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Opinião

Incertezas

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Por: José Manuel Araújo

 A incerteza é a maior certeza da humanidade. Até a existência humana está sob o signo da incerteza.

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Por exemplo, até quando é que a ilha do Fogo irá conviver com a incerteza relativamente à consecução efectiva do tão prometido anel rodoviário? Ou à resolução definitiva da vida das populações de Chã das Caldeiras? Ou a incerteza dos santantonenses relativamente à tão prometida qualificação do cais do Porto Novo?

S. Vicente também vive as suas incertezas. Por exemplo, relativamente aos estudos de viabilidade da ZEEM que, depois de vezes anunciado como realizados, e só faltando os investidores, fica-se agora a saber que muita coisa já aconteceu, menos, no entanto, os estudos de viabilidade; ou da mais recente observação do Ministro do Mar segundo a qual, “essa visita (à Cabnave) foi para perceber da necessidade de, independentemente de se avançar ou não com a ZEEM em Saragaça, haver um investimento de fundo nos estaleiros navais”. Uma nuance – “avançar ou não” –, que após anos, ao ser enxertada no discurso original, mais parece uma antecâmara para futura mudança definitiva no compromisso;

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Ou relativamente ao centro de alto rendimento desportivo de S.Vicente que parece ter sido abduzido por alguma coisa estranha e poderosa a ponto que, na última sessão parlamentar, enquanto se discutia militantemente as insuficiências por desgaste de uso do centro de alto rendimento da Praia, o lançamento da primeira pedra para a construção do centro de S. Vicente prometido à mesma data – 2016 –, se manteve precavidamente embrulhado naquele providente esquecimento dos deputados e do governo.

Por este caminho, muito provavelmente acabaria por ter de fazer um périplo completo pelas incertezas de todas as ilhas do país.

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Só que não é a este tipo de incertezas flagrantes e comezinhas, mais do que vulgares e omnipresentes, a que me refiro, mas antes, àquela proverbial enquanto “maior certeza da humanidade”. Uma incerteza que diz respeito particularmente à ilha de S. Vicente. Refiro-me às incertezas que, por alguma estranha coincidência, parecem ocorrer e se concentrar unicamente na ilha de S.Vicente. Incertezas que, de tanto se repetirem de forma tão sistemática e aparentemente ocasional ao longo dos tempos se foram transformando na maior, senão quase, na única certeza da ilha.

Em qualquer projecto de financiamento público anunciado para S. Vicente existe uma única certeza: É que, posteriormente ao seu anúncio, irá aparecer sempre uma razão, um motivo, uma explicação qualquer ou até a ausência dela, e não interessa sequer querer saber de onde nem como ela irá surgir, ou nem em que momento do percurso do projecto ela irá ser anunciada, porque a certeza já existe. Vai chegar o momento em que vai acontecer.

E o que inevitavelmente vai acontecer e que todos vamos presenciar é que, depois de transpirar dias e noites virando e revirando na cama, algum alto responsável vai enfim conseguir alcançar aquela luz, aquela fórmula que fundamente e credibilize a sua decisão por reduzir o valor inicial do projecto, consciente de que, para além obviamente da diminuição cumulativa do valor do investimento público na ilha, ela significa também a redução da qualidade do projecto bem como,da sua eficiência a nível dos resultados.

 Foi assim com o (I) Terminal de Cruzeiros. De um projecto anunciado com um valor de 29 milhões de euros, a meio percurso e ainda antes de iniciar as obras, o seu valor já estava em 24 milhões de euros (menos 5 milhões); (II) Obras do CNAD, compromisso anunciado no valor de 60 mil contos, que também, mesmo antes de serem iniciadas, já estavam num valor muito inferior cuja minha vaga lembrança aponta para 50 mil contos (menos 10 mil); (III) Edital especial para o Carnaval mindelense anunciado no valor de 10 mil contos do qual o desembolso logo no primeiro ano já fora de 7 mil contos (menos 3 mil); (IV) Financiamento dos grupos carnavalescos em 2022”: S.Nicolau – 250 contos a cada grupo; Praia – 230 contos a cada grupo; S. Vicente – 208 contos a cada grupo. Desfecho que, para um compromisso anterior de um tratamento especial a este Carnaval, causa perplexidade perceber que aos grupos mindelenses, constituídos por um número muito elevado de elementos, o que exige muito maior esforço financeiro comparativamente aos de outras regiões, é disponibilizado valores inferiores em 42 e 22 contos respectivamente por comparação;

(V) Obras de requalificação da Baía das Gatas. Na sua apresentação, o arquitecto do projecto demoradamente destacou de maneira explícita os trabalhos de drenagem das águas pluviais, como a parte mais relevante de entre todas as intervenções a serem feitas nessa obra. Entretanto, cerca de mais de ano depois dessa apresentação, a ministra das infra-estruturas Eunice Silva veio à televisão justificar a redução do valor do investimento com o argumento de que, posteriormente à sua apresentação e já com o orçamento feito, vieram a sentir a necessidade de fazer intervenções também a nível da drenagem de águas pluviais pelo que, o valor do investimento teria de ser diminuído para se poder fazer essas outras intervenções reputadas como imprescindíveis.

Neste caso em concreto, algumas questões nos interpelam: (I) Como se explica que mais de um ano depois veio-se a lembrar que se tinha esquecido de uma valência da obra que, afinal, um ano antes tinha sido merecedora de forte destaque como aquela que, devido à sua importância, mais atenção e dedicação suscitara aos técnicos? (II) Caso tivesse de facto sido esquecida, como se explica que no desenho do projecto de uma sua obra, um ministério das Infra-estruturas de qualquer país se esqueça de incluir no projecto um aspecto tão importante como a drenagem das águas? (III) Caso fosse verdade o argumento apresentado pela ministra, porque é que a opção dela foi automaticamente a de reduzir o valor desse investimento retirando-lhe qualidade, em vez de ao menos tentar inspirar-se no que ao longo dos anos se vem fazendo com o Mercado de Coco, obviamente, não na mesma dimensão porque a diferença entre os valores ali injectados e os daqui retirados é astronómica, e que dessa inspiração se optasse pela manutenção do valor inicialmente orçamentado, de modo a manter a qualidade, bem como tentar por uma vez também manter uma promessa para S. Vicente; E estas questões conduzem-nos irremediavelmente à última: (IV) Onde foi parar o dinheiro que a dado passo se achou por conveniente subtrair ao valor do investimento na requalificação da Baía das gatas? Ao Mercado de Coco, por exemplo?

É este o clima de incerteza e desconfiança que, para não incomodar a paz e o equilíbrio mental de certos núcleos e estratégias vocacionalmente centralizadores, se procura impor à ilha que não receia levantar o rosto e insurgir-se contra injustiças, ao tentar naturalizar no país inteiro a ideia de que, com a independência, a incerteza terá sido a única certeza e vocação que lhe restou.

                                                                      

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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