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Filha de “Sr. Reis” aborda origem do maestro e professor no 126º aniversário do seu nascimento

Assinala-se hoje o 126º aniversário do nascimento de José Alves dos Reis, aquele que viria a ser o principal impulsionador do ensino e execução da música em Cabo Verde. Mesmo assim, a data passa despercebida por quem de direito para o desapontamento da família do ilustre maestro, professor, musicólogo e político, que considera ser este merecedor de melhor consideração das autoridades cabo-verdianas, onde viveu e morreu a 9 de Outubro de 1966. 

Em declarações ao Mindelinsite em Lisboa, Cristalina Reis, a penúltima filha do extinto professor “Nhô Reis” – como era carinhosamente chamado pelos seus alunos – afirma que há alguma desinformação a cerca da verdadeira identidade de José Alves dos Reis e que, no seu entendimento, urge ser esclarecida e reposta visto que muitos desconhecem a origem do “maestro e professores dos nossos maestros e professores”, como comentou um seguidor da página “Orgulho Nacional” no Facebook de Any Delgado.

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Questionada sobre quem foi então “Nhô Reis”, Cristalina Reis fez saber que, sendo cabo-verdiano de origem, pai de Santiago e mãe da Ilha do Fogo, José Alves dos Reis nasceu a 20 de Março, 1895, em Ceu, no Concelho de Bolama, Guiné-Bissau. É filho de Augusto Frederico dos Reis, alferes de profissão, e de Apolinária Maria Henriques, costureira.

Nasceu no seio de uma família com cinco filhos em que o pai de “Nhô Reis”, militar na altura da independência de Goa (India), pertencente na época a Portugal, foi escalado para liderar uma companhia de guerra para aquela antiga colónia. A mulher e os filhos, de acordo com Cristalina Reis, ficaram na Guiné-Bissau.

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Augusto Frederico dos Reis, pai de “Nhô Reis” foi ferido com gravidade e, por falta de tratamento adequado em Goa, acabou por morrer de gangrena. A mulher ficou sozinha com os filhos e a solidão levou-a a adoecer e morrer, ficando os filhos, entre os quais “nhô Reis”, entregues ao governo colonial. Atendendo que o pai deles tinha falecido na Guerra, o governo de então assumiu a responsabilidade das crianças.

Na altura, os orfanatos eram os sítios onde amparavam as crianças sem famílias e de militares falecidos na guerra. Deste modo, os filhos, muito novos, entre os quais “Nhô Reis”, foram enviados para Portugal e separados por idade. Assim, conta a nossa entrevistada que as mesmas ficaram sem contactos o que levou a que não aguentassem tamanha reviravolta nas suas vidas, sem pai, mãe e irmãos. 

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José Alves dos Reis foi o único sobrevivente da tragédia dessa família que entretanto tinha um tio, irmão do pai na Guiné-Bissau, que, segundo a filha, não teve qualquer iniciativa em amparar os sobrinhos pois, de acordo com o que conta Cristalina Reis, este tinha interesse apenas nos bens que eram dos sobrinhos.

 Assim, José Alves dos Reis cresceu em PT e desde muito cedo revelou-se um talento nos instrumentos musicais. Aos cinco anos de idade já tocava piano com perfeição, tendo sido levado ao palácio do Rei para tocar. Continuou os seus estudos até aos 18 anos no orfanato, altura em que foi enviado de volta para Guiné-Bissau. Estando lá, tentou tomar posse dos bens dos pais que, entretanto, tinham sido apossados pelo tio. Este, diz a filha, recebeu-o como alguém que o ia ajudar por pena, e não pelo que era dele por direito. 

Deste modo, o músico recusou a ajuda do tio e foi morar com um padre que já o conhecia, pois era muito religioso. Ajudava o padre nas missas e começou a se preparar para também vestir a batina. 

Uma irmã religiosa italiana que passou pela Guiné Bissau, ao ouvi-lo a tocar ficou encantada e pediu para falar com ele, perguntando-lhe se queria mesmo ser padre ou se não gostaria de estudar música. “Era tudo o que ele sempre quis, mas ficou sem posses. Foi assim que concordou com essa sra e partiu com ela para Itália onde foi matriculado na universidade de Milão e onde fez a conservatória”, conta a referida fonte, acrescentando que, após terminar a conservatória, Nhô Reis ganhou uma bolsa para fazer estágio na Rússia e Alemanha, países  esses que na altura eram os mais famosos em termos de formação e educação musical. 

Músico com dom político

Na passagem por esses países, de acordo com Cristalina Reis, o seu pai também desenvolveu o dom de político que já existia nele e, para além da música, também começou a despertar o desejo de criticar coisas que no seu ver não estavam correctas, a começar pela sua própria vida que tinha passado e o que via no país onde nasceu. Feito o estágio e terminado o curso na conservatória de Milão, retornou para Guiné-Bissau, sempre seguido pela sra que o adoptou como filho. 

Cristalina Reis

Voltando a Guiné-Bissau, e sendo uma pessoa com estudos elevados, foi nomeado administrador de Bafatá. Como administrador tinha poderes e com eles começou a trabalhar, principalmente com as pessoas mais pobres, e encetou mudanças que não foram bem vistas pelo governo colonial o que levou a que ele fosse enviado para Cabo Verde como exilado político. 

Foi assim que José Alves dos Reis chegou a Cabo Verde e foi onde começa a boa parte da história desse homem que ajudou muitos jovens a se desenvolverem como músicos e enquanto políticos e ativistas. Utilizava os espaço onde ensinava a música também para fazer reuniões políticas clandestinas e mantinha igualmente contactos com Amilcar Cabral através de uma rádio transmissor que instalou numa cozinha que fez no quintal da casa, cujo objectivo era estabelecer ligações com fins políticos.

Como músico, já se sabe o papel que desempenhou em Cabo Verde, tendo sido fundamental para a formação de personalidades como Luís Morais, já falecido, Joaquim Almeida (Morgadinho), o próprio Jorge Monteiro (Jotamont), Humbertona, Abílio Duarte, entre vários outras…

Morgadim relembra o maestro, professor e musicólogo 

O compositor, músico e intérprete Morgadim, um dos expoentes da música de Cabo Verde, relembra que foi em 1950, sob a influência de alguns amigos da sua infância, que se matriculou na escola de música da Câmara Municipal de São Vicente, sob a direção do professor e maestro José Alves dos Reis. 

“Naquela época, os jovens pouco se interessavam pela aprendizagem da música isto porque havia outros atrativos, como o futebol e os passeios na praia  da Matiota. Como muitos ficavam longo tempo no solfejo acabavam por desistir”,  revela Morgadinho, acentuando que, sendo o ensino de forma tradicional, fastidioso, não entusiasmava esses jovens. 

Esse artista confessou que pensou em desistir a dada altura, mas era sempre incentivado pela mãe e pelo professor “Nhô Reis”. O motivo que alegavam para tal, segundo Morgadim, era de que tinha muito jeito para a música. Deste modo explica que, com o impulso do professor, passou a ganhar gosto pela aprendizagem e ficou a seguir as aulas mais atenção e interesse em progredir.

Deu a entender que, com apenas seis meses de aprendizagem, passou de ” aluno de 2ª classe para “chefe de naipe”,  responsável dos exercícios de dois colegas, e com isso sentiu-se integrado. E, acrescenta, “como um bom aluno teria responsabilidade na Banda que ia se formando. Fez saber que, se a memória não lhe falha, foi em 1951 que a Banda Municipal subiu ao “Corete” bem como, também, animou a “Procissão” no dia 22 de Janeiro, dia de São Vicente.

 “Tendo em conta a nossa idade, as pessoas achavam que éramos muitos novos para sermos músicos e constituíamos motivo de muito orgulho para a nossa família, amigos e vizinhos”, enfatizou Morgadim, que deu a conhecer a emoção sentida pela mãe quando ela foi ouvi-los no Coreto da  Praça Nova.

 Na verdade, de acordo com o autor da morna Cize, a Banda antigamente, antes da sua geração, era formada apenas com homens adultos, tais como Jorge Monteiro , “Jotamont” , Djack Estrelinha , António Santiago, entre outros. 

“Na nossa banda havia músicos tão jovens e o 3° trompete tinha apenas 12 anos de idade naquela altura”, disse este artista, antigo aluno de “Nhô Reis”. De acordo com ele, após algum tempo, já com um repertório bastante bom, ganharam uma certa admiração do público vicentino. 

Já em 1952/53 começou a tocar nos bailes de carnaval e a compor marchas e sambas carnavalescas e melodias que ainda se ouve na voz da Titina Rodrigues. Tudo devido a influência dos ensinamentos do professor Reis. Deu a entender que nas aulas teóricas do seu professor, José Alves dos Reis, este fala muito do facto de a morna nasceu na Boa Vista, aproximadamente nos séculos 18 e 19. Foi informado de que foi através dos navios a velas em que os marinheiros eram na sua maioria da Ilha da Boa Vista e exímios executantes de violão. Explicava-os, evidentemente, que a morna deu um grande salto, através das composições do maior autor e compositor  cabo-verdiano, Eugénio Tavares, natural da ilha Brava mas que todavia com o movimento do Porto Grande de S. Vicente, com as suas companhas de carvão, instalados pelos ingleses, daí que a morna daria um salto maravilhoso e grandioso em S. Vicente. 

Fez saber de que um dos ensinamento do sr. Reis e que ficou na sua memoria era de ele dizia que a “morna era mais velha do que o fado”. Disse ainda que o professor lhes dizia que o fado era do tempo de uma senhora que se chamava Severa, que cantava pelos lados do Cais de Sodré, em Lisboa e que nessa altura a morna já existia

Desta forma considera que a influência daquele professor, Sr. José Alves dos Reis, até hoje se sente e foi sobre a sua ” batuta ” que surgiu bons músicos, não só da sua geração, tais como Luís Morais e os seus tios Augusto Morais, Pedro Doroteia Morais “Duca d ‘ Nhô Pitra ” , Manuel Silva “Manel d’ Clarinete “, Manuel da Cruz “Manuel Ti’djena”, Tino de Nhô Tanes, Manuel de Fàtima , entre outros…

Para Cristalina Reis esta é a verdadeira identidade daquele que hoje, dia 20 de Março, faria 126 anos de idade. Acrescenta ainda que, quando o pai chegou em Cabo Verde, morou numa casinha em Alto S. Nicolau, onde, por iniciativa de Onésimo Silveira, foi colocado o seu nome e mandou fazer uma praceta em sua memória para dar a conhecer a sociedade por onde passou na sua chegada a Cabo Verde.

Durante a sua permanência em Cabo Verde, foi professor de música no Liceu Gil Eanes e também maestro criador da banda municipal. Recorde-se que nessa altura era o único formado em conservatória e dava aulas de qualquer instrumento musical.

Para os alunos, ele era mais um pai do que professor e sabia ver aqueles que tinha talentos para a música. Aliás, como nos confidenciou o seu antigo aluno Manuel Gaspar, como não tinha jeito pela arte ia a aula apenas para assinar o livro do ponto e saia para o pátio com outros colegas para não perturbar a aprendizagem dos alunos. “Devo confessar que ele era um homem muito educado, que transmitia serenidade e muito respeitado na ilha de S. Vicente. Em termos de música foi a figura proeminente no ensino e nos subsídios para o estudo da morna”, fez saber Manuel Gaspar. 

Na política foi mentor de Isaura Gomes e Elisa Andrade e serviu de ponte para Abilio Duarte e Silvino da Luz ingressarem nas fileiras do PAIGC na Guine-Bissau. Recolheu em sua casa muitas crianças e os formava. Relacionava-se com pessoas como Baltazar Lopes da Silva e António Aurélio Gonçalves, eminentes intelectuais cabo-verdianos.

Este homem não foi só musico e político, também era pai de família. Teve com a sua esposa seis meninas e um rapaz.

João A. do Rosário

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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