento cultural das gerações mais novas. Há necessidade de valorizar as metodologias autóctones tanto quanto as convencionais para os aprendizados musicais ocidental e africano. E, mais importante, trabalhar a conscientização da música como um processo social de aprendizado e de transmissão de saberes e práticas de outras ordens que não necessariamente a música.

A verticalidade hierárquica, a rigidez da sua respectiva performance, seu intencional aspecto de categorização, classificação e demarcação dos espaços que supostamente definem a utilidade de cada um no seio da instituição, são resíduos do colonialismo e talvez sejam uma das maiores barreiras enfrentadas em certos ambientes institucionais do nosso país. Este contexto, nefasto, cria ambientes de fragmentação que favorecem os cultos aos pequenos poderes, situações que são, quase sempre,  revertidas em desfavor da parcela mais vulnerável do embate.

Evidentemente, a Casa da Música da Uni-CV foi a protagonista de uma agenda cultural, de 2011 a 2016, de excelente nível. A página do Blog Músicas na Uni-CV, disponível na wordpress.com, traz uma narrativa visual desde o 1º Encontro dos Músicos realizado no auditório do edifício da reitoria em Janeiro de 2010. Época na qual as aulas de canto e aulas de guitarra se iniciaram na Uni-CV. Na narrativa visual do blog percebem-se exposições, os workshops do Kriol Jazz Festival na Uni-CV, com profissionais da música, mostras de cinema, aulas abertas, feiras, recitais, concertos, homenagens etc.

A importância deste processo para a construção do conceito da Casa da Música é indelével, pois antes de um projeto, foi uma experiência em rede que entrelaçou e afetou a trajetória de uma multiplicidade impressionante de indivíduos. As sessões das conversas com compositores, tocadores de instrumentos tradicionais, poetas, jornalistas, professores, produtores musicais, multi instrumentistas etc., foram fonte de grande conhecimento sobre a história e a variedade das manifestações musicais em Cabo Verde.

Todo o leque de actividades e eventos realizados no âmbito da agenda cultural da Casa da Música desempenha um papel de extrema importância na sensibilização do público. Contudo, é incontornável o fato de que a falta de incentivos, a interferência verticalizada, combinada com a escassez de recursos humanos, a falta de vontade institucional, entre uma série de outros fatores perturbam a construção de projetos mais concretos e condizentes com as realidades artísticas e musicais cabo-verdianas. 

Um dos obstáculos mais indecentes e ilegais é a prevenção da contratação ou mesmo estabelecimento de colaboração com profissionais, intelectuais, acadêmicos e pesquisadores por parte de forças internas ou, forças inefáveis, que influenciam as decisões da universidade. 

Que fique claro e acertado que estes comportamentos indesejáveis e sub reptícios, para além de desonrosas, caracterizam estratégias de dominação, prejudicam diretamente a vida pessoal e profissional dos cidadãos, ofende, em grandes proporções, a instituição no âmago dos preceitos e valores que a fazem possível e impedem o desenvolvimento de novas gerações.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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