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O dia em que ousei interpelar um gigante: ‘Por um mundo sem fronteiras’ [fasc. 1]

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Por: Alcides Lopes

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Nasci em uma ilha remota. Numa vila monótona de ruas largas e casas pequenas cobertas de palha e telhas. Uma vila sem nome, mas com o nome de todas as vilas análogas penduradas nas bordas esquecidas de um mundo tão apressado e sem tempo de esperar ninguém pelo caminho. Sou de uma vila do passado onde as pessoas se sentavam à sombra das árvores, à porta de casa nas noites estreladas, esperando para ver se a vida passava. 

Escraveiros. Carvoeiros. Port. Porto Novo. 

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Desde criança, meu espírito embrenha-se pelas madrugadas frias e aziagas dos caminhos vicinais serpenteados nas íngremes vertentes das imponentes muralhas rochosas da ilha. Sonho que nado em praias desertas de águas duras e frias. Provo o sal da água pelos olhos e sinto o desequilíbrio dos pés pisando em cascalhos numa praia de calhaus. Enquanto o sol e o suão, brincando artisticamente com as mãos sobre as gotas de água do mar, cristalizam rapidamente em pequenos punhais de cristais salitre no meu pescoço, o funeral daquelas que antes eram gotas viçosas de água do mar pingando dos meus dreads.

  • Há tempos, enquanto mergulhava, deparei-me com um tubarão – bitxôn – e quando dei por mim, tinha erguido da água, escalado um penedo rochoso e ouriçado. Apercebi-me com os olhos esbugalhados e perguntando-me: o que aconteceu com o arpão? Deixei-o cair! Disse-me meu irmão mais novo.
  • E então, o que fizeste? Perguntei. Ele abanou a cabeça, riu secamente e disse:
  • Esperei até o demonin d’ága ir embora. Caí na água, mergulhei e lá estava ela, a espingarda d’mar, escorada em uma pedra no fundo do mar. 

Há quem diga que matar um leão por dia é fácil. O difícil é desviar-se das antas. 

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Os vestígios do corpo, do bote, do mar e da sina de um kriolu estão nas páginas de The Yankee Whaler, como mostram as pesquisas sobre fotografia de Memory Holloway. As ilhas figuram na narrativa corrente de Moby Dick. Tão destemidos os ‘gees’, os bravas, parecem não temerem a morte. Mas, em tempos mais antigos fomos lansadus e tangomaos sob o signo de contraventores. Os direitos estendidos pela Carta Régia em 1466 àqueles primeiros homens cujos ethos remetem aos bandit kings de Ashis Nandy, foram sumariamente suspensos quando as ilhas de Cabo Verde passaram a fornecer os filhos daqueles homens com rainhas e princesas africanas, como colonos para a costa da Guiné. Tal como nos dias atuais da mortandade pandêmica, a abertura das fronteiras turísticas, para uns e não para outros, não é um ato de civilidade e sim de mercado, também nunca houve romantismo na secular apropriação predatória e massiva do ventre africano. 

Hoje, tipos como Pazuello, o coveiro da população brasileira; Sales, o estripador da floresta amazônica, todos ao serviço do presidente da república genocida, permitem-nos desvendar as intenções macabras através das quais Pedro Sintra sondou todo o fundo do mar da Alta Costa da Guiné ainda em 1462, como nos ensina Walter Rodney.

Não olvidemos que até 1484 as ilhas pertenciam à viúva de um príncipe e ao seu filho. Não que estes não fossem tementes ao seu deus e credo, mas porque, com o domínio da Coroa, o feitor real personificou o poder na ilha e a Diocese de Santiago, a qual se estendia do Rio Gâmbia até Cabo das Palmas, atual Libéria, era o instrumento de fiscalização e doutrinação.

Portanto, Son Jon não andou somente pelas montanhas íngremes e pelas praias da ilha de Santo Antão na companhia de Mé Maia (Mamaia; Mãe Maia). Quando o santo aporta a nossa ilha, ele já vinha de outras paragens. Ele não apareceu do nada, cumpria uma missão. Afinal, quem foi que decidiu sobre a tonalidade da pele santa? Quem perseguiu a obsessão de ser feito à imagem “literal” de Deus? Quais engenhos? Quais morgadios? Que capitanias?

São tantas as questões que povoam as minhas memórias. Além destas, duas outras questões aparentemente respondidas inquietam as minhas reflexões há já algum tempo: 1) Quais as narrativas possíveis de serem construídas sobre os fatos e evidências constantes na arqueologia oral das nossas tradições entre 1462 e 1600? 2) O que realmente aconteceu entre o assassinato de Amílcar Cabral, em 1973, e a proclamação da independência de Cabo Verde, somente em 1975?

Nós, da geração de 1975, não estudamos Cabral durante os nossos anos de escola primária, ciclo preparatório, liceu ou escola técnica. Eu mesmo, senti a força e energia das palavras de Cabral somente depois dos 25 anos de idade e, foi por um acaso. Comecei a compreendê-lo essencialmente a partir dos 30.

A nossa falecida mãe, que Deus guarde a sua alma, meus dois tios vivos e um morto, há muito tempo, num acidente de carro nas montanhas de Santo Antão, descendem dos Andrade e dos Delgado de Lombo Branco de Leste. A nossa avó Carlota, para quem compus uma canção homônima, executada no Son Jon de 2014, era casada com um contramestre de Carvalho. Embarcação pertencente à então frota de navegação doméstica, pé Jon (pai João). Ele faleceu meses antes do meu nascimento. Um negro lindo de beiços carnudos e olhos pequenos de cabelos negros ondulados. Não cheguei a conhecê-lo, mas lembro-me de sonhar com este rosto sorrindo para mim. Ele tinha outra família na ilha de São Vicente. Cheguei a conhecer uma prima por quem tive uma paixão avassaladora, quando era adolescente estudante do liceu. Mais recentemente, pela internet, conheci um filho dele que, embora de tez mais clara, herdou a beleza do pai. Desejo conhecê-lo e à sua família em breve.

Nosso falecido pai, Djô de Bubu, costumava contar que, na época das fomes, a sopa de ouriço era uma iguaria. Nasceu em 1927. Sempre foi silencioso sobre a sua história pessoal, embora vivesse contando histórias de emigrantes. Parece-me que quando nasceu, a sua mãe, nossa avó Maria de Lurdes (Bubu), era muito jovem, por este motivo, ou não, o pai do nosso pai, Afonso, nosso avô, ter morrido em circunstâncias funestas, ele foi então criado pelos seus avôs. Nha Angelina e Nhô Izé Lelei, este último, nascido em julho de 1851 nos Colares de Sintra, Portugal.

Djó acabou emigrando para o norte europeu, especialmente a Holanda, hoje, Países Baixos. Em 1963, viajava com um passaporte emitido pelo consulado de Portugal em Roterdão. Identificado como solteiro, marítimo de olhos castanhos, cabelos crespos e cor parda. Aquele passaporte lhe conferia trânsito livre em diversos países do norte e do ocidente da Europa, incluindo a Dinamarca, a Rep. Fed. Alemã, Noruega e Suécia. Pagou 150$00 pelo serviço consular.

Reza a ladainha que os primeiros cabo-verdianos a tentar a vida em países como a Suécia chegaram em meados da década de 1950 e, de acordo com uma pesquisadora nórdica, chegaram ao acaso. Muitos deles ficavam em terra quando seus barcos passavam pelos portos daqueles países e resolveram tentar a vida nas cidades onde o emprego abundava. A maioria das narrativas são explícitas quanto ao motivo destes africanos irem escapá vida, tão a norte. Não tem outra: estavam a fugir da fome! Este faz parte de um dos estigmas que os migrantes africanos na Europa continuam suportando no dia a dia. 

Na realidade, a nossa ilha remota teve tantas “épocas de fome” que um ancestral chegou a computá-las em dezenas de décadas. Num dos seus discursos pelo mundo afora, “Sobre a Situação de Fome nas Ilhas de Cabo Verde”, denunciou um período de duzentos e vinte e três anos, durante o qual o povo cabo-verdiano tinha sido castigado por cinquenta anos de fome. Àqueles dois séculos e duas décadas, acrescenta-se o século XX, com todo o seu peso e cabedal, durante o qual vinte e um anos são reservados às epidemias de inanição. Certamente, as mazelas e rupturas traumáticas produzidas sistemicamente por aquelas fomes perduraram no tempo. Aquele ancestral era um engenheiro agrônomo e certamente entendia de geografia das populações. A cidade onde sua voz foi ouvida era Estocolmo, no ano de 1971, talvez a cidade mais multicultural de toda a Europa na época. Hoje, cada vez mais com um multiculturalismo de direita, nega por completo a integração dos filhos “brancos” dos imigrantes daquela primeira geração.

Nas minhas memórias de infância, a água fresca das bicas da sentina graceja em frevo para o interior das vasilhas e tinas. Pois, não pode desperdiçar-se descuidada sobre as sociabilidades cantantes das fórmulas e modos de cumprimento trocados entre as senhoras e jovens mulheres de celhas cerradas no ciclo diário que abastece as cozinhas das casas sem  água corrente, luz elétrica ou saneamento básico:

  • Oh nhe Keméde. Kmê se dermi est’note? Ocê uvi tal ventania devassa p’la madergada
  • Oh nhe Keméde Chiquinha. Amoshe, min-n de contá ocê. N levantá pe bei güitá kel ventania e recuperá kel klabedotche ke tava de lóde extérne da kéla kuznhola, kwése ke no te bei junt n’ar de temp! Min n de contá ocê, uvi?!!

A maioria das memórias dos meus seis anos de idade em Martienne transportam-me pelas manhãs, até às madrugadas, no lombo de um burrinho. O ruído fino do leite saindo das tetas da cabra malhada e como faz ‘fshhhhhh’ quando espuma no fundo da lata de grão-de-bico improvisada em vasilha de recolha e medida do leite. O gosto e o cheiro perfumado da batata doce assada inteiramente na brasa, hoje principalmente, continuam sendo meus íntimos matinais. (A continuar).

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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