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As Lições de Bragança … e depois

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Por Ildo Rocha Ramos Fortes

O Instituto Politécnico de Bragança celebrou a 28 de Janeiro 37 anos da sua existência, num ambiente ainda consternado, mas com esperança no futuro. Depois de dor, sofrimento, angústia e revolta por causa do caso Giovani Rodrigues, jovem estudante do Politécnico brutalmente espancado, falecido a 31 de Dezembro de 2019, o apelo à justiça e à não-violência são as palavras de ordem. Giovani Rodrigues foi espancada por motivos fúteis e os cinco protagonistas do acto bárbaro estão em prisão preventiva.  

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O ministro-adjunto do primeiro-ministro de Cabo Verde, Rui Figueiredo, representou o Governo, reiterando que “a memória de Giovani servirá para sedimentar os laços fraternos que nos unem e que nada poderá fazer vacilar ou pôr em questão. Há coisas que nos ultrapassam e que devemos, na hora do sofrimento, saber aceitar e transformar o sofrimento num momento de determinação como um sinal de que só a paz, a concórdia e o amor podem vencer a violência, o ódio e a intolerância”. Também o presidente do politécnico de Bragança, Orlando Rodrigues, referiu que a presença de diferentes entidades no dia de aniversário e de homenagem serviu para “dizer que os laços que nos unem são mais fortes que as tragédias que nos acontecem”.

O caso Giovani está a ser acompanhado desde a primeira hora pelos Governos de Portugal e de Cabo Verde, através do Secretário de Estado do Ensino Superior Álvaro Sobrinho,  e Embaixador de Cabo Verde em Portugal, Eurico Monteiro e outras entidades, que tem apelado a serenidade e não violência. 

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O cantor Tito Paris, que levou a música das ilhas à Cidade transmontana, lançou um repto ao Instituto que acolhe 1200 cabo-verdianos no sentido de promover uma excursão à terra de Giovani. O presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos  (CCISP), Pedro Dominguinhos, que esteve presente na sessão, respondeu ao repto assegurando que “se entenderem fazer qualquer iniciativa na Ilha do Fogo”, este órgão “está na disposição de se associar”. 

Reflexões sobre o racismo: Quem és tu, diferente de mim?

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Conviver com o outro, diferente de nós, no aspeto físico e nos hábitos culturais, requer ainda em muitos casos uma revolução das geografias mentais. Apesar de a escravatura ter sido abolida no séc. XIX e o racismo universalmente condenado, o preconceito ainda subjaz e condiciona os pensamentos e as ações de muita gente. Ao longo da História as diferenças culturais e físicas foram vivenciadas de forma diversa: curiosidade, medo, apreço, rejeição, tendo mesmo face a determinadas singularidades, ter-se negado a determinados povos, conforme registos literários, a categoria de “humanos” e detentores de alma.

 Com a expansão colonial europeia, a cor e os traços físicos passaram a constituir o indicador privilegiado da alteridade. Foi também o período em que, em função do muito que foi sendo conhecido nas novas terras conquistadas, se começa a pensar o mundo de outra forma e se vai tentando encontrar novas explicações mais científicas para a diversidade recém descoberta.

É neste contexto que vão surgindo as teorias para explicar as diferenças visíveis, surgindo as categorias de raça e tipos raciais que promoveram hierarquias favoráveis a diferentes comunidades e que se mantiveram ao longo dos séculos legitimando o imperialismo europeu e a colonização dos continentes africano e asiático. Assim, durante séculos, o hábito justificou a escravatura e em pleno Séc. XIX a ciência europeia legitimou o racismo que se desenvolveu a partir de determinadas teses (raciais) de cientistas europeus, com particular ênfase para os médicos e os antropólogos, como Gobineau e Chamberlain. Essas teses apoiaram e estiveram na base de procedimentos que determinaram a hierarquia das civilizações, sendo segundo elas as mais fortes constituídas por raças superiores. 

O Homem ao longo da sua História aprisionou, mandou, explorou, traficou e decidiu a vida de outros Homens, considerando-se seu dono sempre que se encontrou numa posição de força. Encontramos escravatura no Egipto Antigo, na Roma Antiga, em vários haréns do Oriente, onde as concubinas do sultão eram negociadas ou capturadas na região do Cáucaso e em África, onde o escravo não era mercantilizado, mas sim considerado um braço a mais na economia doméstica ou nas campanhas militares. 

As ações políticas racistas que se desenvolveram um pouco por todo o mundo, em relação aos povos africanos e/ou de pele não clara, foram buscar à Ciência a sua legitimação, hierarquizando os povos em função da sua superioridade decorrente da pigmentação, segregando-os, separando-os e distribuindo de uma forma desigual privilégios e direitos. Insurgindo-se contra esta forma de pensar e de agir começam e emergir no Século XVIII as correntes ideológicas que lhe contestam a legitimidade e que vão fracionando e causando polaridade ideológica nas sociedades europeias. Sendo a Inglaterra a pioneira do abolicionismo, outros países foram partilhando essa tese e gradualmente a escravatura explícita foi extinta.

Sabemos que as leis são publicadas muito antes de as práticas serem erradicadas e das mentalidades alteradas. A imprensa portuguesa enaltece vidas e ações de sucesso da comunidade branca e não faz em geral qualquer referência às boas práticas levadas termo por membros da comunidade negra, que poderiam ser grandes exemplos e referências para a camada mais jovem, além de elevar a autoestima dos seus membros. 

Poderíamos enumerar muitos outros campos de análise para reforçar a ideia de que sim, há ainda racismo em Portugal e muitas vezes perigosamente instalado e disfarçado nas várias atitudes que são assumidas como normais. Por outro lado, há gente portuguesa muito atenta, consciente e humana que há anos luta e defende uma sociedade mais justa, mais igualitária, com oportunidades transversais a todos os que a habitam mas que não quer conviver com atitudes antissociais que em tudo contrariam e contradizem as mais básicas regras de cidadania. Assim concordam que atitudes e comportamentos errados sejam punidos da mesma forma, independentemente da cor de quem os pratique, porque não discriminam nem positivamente nem negativamente pela cor. 

Assim há terreno fértil para abordar à escala micro e macro este problema que mina e corrói a alma de quem se sente ostracizado e injustiçado pela diferença que a cor ainda permite, mas também de quem no lado da sociedade portuguesa está aberto a contribuir para uma forma de convivência justa, harmoniosa, e enriquecida pelas diferenças. Mas para que seja credível essa vontade e produza eficácia qualquer política de integração, deve ser pensada, criada e implementada com a estreita colaboração dos representantes da comunidade africana. Nas Juntas de Freguesia, nas Câmaras Municipais, no Governo, na Assembleia da República. 

No nosso dia-a-dia como cidadãos responsáveis e peças chave de novas sociedades que se querem renovadas e dinâmicas, temos todos que cumprir o nosso papel, através de um olhar critico e isento, responsável e ativo, não desculpando o que deve ser punido e contribuindo com o nosso saber, competência e informação para implementar novas formas de vida e novas realidades verdadeiramente inclusivas. 

Temos que estar atentos às atitudes racistas herdadas dos séculos pretéritos, e paralelamente reforçar o desejo de inclusão e inserção na sociedade de acolhimento branca, que também passou a ser a da comunidade negra porque vive no seu seio e contribui para o seu desenvolvimento. Vamos então mudar o paradigma, e juntos lutar por uma nova forma de vida.

Desloquemo-nos também para os locais onde os jovens negros – os futuros homens de amanhã têm maior índice de abandono escolar, e demos as mãos, elites brancas e negras, com os seus quadros e intelectuais, num esforço conjunto de os apoiar e provocar novas formas de ser e estar, motivando-os para o conhecimento e a diversidade de saberes, para que amanhã estejam transversalmente representados na sociedade em que habitam e seja assim possível erradicar as causas primárias potenciadoras da eternização da discriminação e da segregação e onde se fale apenas de pessoas sem qualquer adjetivação em função da cor da sua pele.

Jornalista / Investigador Social

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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