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Língua Cabo-verdiana: Oficialização e Alupec

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Por: Adalberto Silva – Betú

Essa de tentar dividir os cabo-verdianos entre os que defendem e os que não defendem a valorização da língua cabo-verdiana é uma tolice! O cabo-verdiano é cabo-verdiano, antes do mais, por falar e viver a língua cabo-verdiana como nenhuma outra. Duvido que haja quem de senso que não queira a valorização daquilo que é seu e que o identifica!

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Da minha parte, desde há muito tomei consciência da importância da minha língua materna na minha identidade como pessoa, sobretudo quando fui estudar em Portugal. Não era por acaso a grande diferença de estado de espírito quando estava entre colegas cabo-verdianos ou colegas portugueses, pois a falar crioulo sentia-me como peixe na água e a falar português nada mais que um simples nadador.

Vem isso a propósito das recentes reações sobre a nossa língua, na comunicação social e nas redes sociais, suscitadas pelo discurso bilingue do novo Presidente da República na tomada de posse e da notícia da intenção do Governo de iniciar a experiência do ensino da língua cabo-verdiana na escola.

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Essas reações só vêm demonstrar o quão importante é a língua para a comunidade e justificar a necessidade de se disponibilizar todas as informações e todos os esclarecimentos sobre as medidas que lhe digam respeito!

Pessoalmente, fico dividido entre vários sentimentos. Primeiro, de contentamento, por ver que há alguma movimentação no sentido de se atender ao preceito constitucional que obriga o Estado a promover a oficialização da língua cabo-verdiana. Segundo, de alguma perplexidade, por não ter conhecimento de já se ter resolvido a questão da padronização da língua a ponto de alguns estarem a exigir já a sua oficialização! A não ser que se contente apenas com o facto de haver já uma proposta de alfabeto, ainda que seja apenas um dos requisitos para a padronização da língua! E isso pressuporia a assunção definitiva do Alupec, apesar de não ser consensual!

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Concernente à oficialização da língua cabo-verdiana, tem-se dito que a padronização deverá considerar todas as variantes do crioulo. Por mais voltas que eu dê à cabeça, não consigo vislumbrar uma solução para essa equação, tendo em conta a profundidade das diferenças entre as variantes existentes! Diferentemente do caso português, em que as variantes se reduzem praticamente às diferenças na pronúncia, as variantes do crioulo diferenciam-se tanto na sintaxe como na morfologia. Veja-se, por exemplo: “N´ ca sta bai gossi” (Santiago); “Mi n´ de bá grinhassim” (Santo Antão).

A oficialização da língua não se cinge à sua estatuição na lei. Ela implica a obrigação das instituições do Estado à sua utilização, o que só é possível com a padronização. Se cada um de nós cidadãos, sampadjudo ou badio, pode ter a liberdade de escolher a variante que entender para o seu uso pessoal, o Estado, a entidade abstrata que representa todos os cidadãos, tem que utilizar a língua padrão obrigatoriamente. Portanto, não se entende que possa haver oficialização sem padronização!

Mas isso é lá com eles, os especialistas! Da nossa parte resta torcer para que haja uma luz na resolução dessa intrincada questão para que venhamos a ter um padrão para a nossa língua materna, condição para a sua plena oficialização.

Entretanto, as minhas verdadeiras reservas têm a ver, desde sempre, com o Alupec, o alfabeto proposto para a escrita do crioulo, por duas razões fundamentais:

1ª – Não respeita a história da língua cabo-verdiana

A língua é o primeiro património cultural e identitário de uma nação e, como tal, detentora de uma história.

O nosso crioulo é uma língua que se formou da relação entre falantes de português, com o seu alfabeto latino, e falantes de várias línguas africanas, sem alfabeto.

A necessidade de se escrever em crioulo terá surgido no século XIX com os poetas cabo-verdianos, particularmente os compositores de morna, recorrendo-se essencialmente ao alfabeto português. Para os fonemas crioulos inexistentes em português, convencionaram usar o dígrafo “dj”, o trígrafo “tch” e o grafema “n’”. Desses, apenas se mantém o “dj” no Alupec, substituindo os restantes respetivamente por “tx” e “N”.

É com base nesse alfabeto herdado, embora não formalizado, que se escreve em crioulo há mais de um século e que escrevo as letras das minhas composições desde os 17 anos de idade e, confesso, sem as dificuldades que agora se inventam para justificar o Alupec!

2ª – Não respeita a coabitação com a língua portuguesa

Propor para a língua cabo-verdiana um alfabeto diferente do português – língua que continuará a ser oficial e a exigir o dever de ser conhecida e utilizada – obriga os cabo-verdianos a escreverem de maneira diferente palavras iguais ou semelhantes, uma vez que a base lexical do crioulo é o português. Muitas palavras com exatamente o mesmo som e o mesmo significado passam a ser escritas de forma diferente em 50% ou mais! Exemplos: casa/kaza; crise/krize; constituição/konxtituisão, exagero/izajeru, etc. E não é por acaso que já se nota alguma confusão na escrita do português, com utilização do “k”!

E tudo isso com o argumento de economia e simplicidade, porque o Alupec se baseia no princípio fonológico de associar a cada som uma letra. Contudo, contrariamente ao que se pretende fazer crer, o Alupec não garante inteiramente esse objetivo, e as exceções não são poucas! Vejamos alguns exemplos de exceção à regra:

– Os dígrafos, duas letras para um som (“nh”, “lh”, “dj”, “tx”);

– Uma mesma letra para sons diferentes (“m” – em “manda-m”; “n” – em “nen”; N isolado e maiúsculo – em “N gosta di Natal”);

– Letras diferentes para um mesmo som (“m” e “n” – em “perdoa-m/perdon”; “i” e “y” – em “sin y não”);

– Deseconomia em casos de palavras com o mesmo som, mas mais letras (fixo/fiksu; nexo/neksu), etc.

Porém, a diferença mais revolucionária do Alupec em relação ao alfabeto português é a supressão da letra “c”, uma das consoantes mais frequentes, e a sua substituição pela letra “k”, uma consoante praticamente inusual em português! Aqui, o argumento normalmente utilizado é o presumível simbolismo africano da letra “k”, fazendo lembrar os poetas crioulos africanistas da época revolucionária. A verdade é que essa associação de “k” a África não encontra respaldo nem na história, nem na realidade contemporânea. Segundo se sabe, “k” é uma letra de origem grega que praticamente perdeu utilidade nas línguas latinas. Também é sabido que as línguas africanas mães do crioulo não tinham alfabeto e estarão ainda em processo de alfabetização, seguindo uma referência que curiosamente não dispensa a letra ”c”!

Apesar das exceções à regra referidas acima, não há dúvida de que o Alupec é um sistema de escrita económico e simples, qualidades importantes e atrativas que poderão justificar, em parte, o nível de aceitação que já atingiu, ainda que longe de se considerar consensual. Porém, nem sempre o mais simples é mais vantajoso. A mente humana pode preferir a simplicidade, mas é com a complexidade que se desenvolve. Basta ver que nenhum dos países mais avançados precisaram de dispensar o alfabeto herdado de base etimológica para se desenvolverem! Outrossim, no nosso caso de poder haver futuramente duas línguas oficiais, sempre seria mais um alfabeto (Alupec), ainda que mais simples, a acrescentar à obrigatoriedade de um outro menos simples (alfabeto português), o que de modo nenhum se poderia considerar simplificação da situação!

Uma franja significativa do povo cabo-verdiano tem manifestado a sua rejeição ao Alupec, uns com razões fundamentadas, outros por incompreensão do que realmente se propõe. No meu caso, as reservas estribam-se fundamentalmente nas duas razões acima referidas: o facto de não respeitar a história da língua cabo-verdiana e o de poder contrariar a boa coabitação com a língua portuguesa que não deixará de ser cooficial.

O Alupec é, até ao presente, a única proposta tecnicamente elaborada para a escrita do crioulo, mas não quer dizer que seja a única possível. Se desde há muito tempo fomos e somos capazes de escrever o crioulo com o alfabeto de base etimológica herdado dos nossos antepassados, custa-me acreditar que não se possa trabalhar uma proposta tecnicamente fundamentada nessa linha. Talvez esteja a faltar um pouco de ousadia de outros especialistas para contrariar a tola ideia de que “quanto mais desportuguesada a língua cabo-verdiana, melhor”!

Como diz o outro, “História é História!”

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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