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Helena e Anabela, duas mulheres vítimas de abuso sexual: Quando o inimigo mora a dois passos do “quarto dos fundos”

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As histórias de Anabela e Helena atestam que os abusadores sexuais de crianças estão mais dentro da casa das vítimas do que na esquina de uma ruela mal iluminada. Pai, tios, irmãos, primos, padrasto são muitas das vezes os algozes de meninas indefesas, criadas debaixo das suas alçadas, à distância da porta do quarto dos fundos. E, acredite-se, há casos em que as mães fecham os olhos e deixam as filhas à mercê dos ataques dos companheiros dentro das suas próprias casas. Noutras situações fingem não ver o que se passa e acabam por repreender e castigar fisicamente as menores quando estas revelam os seus traumas.

Helena sentiu essa injustica na pele. Vítima do assédio e violação do padrasto dos quatro aos 12 anos de idade, quando decidiu abrir a boca, em vez de receber o apoio da mãe, esta deu-lhe uma sova que nunca mais esqueceu. “Puxou-me pelos cabelos e agrediu-me violentamente com um pau frente ao meu padrasto e meus irmãos”, conta.

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Na noite desse dia, Helena, que na altura tinha 16 anos, saiu de casa com a intenção de acabar com a própria vida. Mas algo a impediu de cometer esse erro. Afinal das contas tinha apenas 16 anos e ainda residia nela a esperança que a sua mãe acordasse para a realidade. Dormiu na rua, mas decidida a viver longe da casa onde, diz, foi violada sexualmente por um homem durante 8 anos, debaixo dos olhos da própria mãe.

“Ela sabia o que se passava porque por diversas vezes o meu padrasto levantava-se da cama de madrugada e vinha procurar-me no colchão onde eu dormia. Eu resistia e ia muitas vezes dormir com a minha mãe. Certamente que ela sabia o que se passava”, comenta Helena.

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Tudo começou quando ela tinha 4 anos de idade. Apesar de hoje estar com 30 anos ainda se lembra de tudo. “Há coisas que nos marcam, tornam-se inesquecíveis por toda a vida”, salienta.

Nessa primeira vez, tinham acabado de ver novela em casa de uma vizinha. Depois do programa a mãe ficou sentada em frente da casa conversando com a amiga e o padrasto resolveu estirar uma esteira no chão junto a um alicerce, onde mais tarde a sua mãe construiu a casa. “Como estava calor, deitamos na esteira. Ele aproveitou-se para tocar-me. Eu tentava fugir, mas ele não me deixava. Ele disse-me que íamos fazer como na navela. Fez o que queria e depois disse-me que se contasse o que aconteceu ele queimava a mim e à minha mãe”, revela.

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Lançada a ameaça, sempre que Helena regressava de Santo Antão para passar férias com a sua mãe em S. Vicente as cenas repetiam-se. Segundo ela, foram oito anos sob o jugo do padrasto. Até que aos 12 anos de idade ela conseguiu colocar um ponto final nas investidas do pedófilo. “Quando ele viu que já não conseguia o que queria começou a inventar estórias para influenciar a minha mãe. Até que um dia ele disse à minha mãe que me encontrou aos namoros com um jovem. Eu disse que era mentira, mas a minha mãe não acreditou em mim”, diz Helena, que, acrescenta, estava nessa altura tão traumatizada que não queria ver nenhum homem ao pé dela.

A situação ficou tão complicada nesse dia que Helena resolveu contar o drama que estava a viver com o padrasto. Resultado: foi agarrada pelos cabelos, arrastada pelo chão e agredida com um pau pela mãe. “Isso não foi castigo, foi agressão física pura”, sublinha a jovem, que se sentiu ainda mais humilhada. Saiu de casa nessa noite decidida a pôr termo à vida e nunca mais regressar.

Nesse dia, Helena teve o apoio de apenas um irmão mais novo, que criticou a mãe e o padrasto. Mas, diz, ele pouco ou nada podia fazer. Após dormir na rua, no dia seguinte Helena foi pedir ajuda a uma “tia”, irmã do seu padrasto, que a colocou sob a guarda das freiras de uma igreja. Por coincidência, ficou a saber mais tarde que essa tia foi também vítima do padrasto.

Helena estudava no nono ano e reprovou. Ficou depressiva e não conseguia acompanhar as aulas. Por sorte, as freiras deram-lhe apoio psicológico e isso ajudou-a a enfrentar essa tempestade. “Por vergonha nunca falei com nenhum professor sobre o caso. Sentia-me culpada e tinha medo de o meu padrasto concretizar a ameaça de matar a mim e à minha mãe”, diz.

A esperança que Helena tinha de um dia sentir o apoio da mãe já esvaneceu. Hoje ela chegou à triste conclusão que ela acabou por ser conivente, fechando os olhos à situação. Lá no fundo, diz, a mãe sabia que ela estava a falar a verdade e isso doeu-lhe na alma.

Embora com esse drama ainda na mente, Helena conseguiu estudar e terminar a licenciatura em Direito. Mas quer fazer o mestrado, com um grande objectivo em mente: passar a defender as vítimas de abuso sexual. Segundo Helena, escolheu esse curso de propósito, com o objectivo de se especializar nessa matéria. Ela que, devido ao passar dos anos, acha que já não será possível processar o padrasto. Porém, até hoje chora quando fala do assunto. Sinal de que ainda o trauma continua latente.

Vem brincar com o titio”

Anabela passou por uma situação menos dramática quando, aos 5 anos, acordou com um tio em cima dela num pequeno quarto de uma casinha de tambor. Assustada, perguntou-lhe o que estava a fazer. “Vem brincar com o titio”, respondeu o adulto.

Ao contrário de Helena, ela contou o sucedido de imediato à sua mãe. Segundo Anabela, isso provocou um grande abalo no seio da família. “Não houve queixa, mas os meus pais, avós paterno e materno e meus tios reagiram com firmeza contra ele, de tal forma que ele se mudou para Santo Antão por onde ficou durante muitos anos”, conta Anabela.

Após esse episódio, Anabela ficou a saber que o tio, irmão do pai dela, tinha também “brincado” com as suas duas primas praticamente da mesma idade dela. Nesses casos não houve penetração e de algum modo isso amenizou as sequelas físicas e mentais nas vítimas. Mas foi preciso um bom tempo para Anabela digerir o acontecimento. Durante anos, diz, ficou com receio de se relacionar com os homens.

“Iniciei a minha vida sexual depois dos 20 anos de idade, quando ouvia as minhas colegas de 16 anos contando as suas experiências. A minha primeira vez foi muito difícil”, recorda Anabela, que ficou com um sentimento de revolta por muito tempo. Aliás, confessa, esta entrevista com o Mindelinsite foi a primeira vez que decidiu falar abertamente do assunto durante esses anos todos. Fê-lo em sinal de solidariedade com a amiga Helena e para levar a sociedade cabo-verdiana a estar mais atenta a esse fenómeno.

No caso de Anabela, o apoio familiar foi essencial para enfrentar o sucedido. Neste ponto enaltece a sua sorte, quando compara o comportamento da sua família com a da amiga Helena.

“Eu não consigo aceitar uma mãe desconfiar da palavra de uma filha num caso desses. No mínimo ela teria que apurar se isso era verdade e depois tomar as medidas certas. Agora, ficar do lado do marido e agredir a filha, é algo inadmissível”, comenta Anabela, que costuma ficar indignada sempre que sabe de casos de violação sexual de menores. E nos últimos tempos tem chegado ao seu conhecimento vários episódios, como a de uma adolescente de 15 anos que, diz, foi violada pelo padrasto e colocada na rua pela própria mãe.

Segundo Anabela, infelizmente as estatísticas estão certas quando indicam que os principais abusadores são os parentes das vítimas. “E muitas vezes com a conivência das mães. Se esta conivência não existisse as coisas estariam diferentes”, considera Anabela.

Mulher feita, Anabela conseguiu ultrapassar o trauma. Como diz, cada pessoa tem a sua forma de enfrentar os desafios da vida. Umas encaram as adversidades com coragem, outras entram em depressão. Porém, diz, a vítima jamais deve se sentir culpada pelo desvio comportamental de uma pessoa que deveria ser da sua confiança.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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