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Um balde de água fria nas costas da Nação

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Por: Alcides J. D. Lopes 

 

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A República de Cabo Verde comemorou no dia 13 de janeiro de 2021, sem muita coragem, as regalias de 30 anos de uma nação democrática pluripartidária assombradas por um escândalo no seio do atual Governo, o qual, acaba de ser apanhado em relações perigosas com a extrema direita portuguesa. Um balde de água fria jogada, sem aviso prévio, nas costas nuas da nação africana e da sua diáspora globalizada, ao relento. Para além da demissão quase que imediata do ministro de Negócios Estrangeiros Luís Filipe Tavares, ficou no ar a sinistra expectativa de outros envolvidos numa intrincada teia de maracutaias.

A roupagem estrambótica que se esforça no ocultamento das diversas camadas desta situação aparentemente esdrúxula, mesmo no seu ato de encobrir, revela sinais incrustados no velho tecido neocolonial/neoliberal de governação e administração das populações. O ponto 6 da Moção de Confiança referente ao programa apresentado pela IX Legislatura do Governo de Cabo Verde em maio de 2016 promete uma mudança do paradigma estatizante, que consiste no empoderamento “das famílias” através de uma “parceria alargada” entre o Estado, as autarquias locais e a sociedade civil, “reconhecendo um papel fulcral às instituições religiosas e às instituições privadas de solidariedade social” . Outra prioridade expressa no documento citado refere-se ao papel da juventude no desenvolvimento de uma sociedade sustentada e equilibrada. Pois, “a igualdade de oportunidades entre gerações e a importância da participação dos jovens nas tomadas de decisão públicas deve ser alcançada através dum diálogo estruturado entre governo e a sociedade civil juvenil.”

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Uma leitura adequada do programa proposto pelo Governo em 2016 proporciona um panorama das generalidades projetadas através de um arcabouço conceitual e técnico afeito aos programas políticos priorizados a partir  da década de 1990 no mundo democrático ocidental capitalista, que se personifica a partir dum composto multicolorido de ideias elusivas de diversidade, tolerância, sustentabilidade e empreendedorismo, em detrimento das problemáticas impostas pelas realidades da pobreza, do “esquecimento” das ilhas, das precariedades inerentes aos sistemas educativo e sanitário, da insegurança alimentar e habitacional, do desemprego, da falta de saneamento básico, da depressão, do abuso de drogas, do alcoolismo, da discriminação, do racismo, da violência baseada no género,  do feminicídio, da violência urbana e policial que atingem, majoritariamente, a juventude pobre, periférica e por aí vai…

Evidentemente, as condições apresentadas para a então nova geração de políticas sociais, através das quais afirmava-se pretender o empoderamento da juventude, a facultação de um sistema educativo de excelência, o desenvolvimento do desporto, a inclusão social [pela família], o desenvolvimento da agricultura, das pescas, do empreendedorismo e da cultura no intuito de otimizar os setores de mais valia, passam pela reafirmação da perspectiva neoliberal económica e a aproximação de parceiros incomuns no campo das relações internacionais, tais como a Inglaterra, os países nórdicos, Israel, Singapura, Japão, entre outros mais costumeiros. Ora, a julgar pela extroversão que se espera investida nas propostas de um Governo de Cabo Verde, devido a uma multiplicidade de fatores e limitações históricos – u ke bem na rede é pexe – e as próprias exigências da época conturbada em que se vive, as ações que se seguiram no atual Governo, personificadas por uma variedade de ministérios, deram sinais de que a política externa de Cabo Verde estava decididamente a experimentar certos tipos de relações e adentrando em determinadas regiões ideológicas ou fazendo concessões não usuais ao seu feitio. Naquela ocasião, o vice-presidente do principal partido da oposição manifestou-se opinando que percebia uma deriva em matéria de diplomacia e política externa do arquipélago.

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Quem não se lembra do polêmico twitter de Benjamin Netanyahu, em 2017, afirmando que Cabo Verde não mais iria votar contra as resoluções de Israel na ONU? As tensões que se seguiram com as cobranças da oposição? O desmentido do Presidente da República e as explicações tardias do agora ex-ministro de Negócios Estrangeiros?

Lembramos bem como, na época, Tavares declarou que o interesse de Cabo Verde em Israel estava restrito aos laços de cooperação em áreas como energias renováveis, produção e processamento da água,  agricultura,  segurança, defesa e várias outras áreas de interesse comum.  Entretanto, os ânimos aliviaram-se quando Cabo Verde finalmente votou contra os EUA sobre o Dossier Jerusalém. No seu histórico de votações, o país possui algumas abstenções e uma ausência nas votações de questões relativas a Israel. 

Outra aventura na qual foi-se meter o ex-ministro diz respeito às declarações sobre acordos bilaterais de livre trânsito entre o arquipélago e países como Noruega e Suíça para o ano de 2019. Estas declarações bombásticas e a surpreendente confissão de que Cabo Verde estaria a trabalhar com outros países da União Europeia no sentido de conseguir mais acordos do tipo, parecem-nos cortinas de fumaça que mal disfarçam como, apesar da pandemia ter alterado drasticamente a vida de todos, as dificuldades que os cabo-verdianos, propensos à emigração, enfrentam estruturalmente são desanimadoras. Entretanto, como previu-se, a partir de 7 de janeiro de 2019 os cidadãos europeus podiam circular sem vistos por um período de trinta dias em Cabo Verde, facto este visto por alguns como um fator de melhora no acesso dos turistas ao país enquanto outros queixam-se do tratamento desigual e segregativo que os cabo-verdianos e outros migrantes africanos e seus descendentes afro europeus vêm sofrendo na Europa e como esta situação unilateral é vergonhosa.

Mas, e a situação atual da emigração cabo-verdiana? Como conter as drásticas quedas das taxas? O que fazer no âmbito das políticas nacionais e locais?

Evidentemente, não concordo com a versão de que o incidente causador da queda do ministro tenha sido somente um balançar de águas. Entretanto, as recentes manifestações de animosidades no campo sócio político não interferem na percepção que deve-se ter do complicado fenômeno das migrações cabo-verdianas. Igualmente, almeja-se o entendimento das situações reais enfrentadas pelas diversas comunidades localizadas numa variedade de países de diferentes continentes, apreendidas através da sua diáspora globalizada. Neste contexto, não descartamos a necessidade de também conhecer a história das sociedades de acolhimento e como estas relacionam-se com a questão da imigração. Portanto, o texto não pretende abordar a diáspora cabo-verdiana na sua grandeza e diversidade, para isto, existe já uma pesquisa extensa e qualificada. Além do mais, seria uma tarefa que excede o escopo do que aqui se pretende. Antes, gostaria de fazer uma consideração somente sobre a diáspora africana em Portugal e, para isto, as razões são justificáveis.

Primeiramente, considera-se que apesar de Portugal passar a ser considerado um país de imigração somente a partir de um período muito recente da sua história, mais intensamente, a partir de 2000, as migrações laborais de cabo-verdianos e, posteriormente, outras nacionalidades africanas já eram frequentes desde meados da década de 1960. Entretanto, após a adesão do país à União Europeia (1986) e, com isso, adotar o euro (2002) como moeda nacional, o país desperta a curiosidade de outros grupos migrantes laborais, como brasileiros, eslavos, ucranianos, moldavos etc., enquanto algumas comunidades preexistentes começam a ficar mais expressivas, como os chineses e os indianos. 

Poucas pessoas das gerações mais recentes têm consciência deste fato. Mas, vale a pena lembrar que até a adoção de Portugal pela CEE e a implementação do euro como moeda corrente em território nacional, o escudo português valia 50% menos em relação ao escudo cabo-verdiano. Facto ainda mais curioso é que, além desta desvalorização monetária drástica por que passavam as remessas que os migrantes cabo-verdianos enviavam para as suas famílias, o mesmo produto básico de subsistência que adquiria-se em Cabo Verde, por exemplo: fósforo, custava a metade ou menos em Portugal. Os emigrantes cabo-verdianos que residiam na Alemanha (marco), na Inglaterra (libra), na Holanda (florin/gulden) ou mesmo nos EUA (dólar) gozavam de melhor prestígio nas ilhas porque a moeda que ostentavam  geralmente era mais forte que o escudo português. Por sua vez, os marítimos sempre foram considerados emigrantes endinheirados. Na realidade, até hoje os portugueses emigram para estes países, pois o salário mínimo pago neles é de longe superior ao nacional. 

Não restam dúvidas que é importante compreender o processo de construção identitária cabo-verdiana a partir das oposições e afinidades que transcendem a usual dicotomia badius e sampadjudos. Nomeadamente, a oposição entre as categorias badiu di dentu e badiu di fora e pelas diversas disputas que surgem entre os falantes da língua crioula cabo-verdiana originários das ilhas de Santo Antão, São Vicente e São Nicolau, por exemplo, contempladas pela tensão clássica: campo-cidade.

Em segundo lugar, a noção de uma grande “comunidade homogênea” imigrante cabo-verdiana existente em Portugal é contestada por uma variedade de autores, estudiosos e académicos, os quais  defendem uma heterogeneidade que se revela mais ao nível local pela diversidade de pequenas comunidades. Ou seja, os cabo-verdianos em Portugal estão espalhados através de uma variedade de pequenas comunidades localizadas em posições heterogêneas no âmbito da sociedade portuguesa. Para todos os efeitos, naquele território encontramo-nos divididos por “raça”, educação, ilha de origem e, há quem diga, “etnicidade”. Estes fatores, de acordo com o sociólogo portufuês Luís Batalha, são conjugados para a determinação da posição dos imigrantes cabo-verdianos tanto na sociedade portuguesa, como, entre os diferentes grupos migrantes.

Não restam dúvidas que é importante compreender o processo de construção identitária cabo-verdiana a partir das oposições e afinidades que transcendem a usual dicotomia badius e sampadjudos. Nomeadamente, a oposição entre as categorias badiu di dentu e badiu di fora e pelas diversas disputas que surgem entre os falantes da língua crioula cabo-verdiana originários das ilhas de Santo Antão, São Vicente e São Nicolau, por exemplo, contempladas pela tensão clássica: campo-cidade. Não obstante, deve-se ter em mente que a educação continua a desempenhar um papel muito importante na categorização das comunidades de cabo-verdianos, na medida em que opera a partir de uma posição objetiva e é também subjetivamente reconhecida como um fator de diferenciação. Estes fatores, portanto, são mais significativos a partir das auto identificações operadas no seio das nossas próprias comunidades.

Em terceiro lugar, hoje não se pode negar o facto de que a carência ou mesmo a ausência de programas e políticas mais ousados em prol da qualificação dos emigrantes em potencial financiados pelo estado de Cabo Verde, de forma eficaz e descentralizada, bem como, as políticas sociais portuguesas voltadas para as populações migrantes e minorias étnicas, residentes naquele país, as leis da imigração e da nacionalidade priorizadas a partir de meados da década de 1990 surtiram um efeito sistemático sobre o declínio recorrente dos fluxos migratórios cabo-verdianos para Portugal. Nas últimas duas décadas, o mercado migrante ficou mais especializado e exigente, enquanto os investimentos e as legislações nacionais cabo-verdianos não acompanharam este progresso.

Em 2000, houve uma grande escalada no número de estrangeiros em situação regular em Portugal. Num período de dois anos, o país computou um aumento de 200.000 para 450.000 imigrantes . Os números mais expressivos que integram este aumento cabem aos leste europeus, cujo aumento foi mais de 200%.

Foi também uma época em que os brasileiros viveram a primeira onda significativa de imigração no país, um aumento de quase 50%. Entre os imigrantes africanos o aumento que já era gradual, com alguns picos na década de 1990, também cresceu 50% entre 2000 e 2004. Após um período de relativa estagnação, um fato interessante aconteceu em 2008: as tendências de crescimento das migrações africanas sofreram uma inversão em detrimento do aumento mais expressivo da comunidade imigrante brasileira. Ou seja, desde 2008 que as taxas de imigração africana (cabo-verdianas) para Portugal têm vindo a decrescer gradualmente.

Uma breve olhada nos templates disponibilizados pelo Gabinete de Estratégias e Estudos com dados cruzados do SEF e do INE (www.gee.gov.pt/2018) revela que a proporção de migrantes mulheres com relação aos homens é a maior desde 2008.

Uma breve olhada nos templates disponibilizados pelo Gabinete de Estratégias e Estudos com dados cruzados do SEF e do INE (www.gee.gov.pt/2018) revela que a proporção de migrantes mulheres com relação aos homens é a maior desde 2008. Entretanto,  o template que demonstra o peso da população cabo-verdiana sobre a população estrangeira residente, por género, entre 2000 e 2018, acusa uma queda em percentual de 22.69% para 7.22%. Sendo que em 2000 a proporção de homens para mulheres era de 13.18% para 9.51%. Em 2018 a porcentagem de mulheres de 3.86 por cento é maior do que os 3.35% dos homens. O mesmo documento informa-nos que a comunidade imigrante brasileira representa 21,9% do total dos imigrantes residentes em Portugal em 2018. 

Ora, para além de testemunhar um crescimento acentuado no total de imigrantes cabo-verdianos com documentação regular em Portugal, de 47.000 em 2000, chegando ao pico de 64.000 em 2007, somos surpreendidos por uma queda vertiginosa desde então, regredindo gradualmente até 35.000 e representando apenas 7.2% do bolo de imigrantes no país em 2018. Em 2019, um novo relatório do SEF conclui que as principais nacionalidades residentes no país são lideradas pelo Brasil, Cabo Verde e Roménia. Os franceses e italianos continuam a ganhar peso. E há uma inversão da tendência verificada nos anos anteriores, um crescimento do número de cidadãos oriundos de África. Contudo, de acordo com a tabela publicada na edição de 28 de junho de 2019 pelo Público, embora a comunidade cabo-verdiana contabilize cerca de 35.000 indivíduos e representa somente 7.2% da população total de imigrantes residentes, a sua representatividade e evolução face ao ano de 2017 é de – (menos) 0.9%. Portanto, uma característica negativa nas prospecções com relação à Guiné Bissau, cuja representatividade e evolução face ao ano de 2017 é de 6.5% e Angola, 9.1%, sem mencionar o Brasil cuja comunidade detém a representatividade absoluta de 21.9% e de representatividade e evolução face ao ano de 2017 de 23.4%. 

Face a este panorama desolador não podemos deixar de questionar: afinal quais são as políticas desenvolvidas em Cabo Verde, fundamentadas nos compromissos expostos no programa de governo de 2016, que supostamente deveriam ter-se comprometido com o fenômeno da emigração? Quais são os argumentos que justifiquem tais cortes nos percentuais das taxas de emigração? Porque os imigrantes cabo-verdianos, antes a maioria expressiva da população estrangeira residente, ganharam um nível de rejeição tão expressivo? 

E, finalmente, não podemos desconsiderar que existe uma relação desproporcional do tipo David e Golias na disputa das forças migrantes que buscam acolhimento em Portugal. Evidentemente, a comunidade imigrante brasileira excede os 105.423 indivíduos, pois estes referem-se somente aos regularizados e documentados. Entretanto, não podemos deixar de notar que este é um número de longe insignificante quando se considera a população do Brasil de mais de 200.000.000 de habitantes. Arrisco-me em afirmar que os migrantes cabo-verdianos têm desempenhado um ótimo papel de David nesta saga bíblica. 

Inevitavelmente, a comunidade brasileira vem de dimensões continentais e possui vantagens documentais bastante cômodas em território português. As exigências para os cabo-verdianos começam com o pedido de visto de entrada em território europeu, o qual pode ser e é frequentemente negado, ainda em território nacional. Mas, a pergunta que teima em persistir é: sabendo de todas estas condições desfavoráveis e da consequente frustração de expectativas nas camadas mais jovens da nossa população, porque a governação dos assuntos da diáspora e da emigração do país não alertou ou emitiu comentários e comunicações a  respeito?

(músico & antropólogo – PhD)

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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