Nelson Faria
Em Cabo Verde, a proteção do consumidor deveria efetivar as diretrizes legais e normativas na sua plenitude como um compromisso ético e moral em todas as esferas de governação. Apesar da Administração central do Estado ter um papel primordial, são as autarquias locais, os municípios, que, por estarem mais próximas da população, os cidadãos e consumidores, podem transformar leis em ações concretas e eficazes. Com a entrada em vigor do Novo Estatuto dos Municípios (Lei n.º 48/X/2025, de 4 de abril) a partir de 2026, essa responsabilidade ganha contornos mais precisos e abrangentes, tornando-se imperativo que os líderes municipais interiorizem e operacionalizem plenamente as funções que lhes são atribuídas.
Desde a promulgação da Lei n.º 88/V/98, de 31 de dezembro, que instituiu o regime geral de proteção do consumidor em Cabo Verde, o artigo 4.º é taxativo ao reconhecer que “incumbe ao Estado e às autarquias locais proteger o consumidor, designadamente através do apoio à constituição e funcionamento das associações de consumidores, bem como à execução do disposto da presente lei.” Mais adiante, a alínea n) do artigo 18.º desse diploma consagra direitos específicos das associações de defesa do consumidor, reforçando o papel colaborativo que municípios e associações devem ter.
Além do imperativo legal, como referi, existe um imperativo moral, pois cada cidadão, ao adquirir bens e serviços, deposita confiança no sistema local de regulação e fiscalização. Caberá, então, aos municípios assegurar que essa confiança seja assegurada, promovendo mercados justos, transparentes e seguros. No nosso país, onde parte da população enfrenta limitações económicas e de informação, a defesa do consumidor é também uma ferramenta de inclusão social. Idosos, pessoas com rendimentos baixos e residentes em zonas rurais são frequentemente vítimas de práticas comerciais abusivas, por falta de informação ou acesso a mecanismos de reclamação. Cabe aos municípios, como entidades mais próximas do cidadão, garantir que ninguém seja prejudicado pelo simples ato de consumir. Capacitar os munícipes a reconhecerem seus direitos fortalece a democracia e a economia local, pois, consumidores informados exigem mercados mais transparentes e competitivos.
Com a Lei n.º 48/X/2025 de 4 de abril, o novo Estatuto dos municípios, várias atribuições concretas ficam vinculadas às autarquias, nomeadamente:
· Proteção, defesa e fiscalização do cumprimento dos direitos dos consumidores (art. 73.º, alínea a);
· Promoção de ações de informação e educação sobre direitos de consumidores, em cooperação com o Governo e associações (al. b e c);
· Formação de quadros no atendimento público (al. d);
· Criação de mecanismos de mediação e arbitragem de conflitos de consumo (al. f e g);
· Fiscalização de locais de venda de produtos alimentares e outros bens/serviços potencialmente perigosos (al. h);
· Apoio institucional às associações de consumidores (al. i).
Portanto, estas competências, que vão muito além de meros “papéis protocolares”, impõem aos municípios a criação de estruturas e processos internos para executar fiscalizações regulares, desenhar campanhas educativas, formar equipas locais e promover espaços de diálogo entre fornecedores, consumidores e entidades públicas.
A ADECO, associação orientada para a defesa do consumidor, de abrangência nacional, tem, ao longo de 27 anos, demonstrado o valor de uma atuação coordenada na identificação de problemas, mobilização de recursos técnicos, capacitação de cidadãos e mediação de conflitos de consumo. Na minha perspetiva, os municípios, por sua vez, podem e devem potenciar esse trabalho através de protocolos que confiram estabilidade financeira, partilha de dados estatísticos, apoio logístico e envolvimento em programas de formação. Os bons exemplos de colaboração entre a ADECO com os municípios do Sal, da Boavista e de Porto Novo mostram que, quando há vontade política, os resultados aparecem e, certamente, teremos mais consumidores informados, menos litígios, maior satisfação e confiança nas relações de consumo.
Perante a necessidade de cumprimento da lei, de cumprimento das obrigações morais e cívicas, obrigações cidadãs, ligada a defesa do consumidor, a ADECO coloca-se à disposição da Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde e de todos os municípios cabo-verdianos em particular para, em conjunto, delinear projetos que preencham as exigências legais e respondam às necessidades dos cidadãos. Em celebração do seu 27.º aniversário, seria um marco simbólico e prático que cada câmara municipal ratificasse um protocolo de cooperação, mostrando que a defesa do consumidor é uma prioridade de governação local.
Consumidores somos todos nós. A confiança no mercado local reforça o tecido económico e social de Cabo Verde, aumenta a competitividade das empresas e protege os grupos mais vulneráveis. O quadro legal, hoje com mais um incremento pela Lei n.º 48/X/2025, oferece aos municípios ferramentas para agir, para isso, resta-lhes a coragem política de efetivar essas atribuições.
Proteger o consumidor é proteger a dignidade de cada cidadão. É garantir que o pão comprado nas padarias seja seguro, que as verduras, legumes, congelados, pescado, água e outros bens de consumo nos mercados, assim como a conta de luz reflita o consumo real e que os cidadãos e turistas sejam atendidos com correção, segurança e transparência. Para um arquipélago que aspira a ser moderno e justo, não há espaço para omissões. Cumpra-se a lei, honre-se a ética e sirva-se às pessoas, os cidadãos, os consumidores.