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Considerações políticas sobre Cabo Verde da 2ª metade do séc. XX(2ª parte) – O mito de uma “descolonização exemplar”

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Por: José Fortes Lopes

Voltando ao assunto mais propriamente considerações políticas sobre Cabo Verde da 2ª metade do sec. XX, a leitura de (1) dá-nos uma ideia da narrativa sobre a Independência de Cabo Verde de 1975:  “As origens históricas nacionais da independência de Cabo Verde podem ser localizadas no final do séc. XIX e no início do séc. XX. Foi um processo gradual. Surgiu como uma tentativa de solução para as reivindicações da elite crioula de então, que protestava contra o desleixo e a negligência da metrópole portuguesa em relação ao que se passava em Cabo Verde. Com o processo de formação nacional, muito cedo a máquina administrativa foi sendo assegurada pelos nascidos em Cabo Verde, ou pelos que já tinham grande identificação com a colónia, com excepção aos cargos elevados como governadores, chefes militares etc., ainda reservados aos representantes da soberania de Portugal. Esta “auto-suficiência” administrativa de Cabo Verde estava associada a uma escolarização relativamente desenvolvida e à existência de uma imprensa mais ou menos dinâmica introduzida por Portugal, que contribuíram para o surgimento de uma elite intelectual e burocrática. Esta começou, no séc. XX, a discutir cada vez mais a questão da autonomia”.  

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O evento catalisador da Independência prematura de Cabo Verde em 1975 constituiu a Revolução dos Cravos em Lisboa, protagonizada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) em 25 de Abril de 1974, pondo termo ao regime nacionalista (também caracterizado de fascista) do Estado Novo em Portugal, que considerava Portugal um Império Uno e Indivisível, de Minho a Timor. A revolução arrastou-se pelos territórios coloniais ou ultramarinos portugueses e gerou no arquipélago de Cabo Verde um processo revolucionário que culminou com a sua Independência. O “25 de Abril”, põe pois termo a um longo conflito colonial ou guerra do Ultramar sustentado por Portugal em três frentes em simultâneo, Angola Moçambique e Guiné Bissau, e cria condições à ascensão à independência de todos os territórios portugueses, africanos e asiáticos. Daí que os chamados movimentos de Libertação reivindicaram para si o poder em 1974, que alegaram ter conquistado pelas armas em nome dos seus respectivos povos.

 Relativamente a Cabo Verde não houve guerra em seu solo: na impossibilidade de tê-la feito no arquipélago, simplesmente por não ter adesão da população ou condições, o PAIGC (que se autoproclamava como legítimo representante do povo cabo-verdiano) argumenta ter feito uma guerra de Libertação na Guiné com cabo-verdianos, ou seja fez tudo por procuração em nome do povo de Cabo Verde, de acordo com o ideário e os princípios de Amílcar Cabral, tendo como corolário a Unidade Guiné e Cabo Verde.

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Com efeito, uma mão meio-cheia de cabo-verdianos foi convidada por Cabral a integrar a direcção do PAIGC, como a sigla indicava. Todavia, no quadro da guerra colonial na Guiné, o PAIGC seria composto no início da guerra, em 1960, essencialmente por guerrilheiros guineenses pouco, ou nenhuns, instruídos, salpicados mais tarde pelos quadros cabo-verdianos recrutados, incluindo militares cubanos que enquadravam militarmente as operações de guerrilha no território. A direcção do PAIGC terá despachado nos anos 60 para S. Vicente Abílio Duarte com o intuito de mobilizar a juventude da ilha em prol dos ideiais do partido, tendo por objectivo os preparativos para uma luta armada no arquipélago, o que se revelou impossível não somente pelas dificuldades no terreno, como também pela não-adesão da população de então. Apesar de tudo, teve algum sucesso junto da juventude liceal, pois alguns dos futuros quadros cabo-verdianos do PAIGC resultam desta campanha. Só a partir dos finais dos anos 60, inícios de 70, é que pôde contar com um número significativo de simpatizantes originários do arquipélago, em geral estudantes universitários cabo-verdianos em Lisboa (filhos da elite local (local, colonial e/ou crioula), muitos tendo feito parte da Mocidade Portuguesa), que eram recrutados nos diversos partidos de esquerda mal chegavam à cidade.

Por isso, e paradoxalmente, é em Lisboa que ocorre o grosso da mobilização dos jovens cabo-verdianos ao PAIGC, ao passo que no arquipélago ela só começa a ocorrer quando os mesmos começam a regressar de férias, munidos de ferramentas teóricas revolucionárias e de competência discursivas. Apesar de tudo, o sucesso da mobilização foi mitigado até o 25 de Abril, devido ao desempenho da PIDE e a indiferença da população, o que leva a concluir que a estratégia de mobilização do PAIGC em Cabo Verde falhou, ou que este partido não representava as aspirações das populações como pretendia. A situação é de tal maneira caricata neste aspecto, ao ponto que um jornalista francês do ‘Le Monde’ numa reportagem no arquipélago em Agosto de 1974 não ter encontrado militantes do PAIGC (curiosamente o número conversos e de agraciados por feitos independentistas aumentou exponencialmente nos últimos anos).

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Para a elite local, a guerra na Guiné, tal como em Angola e Moçambique, não era um assunto que lhe dizia respeito, nem com a qual, sequer, simpatizava. Os cabo-verdianos não se associavam muito ao que se passava no resto do Ultramar, apesar de alguns dos seus filhos poderem serem recrutados e morrerem lá em combate

Todavia, o PAIGC conseguiu estender as suas ramificações tentaculares pela diáspora cabo-verdiana, tendo conseguido alguma adesão, e mesmo simpatia nalguns sectores políticos destes países (nomeadamente no Norte da Europa). Nos EUA, a estratégia não deu grandes resultados, apesar dos apoios políticos de algumas personalidades americanas.

Para a elite local, a guerra na Guiné, tal como em Angola e Moçambique, não era um assunto que lhe dizia respeito, nem com a qual, sequer, simpatizava. Os cabo-verdianos não se associavam muito ao que se passava no resto do Ultramar, apesar de alguns dos seus filhos poderem serem recrutados e morrerem lá em combate, mas, também, porque o regime evitava, o quanto possível, qualquer associação à questão do ‘Ultramar’, ao ponto que poucos sabiam que haviam alguns combatentes cabo-verdianos do lado dos insurrectos do PAIGC. A elite local vivia um tanto despreocupada com assuntos políticos e sociais de Portugal e do Ultramar, porque a política no arquipélago era um assunto delicado, complexo e reprimido. Considerava-se bem implantada no arquipélago e respaldada pelo regime de Lisboa, para além do guarda-chuva protector das Forças Armadas portuguesas, julgando, pois, nulas as chances do PAIGC conquistar um dia o poder no arquipélago.

É um facto, Cabo Verde era militarmente uma fortaleza inexpugnável (pelo dispositivo de defesa e segurança montado, e pelas dificuldades do terreno, mas também pela lealdade da maioria da população à Portugal). Por isso, a elite local não levava a sério o partido das matas da Guiné ou dos salões africanos e europeus, e dava-se ao luxo de o fustigar politicamente e ideologicamente, caracterizando-o de movimento subversivo e um braço armado de Moscovo. Para além disso ela repudiava os dogmas fundamentais do cabralismo, nomeadamente a independência de Cabo Verde associada à Guiné, e a Unidade Guiné-Cabo Verde. Para o seu desespero, o PAIGC era reconhecido pela ONU e por uma parte da comunidade internacional, como o representante dos povos da Guiné e Cabo Verde, trazendo legitimidade, fundos e apoios diplomáticos.

É um facto, a atitude da elite foi um erro trágico, de que veio a pagar caro, pois bastou um evento extraordinário, uma revolução em Lisboa em 1974, para mudar a realidade (ou a ilusão dela) na qual ela vivia, e o curso da História de Cabo Verde. É a própria comissão local do MFA em Mindelo que em Novembro de 1974, perante a conjuntura resultante do agravamento da situação política e de segurança no arquipélago, derivada da agitação radical esquerdista e da sofreguidão pelo poder dos dirigentes cabo-verdianos do PAIGC, e no seguimento a ameaça irresponsável dos mesmos em desencadear uma possível acção armada no arquipélago, caso Portugal não correspondesse ao desiderato do PAIGC ou não acatasse o ultimato, resolveu enviar um ultimato real ao governo português no sentido de este reconhecer o PAIGC e acelerar a transferência da soberania para este partido, dando um prazo máximo de 48 horas (1, 2, 3, 4, 5) para se chegar a um acordo.

Em plena situação de pós-25 de Abril, Portugal capitulou à chantagem, abdicando da sua doutrina e posição em matéria de Cabo Verde. Provavelmente, por motivos de segurança, para evitar a radicalização do PAIGC, o MFA desmantela os partidos da oposição, ordena a prisão dos elementos principais e depois transfere-os para Lisboa. A Rádio Barlavento de S. Vicente é assaltada, e todos os meios de informação ficam sob alçada do PAIGC, e começam a debitar propaganda. O PAIGC toma o controlo total do arquipélago. Inicia-se a debandada da elite e do grosso das forças vivas. S. Vicente mergulha-se no marasmo e com ele o arquipélago todo.

No que concerne à ‘descolonização de Cabo Verde’ ela se resume a este processo, e há quem se vanglorie pelos actos de vandalismo perpetrados neste período, já que conferem condecorações e regalias. É claro que, se a História tivesse ocorrido de outro modo, as FA portuguesas poderiam ser preservadas no arquipélago como garante de ordem e segurança públicas, visando um processo longo de transição democrática e transparente do poder (o ideal é que não fosse inferior a 5 anos) ou de permanência da soberania portuguesa no arquipélago, caso a população assim o desejasse (através de um escrutínio ao qual ela tinha direito, segundo as resoluções da ONU).

Ao invés elas afastastaram-se do palco, preparando para uma retirada súbita, enquanto desencadeava-se uma ‘revolução’ que iria ‘atirar para o mar a elite’ (uma expressão usada por um revolucionário ébrio nos dias triunfantes da conquista do poder em Cabo Verde), criar um Homem Novo e instalar um regime de partido único que aboliria por muitos anos, as liberdades e os direitos fundamentais adquiridos com o 25 de Abril de 1974.

Referências:

(1) https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/5273/4/Cabo%20Verde.pdf

(2) https://media.rtp.pt/descolonizacaoportuguesa/pecas/cabo-verde-5-de-julho-de-1975/

(3) https://www.dw.com/pt-002/fui-um-negociador-astuto-considera-pedro-pires/a-17736994

(4)https://www.dn.pt/globo/cplp/cabo-verde-nao-deveria-ter-sido-independente-1546049.html

(5)https://www.dw.com/pt-002/tenho-muita-honra-em-ter-participado-na-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-diz-m%C3%A1rio-soares/a-17260598

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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