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RTC submete-se ao futebol e “pontapeia” outras modalidades: Empresa aloca vasta equipa só para relatar jogos do “desporto-rei”

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A cada jornada, a RTC aloca, pelo menos, 20 profissionais, meios técnicos e de comunicação em todo o país para estar apenas nos relvados de futebol, em todos os estádios de Cabo Verde. A maior parte dessa equipa formada por jornalistas, técnicos, comentadores e condutores, está centrada nas regiões desportivas de Santiago Sul e São Vicente, que contabilizam à volta de doze pessoas. Resta adicionar os outros campeonatos regionais, onde, por regra, fica sempre um jornalista da casa ou um correspondente.

Feitas as contas, pelo número de profissionais destacados para dar conta daquilo que se passa exclusivamente nos relvados de futebol, passa-se a ideia errónea de que, entre as 14 e 18 horas dos sábados e domingos, nada mais acontece nos outros campos desportivos. Estes dados podem ser constatados no programa Tarde Desportiva – que na verdade devia ser Tarde Futebolística – que acontece aos fins-de-semana durante quatro horas seguidas, tempo afunilado para um único propósito: promover o futebol.

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O Mindelinsite fez ainda uma análise de outros programas radiofónicos e televisivos da empresa pública de comunicação social, onde o futebol continua a predominar no espaço dedicado ao desporto. É exemplo do programa Tribuna Vip, com cerca de uma hora e meia de actualidade desportiva, que reserva mais de 60 por cento do seu espaço ao jogo do pontapé na bola e o tempo restante redistribuído pelas outras modalidades. Isto quando a diferença não é substancialmente maior.

Considerado na RTC o “desporto rei”, máxima usada para “justificar” esse nível de discriminação numa empresa de capital público, o futebol acaba por ofuscar a visibilidade das modalidades “menores”, que não conseguem sequer sonhar em ter direito à mesma atenção, embora algumas gozem de um nível de qualidade competitiva tão ou mais elevada que o futebol. Basta ver a quantidade de jogadores de andebol, basquetebol, voleibol e kitesurf, taekwondo, etc., que lançaram as suas carreiras internacionais nos últimos anos, contratados por clubes europeus.

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Na verdade, esses e outros desportos recebem uma ínfima atenção da media estatal porque os próprios profissionais da TCV e da RCV continuam a acreditar que o futebol merece tratamento Vip por ser a modalidade mais organizada e que arrasta “multidões” em Cabo Verde. Aliás, os programas desportivos da RTC (rádio e televisão) por norma começam e terminam consoante o calendário futebolístico. Para eles, cada jornada de futebol merece destaque, com ou sem grandes novidades.

“Tratamentos diferentes a pesos diferentes”

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Como comprova Benvindo Neves, o editor do desporto da RCV, trata-se, antes de mais, de uma questão de proporcionalidade. “Não se pode dar o mesmo tratamento a pesos diferentes”, entende esse jornalista, que não concorda com a ideia de que se prioriza o futebol. Para ele, o órgão público trata todas as modalidades da mesma forma. Mas volta a insistir na questão da proporcionalidade: “Em todos os lugares, em cada ribeira e em cada ‘cutelo’ de Cabo Verde, prossegue esse apresentador do ‘Tribuna Vip`, joga-se futebol e há clubes constituídos. O mesmo já não acontece com as outras modalidades. Por exemplo, o ténis só é praticado em quatro regiões do país. O mesmo acontece com o basquetebol e outras modalidades”, explica.

Neste sentido, para Benvindo Neves não seria correcto dar o mesmo tempo de antena a um desporto praticado por tantas pessoas em relação a outro que, se calhar, nem 1 por centos dos jovens adere. “É a mesma coisa que acontece na política. Os tempos de antena de cada partido é definido pela sua representatividade, conforme o número de deputados”, compara.

Neste momento temos 9 campeonatos regionais de futebol a acontecer no país. Nenhum de basquetebol, por exemplo. Nas outras modalidades, os campeonatos são muito curtos e muito pontuais. Um campeonato de basquete costuma durar uma semana”, exemplifica Benvindo Neves, para quem a tendência é dar mais atenção ao desporto que tem mais audiência e mais interesse para a população, sem descuidar dos outros. “No dia que o basquetebol tiver mais peso que o futebol, como acontece nos EUA, os meios de comunicação social desviarão a sua atenção para o basquetebol e ele estará em posição de domínio nos media, assim como o futebol está actualmente”, frisa Neves.

Relato, entrevistas, notícias e … debate

Para o futebol, a cobertura, além de maior, é bastante diferenciada: há um acompanhamento dos jogos em tempo real, entrevistas aos treinadores e jogadores no término das partidas, comentários/debates nos programas desportivos sobre os encontros disputados e relatados no dia anterior e ainda notícias nos jornais do dia seguinte, como se ainda restasse mais alguma novidade jornalística. No entanto, os jornalistas desportivos da RTC negam ou têm receio de relatar uma partida, por exemplo, de andebol ou basquetebol.

Questionado pelo Mindelinsite sobre a forma de cobertura de cada modalidade, Benvindo Neves explica que não existe uma tradição de relatos dos jogos de outras modalidades. “Não que não possa haver. Mas não temos esse hábito, assim como não se tem em outras partes do mundo”. Por outro lado, Neves coloca a questão dos horários em que decorrem os jogos, talvez esquecendo que a TCV já transmitiu várias partidas de futebol em directo, nomeadamente jogos do campeonato português, sem se preocupar com a hora. Tantas vezes, entretanto, a TCV já adaptou o horário nobre do noticiário da noite só por causa de um jogo de futebol?!

Quando não temos relatores suficientes, não podemos retirar um relator de um campo de futebol para colocar num campo de basquete, com muito menos gente a seguir o jogo. Manda o bom senso que o relator esteja onde houver maior número de seguidores e de pessoas interessadas no jogo”, diz o jornalista, isto quando os campos de futebol às vezes têm menos espectadores que os pavilhões.

Público na bancada Sul do estádio Adérito Sena num jogo do SC Mindelense

É importante levar em conta, segundo o editor do desporto da RCV, que a rádio não tem pessoas formadas em relatos, mas sim jornalistas que, por se interessarem pelo futebol, desenvolveram também interesse pelo relato. “Não necessariamente estão preparados para relatar as outras modalidades”, admite, o que significa dizer que é a paixão individual dos jornalistas que dita a agenda desportiva. Entretanto, explica esse editor, sempre que decorre uma competição interessante a nível nacional é destacado um jornalista para acompanha-la na íntegra, reconhecendo, embora, que isso fique “aquém do desejável”. 

Desporto sem orçamento, excepto o futebol

Quanto ao orçamento, Neves explica que não existe um orçamento destinado especialmente ao desporto. “Como editores, todos os anos fazemos uma planificação de todas as competições nacionais e internacionais que queremos acompanhar e entregamos à direcção, que depois integra o plano no orçamento geral da época. Não existe um orçamento específico para o desporto”, enfatiza. Mas parece óbvio que o futebol “engole” quase tudo. Basta ver a quantidade de técnicos, jornalistas, comentadores, viaturas e outras despesas feitas exclusivamente para o relato das partidas de futebol. Sequer há um esforço para se informar o público das outras competições que, entretanto, estão a decorrer nas diferentes regiões.

Dizer que o futebol representa a maioria da população de adeptos e simpatizantes do desporto em Cabo Verde é uma escapatória já “patenteada” para justificar a discrepância de cobertura em relação aos restantes desportos. Tese, no entanto, facilmente desconstruída se visitarmos, por exemplo, o Estádio Adérito Sena, em Mindelo, durante as competições. As bancadas estão praticamente vazias, pois as pessoas só aparecem em maior número quando há um “derby” ou na fase final dos campeonatos.

Federações indignadas com “pontapé” nas suas modalidades

Embora acostumados com a ideia de que outras modalidades não terão o mesmo espaço que o futebol goza na comunicação social, alguns dirigentes mostram-se indignados e almejam tempos melhores, onde as restantes modalidades poderão ter espaço para mostrar o trabalho feito, como uma forma, também, de angariar mais simpatizantes e até praticantes.

Algumas modalidades vêem-se lesadas e dirigentes queixam-se mesmo de discriminação, como é o caso do Presidente da Federação Cabo-verdiana de Andebol (FCA), Nelson Martins, que se diz triste, uma vez que, para ele, o andebol serve apenas para “encher chouriço”. Na sua perspectiva, os jornalistas vão aos pavilhões como que por obrigação ou para não ficar feio. “Depois de preencherem 95% do espaço desportivo com o futebol, os 5% restantes ficam para as outras modalidades. Não existe, sequer, uma selecção aleatória dos assuntos. Os programas começam sempre com futebol e só depois de esgotar tudo é que dão lugar às outras modalidades”, desabafa Nelson Martins, para quem o nível do futebol nem está melhor do que o das outras modalidades para justificar tal comportamento.

Outra questão que deixa este dirigente indignado é o facto de, a par das competições e campeonatos, quando se trata de futebol “tudo se transforma em notícia”. Nada de errado até aqui, mas, Martins questiona o motivo de o mesmo não acontecer com as outras modalidades. “Um jogador transferido é notícia, os treinos de preparação são notícia, enquanto um bom jogo de andebol dificilmente dá notícia”, critica.

Apesar dessa evidente discrepância, alguns dizem compreender que as coisas funcionem desta forma. “Percebe-se que é necessário dar mais atenção a outras modalidades, mas também percebe-se porque é que é dado mais espaço ao futebol, dado que é o desporto que movimenta mais multidão”, explica Gabriel Delgado, presidente do Clube de Golfe de São Vicente. Um outro motivo apontado por esse também jornalista desportivo da TCV é a “exiguidade de meios do órgão público”, mormente para cobrir o desporto. “É preciso colocar mais meios à disposição e começar-se a ver o desporto de forma mais global, como um departamento igual a outro, e não somente como um divertimento ou uma brincadeira. Até ao futebol tem-se dado uma má cobertura jornalística”, aponta Gabriel Delgado.

Na mesma linha, António “Txey” Rodrigues, presidente da Federação de Voleibol, é da opinião que os órgãos de comunicação social públicas sempre fizeram um plano de cobertura desportivo centrado no futebol. Entretanto, Txey entende que o futebol foi o desporto pioneiro em Cabo Verde, que realiza mais competições e tem mais equipas constituídas. Por outro lado, considera, a RTC não tem profissionais especializados nas diversas modalidades. São jornalistas generalistas, diz, que trabalham também com o desporto de forma geral e são solicitados para dar cobertura às actividades desportivas. Desta forma, explica, entende-se que se dê prioridade ao desporto que está mais organizado e cujas competições melhor se ajustam ao horário de trabalho.

Já no ténis, o presidente da federação José Almada diz não ter razões de queixa, uma vez que está à frente da FCT há dois anos e, nesse tempo, a modalidade teve uma cobertura “satisfatória” da televisão pública. Inclusive, explica, têm recebido feedback na rua, o que significa que têm estado a alcançar as pessoas através dos media.

Já Admilson Monteiro, responsável do departamento técnico da Associação de Taekwondo de S. Vicente, é peremptório em criticar o nível de discriminação da RTC na cobertura desportiva.  O futebol, diz, pode até merecer algum destaque pela quantidade de competições que organiza, mas, a seu ver, um órgão público não pode dar as costas a outras modalidades só porque não têm o mesmo peso que o chamado desporto-rei.

Natalina Andrade (Estagiária)

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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