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Valódia Monteiro : “Teatro cabo-verdiano vive de ciclos sazonais e com parcos recursos”

O dramaturgo, encenador e actor mindelense Valódia Monteiro qualificou de “paradoxo enorme” o facto de ser reconhecida a importância que as artes têm para a estabilidade emocional de qualquer individuo, contudo, em tempos de crise, o primeiro a ser “cortado” é o setor da cultura. Valódia Monteiro falava ao Mindelinsite a propósito do lançamento na cidade do Mindelo do seu primeiro livro, obra que contém quatro textos de peças teatrais, intitulada “O que faço com isto?”. A cerimónia agendada para as 15 horas deste sábado, 14, vai contar com a apresentação de João Branco e João Delgado da Cruz, no auditório da Universidade de Cabo Verde. Dedicação, Resiliência, Reinvenção, Trabalho, Disciplina, Amor são as palavras endereçadas por este artista aos jovens que querem seguir as lides culturais em Cabo Verde. 

Por: João A. do Rosário 

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Mindel Insite – Explica-nos o motivo de um livro como este? Ou seja com textos para peças de teatro? 

Valódia Monteiro – Acho que este é o livro ideal, nesta altura, para mim. Há anos que escrevo para o teatro e penso este ser o momento oportuno para dar a conhecer às pessoas os meus textos (em forma de livro), pois creio ser esta (a dramaturgia) uma parte do teatro que, por vezes, “morre” na sala, na medida em que várias foram as vezes que saí de uma peça de teatro extasiado, deslumbrado devido a qualidade do texto aí apresentado, como também casos houve em que saí desiludido, chateado ou mesmo triste com o texto ali dito. Na minha ótica, creio ser pertinente e útil a colocação destes escritos em livro não somente para serem trabalhados pela comunidade teatral, em particular, como também por outros que se interessem pelo texto, em si (estudantes, professores). 

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MI – Disseste que são peças de teatro, estes que estão no teu livro, mas podiam ser outras.  Fale-nos sobre o que versam estes textos ou peças que estão publicadas neste livro. 

VM – Sim, eu poderia acrescentar outras a estas, mas acho que as quatro são as mais representativas e mais “completas” do meu espólio. Creio ser uma escolha sensata e segura.  

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O primeiro texto – “Psycho” – escrito em 2006 e encenado pela Companhia de Teatro Solaris, versa sobre fobias. Um indivíduo que se divide em corpus (I e II), vive num micromundo (quintal) com três fobias: ao sexo, à sujidade e à multidão. O caos aparece quanto os corpus se encontram. 

“Sim ou não?” (2013), encenado pelo Projeto Pró-teatro – traz à tona o dilema da partida, pois apresenta duas personagens (Nemo e Antonius) que desde sempre se conhecem e vivem num mesmo espaço. Um dia Antonius decide partir e consigo quer levar o amigo de sempre, mas este não pretende seguir em jornada. A tarefa do primeiro é convencer o outro a partir, contudo o segundo pretende que este fique ali com ele. 

“Sente-se, homem!” (2017) encenado pelo Projeto Pró-teatro – apresenta uma surreal entrevista de emprego em que o entrevistado é posto à prova a todo o momento. Nessa estranha conversa ele terá a tarefa de decidir se se submete ou não aos “caprichos” dos três entrevistadores. A sua admissão ou não poderá estar presa por um insignificante detalhe. 

“O que faço com isto” (2019), que ainda não foi encenado, – retrata a conturbada e violenta relação entre um pai e um filho. O pai, paralítico e numa cadeira de rodas, e o filho, que perdeu a fala durante um acidente de viação, travam um macabro e desconcertante “diálogo” do início ao fim.  

MI – Constata-se de que és um dramaturgo. Isto como se explica? 

VM – Confesso que a palavra “dramaturgo”, num primeiro momento, poderá causar algum calafrio dado o grau de responsabilidade que carrega em si, mas depois constata-te que é nada mais que uma designação que se atribui. Para mim, o mais importante é o trabalho que se faz e não propriamente o nome que se dá à pessoa que executa a tarefa. Facto é que há uns anos que escrevo textos para teatro e que a designação para quem o faz é de dramaturgo e é minha vontade e meu desejo que isso continue. 

Incursão para outros géneros literários

MI – Já pensaste fazer incursões para outros gêneros literários? 

VM – Curiosamente quando anunciei a alguns amigos de longa data que eu iria lançar um livro, a primeira pergunta que me fizeram foi: “É um livro de poemas?”, pois desde os idos tempos de aluno do liceu que sou conhecido entre os meus colegas e amigos como alguém que gosta de escrever e dizer poemas. Mas houve também quem me perguntasse: “E para quando um livro de crónicas”?  

Confesso que, se me perguntarem se eu tinha pensado que o meu primeiro livro seria sobre textos de teatro, diria taxativamente “não”. Contudo, este é o cenário que temos e creio ser a escolha mais acertada. 

MI – Estás muito ligado ao teatro, diga-nos o que acha do estádio de desenvolvimento desta forma de cultura em Cabo Verde?

VM – O teatro cabo-verdiano vive de ciclos e por isso, sazonalmente, vai-se renovando. Não consigo precisar se está bem ou mal, mas, com certeza, neste momento, em São Vicente, a produção teatral diminuiu. (não falo somente do efeito pandemia). Nos últimos dois anos a quantidade de trabalhos apresentados por grupos locais diminuiu assim como o número de grupos/companhias em atividade. Em sentido contrário, verificou-se uma aposta forte de alguns fazedores de teatro na sua formação profissional no teatro em áreas diversas (encenação, interpretação, dramaturgia). Penso que após esse período poderemos vir a ter em São Vicente um ciclo diferente no teatro mindelense. 

MI – Estás a apresentar o teu livro por ocasião do Festival do Mindelact. Alguma razão em particular? 

O livro e o Mindelact

VM – Inicialmente, o livro estava para ser lançado a 24 de março, ou seja, dentro do certame Março, mês do teatro. Contudo, com a entrada em vigor do Estado de Emergência, devido a pandemia, não foi possível a sua apresentação. Foi ainda levantada a possibilidade de ser apresentada há alguns meses, mas depois chegou-se à conclusão que não seria o momento ideal. Visto ser um livro que versa sobre o teatro e pelo facto de a Associação Artística e Cultural Mindelact ser parceira deste evento, decidimos que a melhor altura para o fazer seria durante a edição do Festival Mindelact 2020. 

MI – Todos os sectores da cultura se sentem mais prejudicados com a situação atípica de pandemia que vivemos. O que diz a respeito? 

VM – É um paradoxo enorme, pois sabe-se da importância que as artes têm para a estabilidade emocional de qualquer indivíduo, contudo, em tempos de crise, o primeiro a ser “cortado” é o setor da cultura. Se formos ver, a ínfima parte que era destinada à área cultural quase que se evaporou de tão insignificante que era. Agora, praticamente, não existe. A minha esperança (espero que não seja utopia) é que as pessoas consigam se renovar e reinventar. É preciso insistir. É fundamental permanecer. 

MI – Como surgiu o gosto pelo teatro? 

VM – Não sei. Acho que desde criança (no ensino primário). Talvez tenha tido a minha primeira experiência no teatro (como espetador) nas vezes que as minhas professoras me levaram a assistir peças de teatro. No liceu esse gosto foi-se desenvolvendo com as esporádicas dramatizações que chegamos a fazer, em contexto de sala de aula. Seguidamente fui vendo espetáculos, gostando até que em 2004 resolvi frequentar um curso de Iniciação Teatral (pelo Instituto Camões). Ficou na pele. Seguidamente, tornei-me professor e vi que, para além de ser uma excelente ferramenta de trabalho, é algo do qual já não me consigo dissociar (embora nem sempre esteja com o mesmo ímpeto). Pertenci à Companhia de Teatro Solaris onde participei de forma ativa em todos os espetáculos que a companhia apresentou durante o período em que lá estive (como ator e/ou dramaturgo). Estando no Liceu Ludgero Lima desde 2007 venho trabalhando com projetos ligados ao teatro. De momento não pertenço a nenhum grupo de teatro, mas o gostar de fazer teatro continua em mim.  

MI – Valódia Monteiro como te defines? 

VM-Alguém que procura o saber e que almeja se reinventar, sempre. Por vezes, utópico. Outras, cético. Alguém que crê que cada um consegue se superar desde que lhe seja permitida essa possibilidade. 

MI – Para jovens que querem seguir as artes e culturas, o teatro numa palavra? 

VM – Creio que uma palavra é muito pouco. Lanço várias: Dedicação, Resiliência, Reinvenção, Trabalho, Disciplina, Amor. 

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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