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APP NANOSMON: Cabo-verdianamente orwelliano?

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Por Caplan Neves

A iniciativa de implementação de uma solução tecnológica de rastreamento do COVID-19 em Cabo Verde fez disparar o alarme dos princípios liberais de proteção à liberdade e privacidade individuais. Esta reação é legítima, compreensível e, sobretudo, essencial. 

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No entanto, como procurarei argumentar neste texto, ela não deve ser exagerada ao ponto de nos privar de uma importante ferramenta que facilitará abandonar gradualmente as medidas extremas de contenção, sem redundar na disseminação descontrolada da pandemia. 

A maioria das reações ao APP NANOSMON não motivou argumentos, mas uma instintiva expressão de repúdio contra um tipo de solução que – justificadamente, diga-se – surge, no nosso imaginário, associada a vigilância secreta por regimes totalitários. Não faltou o irónico bordão “é para o seu próprio bem, dizem eles” – uma, muito provável, alusão ao regime político totalitário descrito no romance distópico “Nineteen Eighty-Four” de George Orwell que, “para o bem dos seus cidadãos” dispõe de um sistema de vigilância para monitorar, gravar e espionar a população. 

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É importante frisar desde já, o simples repúdio não é um argumento. Desaprovar determinada iniciativa associando-a simplesmente a algo que provoca naturalmente repulsa (como o totalitarismo) ou defender a nossa posição associando-a a algo que desperta simpatia (como a defesa da liberdade e democracia) não é argumentar, é manipular sentimentos – já agora, uma estratégia de propaganda muito cara aos regimes totalitários. Para ser justo, não acredito que tenha sido esta a intensão dos que, ao reagir à iniciativa, bramiram as bandeiras da “liberdade”, “privacidade”, “democracia”, sem procurarem demostrar como o APP NANOSMON, especificamente, choca com estes valores. O princípio da interpretação caridosa sugere que o argumento, que têm em mente, seja mais ou menos o seguinte: 

– “É legítimo recorrer a medidas extraordinárias ante situações extraordinárias (razão pelo qual nenhuma voz sensata se levantou contra a declaração de EE, pela primeira vez em quase 45 anos de independência). No entanto é fundamental que, no afão do combate a pandemia, não sejam introduzidos poderes que possam colocar em risco direitos básicos do cidadão, como a liberdade e privacidade. Embora seja concebível que, em mãos idóneas e escrupulosas o rastreio através de dispositivos móveis (como se propõe o APP NANOSMON) possa constituir uma ferramenta eficaz para debelar a atual pandemia, ela introduz um poder demasiado grande nas mãos do estado ou de grupos de indivíduos. Medidas draconianas introduzidas em momentos de crise, podem ser depois mantidas e usados por indivíduos inescrupulosos para a busca e perpetuação do poder. Se não reagirmos a qualquer tentativa subtil de afrouxar princípios liberais, quando elas forem demasiado explícitas, poderá ser demasiado tarde”. 

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Descontando certa deselegância retórica, acredito que formulei, de forma relativamente acurada, o argumento subjacente a muitas das reações ao APP NANOSMON. Mas representará a implementação de tecnologias de rastreio como o APP NANOSMON, efetivamente, um perigoso passo num declive escorregadio em direção a um Cabo Verde orwelliano, com um governo perverso devassando a nossa privacidade? Não se pode dizer que esta seja uma previsão absolutamente implausível mas, como sugeri no início, ela não deve ser exagerada ao ponto de a simples ideia de rastreamento por dispositivos móveis cause tal apelo emocional que impeça sequer de considerar a possibilidade de a implementar em moldes alinhados aos princípios liberais.  

Um governo totalitário empenhado em monitorar e espionar a população, consegue conceber meios mais eficazes e diretos para o fazer, do que um APP de adesão voluntária, que verificou critérios específicos de privacidade e proteção dos dados ao ser concebido. Este governo totalitário poderia simplesmente hackear dispositivos pessoais, redes sociais e contas de e-mail, instalar câmaras e sistemas de escuta em locais de trabalho e espaços privados, contratar espiões para se infiltrar em ambientes laborais, associações e grupos sociais, etc. 

Se queremos evitar um cenário orwelliano em Cabo Verde, temos é de garantir que a escolha dos nossos governantes continue a se processar através de sufrágio universal; que este seja livre e transparente; que políticos eleitos não flertem com tendências autoritárias; que as suas decisões sejam públicas, participativas e constitucionais; que exista responsabilização individual dos representantes do poder público; que exista clara e efetiva separação de poderes, etc. É por aqui que residem verdadeiras ameaças a democracia. 

Se se trata de implementar uma inovação tecnológica que envolva dados pessoais, temos de garantir que as informações técnicas estejam publicamente disponíveis, que os promotores da iniciativa estejam claramente identificados, que a entidade responsável pela proteção de dados seja consultada e avalie técnica e juridicamente se direitos individuais estarão assegurados; que sejam verificados critérios específicos que garantem os requisitos de privacidade e proteção dos dados; que a adesão seja voluntária. 

Especificamente em relação ao APP NANOSMON, tudo isto foi observado.  O APP oferece um sistema de monitorização do vírus, com grande cuidado com a proteção da privacidade e foco na liberdade do utilizador para disponibilizar, ou não os dados – os quais ficam armazenados no dispositivo pessoal em lugar de Bases de dados de organismos públicos ou privados. Uma simples conta nas redes sociais comporta um perigo triplamente maior a nossa privacidade.

Concluindo, o grau de intrusividade, coação, preocupação com proteção de dados e respeitos por garantias individuais de um sistema de rastreio, dependem da matriz cultural e política em que se insere. Contextos mais alinhados com princípios liberais procurarão soluções tecnológicas que respondem a critérios de privacidade e proteção de dados, envolverão o mínimo possível de informação pessoal e armazenarão o mínimo de informação em bases de dados centrais. Contextos menos alinhados com princípios liberais caminharão na direção contrária.  

É uma questão importante identificar, entre estes dois extremos, onde, especificamente, se situa o APP NANOSMON. Responder a esta questão implica sentar e raciocinar juntos sobre questões técnicas, jurídicas e éticas, que envolvem a sua conceção e implementação. Implica discutir racionalmente se as vantagens compensam ou não potenciais riscos e efeitos indesejáveis, mesmo que mínimos. A proposta do APP e as informações técnicas sobre a iniciativa estão amplamente disponíveis, podem e devem ser discutidas. As objeções são fundamentais quando são sustentados em argumentos claramente apresentados de forma que o outro lado possa dar-lhes resposta ou corrigir eventuais erros identificados. Bramir simplesmente a bandeira dos princípios liberais sem demonstrar como, especificamente, o app em questão choca com estes princípios, constitui um mero apelo a emoção e denigre injustamente os que o conceberam e o promovem. É justo considerar seriamente a hipótese de que estes estejam tão ou mais preocupados com a proteção de direitos civis e proteção da privacidade e é a posição contrária que não compreendeu inteiramente porque estes o defendem.   

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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