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Opinião

O Insustentável Fardo da Loucura: Notas desconfortáveis sobre julgamentos alheios

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Sem dúvida, podemos dizer se somos alvos de “julgamentos alheios”, mesmo quando estes partem de pessoas, na maioria das vezes, próximas ao nosso convívio e que, não obstante, insistem em ocultar suas reais intenções.

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Por: Alcides Lopes

Nestes casos, percebe-se a pessoa interlocutora estreitando seus olhos, como se fosse capaz de ver através de nós – de enxergar “aquilo” que outros não enxergam -, apertando os lábios e franzindo a testa. 

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As pessoas que assumem esta posição de julgadoras, geralmente, abstêm-se de abanar a cabeça, a menos que queiram provocar uma reação em outrem. É possível sentir este tipo de desaprovação mesmo quando alguém passa pelo meticuloso trabalho de controlar a sua própria linguagem corporal.

Barry Davret, funcionário da Forbes e de outras revistas globais de peso, alerta-nos que, por mais que nos irritamos e odiamos os julgamentos dos outros sobre nós, sejam diretos ou agressivo-passivos, todas e todos nós nos engajamos nos mesmos tipos de comportamento. Simplesmente porque está no nosso DNA: somos humanos.

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Seria, portanto, às custas de um esforço autocontrolador tremendo, experienciarmos a possibilidade de não nos importarmos com o que as outras pessoas pensam de nós. Apenas algumas poucas pessoas no mundo são capazes de tal façanha. 

Ainda assim, apesar de não termos muitas chances, a não ser tomar parte desta tradição humana, através do esforço consciente e algumas técnicas ponderadas, podemos julgar as outras pessoas de forma que demonstre empatia, compreensão e aceitação, mesmo no caso de desaprovarmos suas crenças e escolhas de vida.

Afinal de contas a sapiência tende mais a escutar pacientemente do que elevar a voz para que outros a ouçam. Como nos ensina Bob Marley numa das suas belas canções: “enquanto você aponta o dedo, outras pessoas estão te julgando”.

Todavia, não devemos nos descuidar do seguinte facto: quem julga, o faz de acordo com suas próprias razões. A minha avó Carlota sempre me alertava sobre este paradigma quando eu caía na tentação de formular julgamentos sobre o comportamento de alguma pessoa:

[Eu]: Kalota, porkê Mikika te fase pupu lá sim, tud gent t’ oiá?

[Carlota]: Ah neném. É ne pe espiá. El’ é gente grande, ma, juíze é de kriansa.

[Eu]: Enton, Mikika é eskolokode de kabesa?

[Carlota]: Psiu, neném! Ondê ke bo uvi tal feiura? Isso não se diz.

Contaram-me, certa vez, que, durante a última fome macabra na ilha de Santo Antão, Cabo Verde, 1947-48, muitas pessoas sofreram de uma doença conhecida, no nordeste do Brasil, como “bexiga negra”. Ou seja, a varíola. Aquela moléstia que faz brotar bolhas vermelhas na pele, as quais, durante o amadurecimento, se transformam em pústulas escaldantes.

O destino de Jonzin de Nhá Afránia foi traçado na base de um julgamento alheio mal sucedido. O fulano tinha sido atacado por um dos maiores vírus que infectam humanos. Este vírus, de tão antigo, vitimou Ramsés V (1157 a. C.). Parece que estava presente quando as antigas escrituras foram redigidas, esculpidas na pedra. 

O vírus da varíola tem afetado a vida da humanidade por mais de dez mil anos. Mais significativamente do que a peste bubônica, a tuberculose, ou mesmo a AIDS. No Brasil, desde a chegada dos portugueses, o vírus é tido como uma das principais causas de morte por doenças. Tão devastadora é a moléstia, que na época das fomes, nem Jonzin de Nhá Afránia, chamado pelo nominha kerrutxe, escapou dela.

A dor da inflamação das pústulas que disputavam a sua face era insuportável. Por este motivo, Jonzin havia envolvido sua cabeça, por completo, num lenço de seda azul marinho da sua tia Bonifácia. Por cima do lenço, enrolou um xaile de algodão, amarelado pelo tempo, mas confortável. 

Ao se aproximar da região de Casa de Meio, foi avistado por um grupo de homens cujas famílias de retirantes se arrastavam em direção à vila dos Carvoeiros no intuito de cair nas graças da Assistência. Saturados pelas histórias sobre mascarados que trancavam nas mulheres, crianças e praticavam canibalismo, armaram uma arapuca ao Jonzin. A rabenkada de manduco que o encontrou, instantaneamente, desmanchou a sua fronte e a morte foi quase que instantânea. Seus olhos ‘vidraram-se’ numa expressão de inefável surpresa.  

Outro caso curioso é sobre a prostituta, filha de um marujo inglês e uma moça da ilha do Fogo, Tamy. O seu rostinho de santa, igual a porcelana, ornamentado por dois olhos grandes e amendoados verde esmeralda, manteve-se pudica aos olhos da sociedade mindelense, mesmo com o conhecimento da grande maioria dos fãs masculinos e femininos. Todos sabiam das suas derrapagens reincidentes nos opióides, na heroína, nos anti-depressivos etc., bem como, da sua falta de consciência e sorte por ter contraído doenças venéreas tão sérias e, ao mesmo tempo, evitáveis e tratáveis.

Qualquer viv’alma que a encontrasse ou fosse manhosamente abordada pela Tamy, ficava imediatamente desarmada. A sua aparência inofensiva e a beleza notável a deixavam em situação de vantagem, na medida em que, debaixo do moletom, sua mão esquerda acariciava uma navalha clássica, de barbeiro, afiada. 

Se recapitularmos estes três episódios envolvendo Mikika, Jonzin de Nhá Afránia e Tamy, podemos perceber as nossas tendências heurísticas em avaliar os personagens através de atalhos mentais, a partir dos quais tomamos as nossas decisões e fazemos julgamentos com base em informações incompletas.

Historicamente, o Estado cabo-verdiano e a sociedade no geral não têm empatia com as pessoas vítimas de violência ou com necessidades especiais físicas e mentais e nem estabelecem relações institucionais de acolhimento a estas cidadãs e cidadãos. Eventualmente, o atendimento acontece, mas é escasso, deficiente e muito precário.

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Impressiona o modo de descaso histórico e estrutural tolerado nos países, antes colonizados, com relação às doenças mentais e os males sociais como o alcoolismo, a depressão, o suicídio e a miséria. 

Tais cenários de ruína mental, de decadência e decrepitude são costumeiros nas cidades cosmopolitas às margens do Atlântico como Praia, Mindelo, Recife, Fortaleza, Dakar, Rio de Janeiro, Bissau, Lagos e Salvador. Estão presentes também nas ruas de Kingston, Port au Prince, San Juan etc. 

A geração da minha infância, na Vila do Porto Novo, cresceu acostumada com vários personagens ora divertidos, outras vezes, violentos permeados pelo fenômeno da loucura. São vários os casos conhecidos e, não tenho dúvidas que, em cada uma das cidades mencionadas acima, o fenômeno se repete, até tchêrê ói.

Suponha a leitora ou o leitor, ao caminhar pela rua e, de repente, depara-se com um homem encorpado, um metro e oitenta e oito, noventa quilos de músculos e ossos grandes, com o rosto oculto por um lenço de seda, ou uma máscara de esqui, caminhando na sua direção.

Independentemente do horário, dia ou noite; do local, público ou privado, qualquer pessoa se sentiria intimidada pela presença de um homem alto com a cara escondida, principalmente, se fosse antes da pandemia. Por sua vez, ser abordado no corredor de um prédio ou hotel, na praia, ou à noite por uma bela e sedutora mulher, pode ser o “sonho de consumo” não apenas de homens de meia idade, casados, com o intuito de “pular a cerca”, mas também, de muitos solteiros ou encalhados “normais” e até mulheres que preferem outra companhia que a de um hétero. 

Em ambos os casos, há tendência de avaliarmos o outro com base na aparência exterior. A leitora ou o leitor, provavelmente, estaria certo em assumir que um homem mascarado [anterior à pandemia] representa algum tipo de ameaça. Mas, também é possível que o motivo seja devido a uma condição de doença de pele, ou mesmo de saúde pública, como passamos com a Covid-19. Igualmente, no caso da Tamy, é perfeitamente aceitável que uma bela, astuta e ‘refinada’ mulher possa ser uma ladra ou até mesmo uma vilã assassina.

Como argumenta Davret no seu artigo “How To Judge People Thoughtfully: The five techniques”, a heurística vem mesmo a calhar quando detemos informações insuficientes para avaliar uma questão. Contudo, devemos ter atenção ao pensamento mandrião, i. e., quando nos abstemos de investigar novas pistas a fim de obter informação adicional, seja numa conversa informal ou durante uma empreitada etnográfica.

Todas e todos nós julgamos pessoas. A maioria de nós o faz sem ponderação e, ao contrário, deixa que as emoções ou a heurística tome controle do barco. É auspicioso nos envolvermos numa relação com as pessoas que leve em consideração um modo de raciocínio ponderado e que envolve as próprias pessoas em tomadas de decisão inteligentes. 

Para uma boa prática cidadã e política é imperativo que reconheçamos quando se utiliza a heurística, e procurar confirmar ou desmentir informações de modo prático. Trazer para o crivo da avaliação os valores, em vez das crenças. Compreender a história de vida, o trajeto da outra pessoa. Entender o valor do seu lugar de fala, especialmente, o que têm a nos ensinar, as mulheres negras chefes de família. Evitar ao máximo as armadilhas das quimeras nefastas que prometem resultados mágicos. E, finalmente, reconhecer as tendências preconceituosas universais.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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