Pub.
Opinião
Tendência

A propósito dos noventa anos da Revolta do Capitão Ambrósio

Pub.

Os primeiros anos do século vinte trazem alguma esperança com a implementação da República, mas é “sol de pouca dura”.  Em 1912, cerca de 4000 carvoeiros ocupam o Edifício Municipal e a Praça da República em protesto à falta de trabalho. O movimento do Porto paralisa-se, é ultrapassado pelos portos de Dakar e Las Palmas. 

Por: João Delgado da Cruz

Publicidade

Um grupo de intelectuais residentes no Mindelo, encabeçados por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Velosa, Manuel Lopes e Aurélio Gonçalves, preocupados com a situação, resolvem fazer alguma coisa. A volta de um “grogue-cocktail” à moda inglesa como elemento aglutinador veio à baila a ideia de publicarem um jornal. Segundo Baltasar Lopes “estávamos em profundo desacordo com a forma como isto corria e com a ditadura que governava em Portugal e, portanto, aqui também”.

Tinham de fazer um depósito de 50 contos. Devido a impossibilidade económica, resolvem publicar uma revista. Inspirados pelo simbolismo da luz, o modernismo brasileiro e a revista portuguesa Presença, optam por nomear a revista de Claridade. A revista será a pedra de toque do Modernismo na Literatura cabo-verdiana e um despertar da consciência identitária. 

Publicidade

A Claridade inicia uma fase de contemporaneidade, ultrapassando a estética e linguística do Classicismo do Seminário Liceu de São Nicolau e o Romantismo de matriz portuguesa dominante durante o século XIX. É um premeditado afastamento do cânone português, procurando retratar a identidade cabo-verdiana chamando a atenção para elementos da nossa cultura.

O primeiro número sai em março de 1936. Na capa traz “2 motivos de finaçon – batugues da ilha de Santiago”. Inicia-se um grito de esperança, e de revolta metaforizada. O excelente poema “Ecran” de Manuel Lopes aparece nas páginas do número inaugural:

Publicidade

“Para além destas ondas que não param nunca, 

atrás deste horizonte sempre igual

no extremo destes sulcos brancos sobre o mar azul (cinzento nos dias de ventania)

que as hélices deixaram, impedindo

os cascos inquietos dos vapores…

– (Sonhos rolando sobre um abismo de Ironia:

promessas de outro mundo mais lindo,

– ó meus gritos interiores!…)”

É neste contexto que o povo tinha saído às ruas para reclamar, em 7 de junho de 1934. Imortalizado vinte e dois anos depois no poema “Capitão Ambrósio” de Gabriel Mariano. Esta nova geração explicita a sua revolta de forma menos velada:

“(…) Mãos erguidas 

Em força, duras, erguidas 

Pés marcando a revolta 

O povo marcha na rua.

Vai na frente o Ambrósio 

Mulato Ambrósio guiando 

Leva nas mãos a bandeira. 

Pesada e fria é a noite 

Artigos relacionados

Injusta e amarga é a fome 

Mas vai na frente o Ambrósio (…)

Gabriel Mariano teria seis anos aquando do levantamento. Ficou a conhecer a história em 1953, em Lisboa, e publica o poema em 1956.

Nas palavras de Gabriel Mariano, em Encontro com escritores de Michel Laban:

“Eu soube da história dessa sublevação popular em São Vicente, ocorrida em 1934, e dirigida, ao que suponho por nhô Ambrose já em Lisboa, como estudante. Essa sublevação surgiu em 1934, eu tinha seis anos de idade; e eu soube disso em 53, 54, já adulto. (…) E se eu fiz o poema, posteriormente, é porque a história me impressionou muito. Na altura o que senti foi raiva e orgulho. (…) Enfim, o Ambrósio aparece no poema como um líder popular que, massacrado pela fome e pelas circunstâncias, lidera, conduz o povo à rebelião contra a ordem estabelecida, e deixa uma mensagem de liberdade. (…) Foi condenado à prisão e cumpriu a pena em Angola. (…) E eu soube, para concluir, soube da história do Ambrósio, aqui em Portugal, porque, em Cabo Verde, nunca ouvi falar do Ambrósio…”

A “força épica” do poema de Gabriel Mariano é transfigurada nos músculos portentosos numa pintura de Manuel Figueira na capa do livro de 26 páginas, publicada pela Casa de Cabo Verde (vd fotografias anexas). Além do poema referido, introduz o poema “Capital da Fome”:

“(…) E no mapa do mundo assim

no vivo corpo do Ambrózio

com altos relevos humanos

no mapa do mundo assim

dez olhos se avermelham

num espanto de sangue e pranto (…)

Mostrar mais

Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

Artigos relacionados

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo