Pub.
Pub.
AtualidadeEscolha do Editor

Jorge Humberto alerta: “É uma realidade a situação de fome em lares da Cova da Moura devido a crise do Covid-19”

Jorge Humberto, estudioso que cresceu desde tenra idade no Alto da Cova da Moura, Portugal, disse ser uma “realidade a existência de fome”, neste momento em que as necessidades em diversas áreas estão agudizadas no bairro do Concelho de Amadora (arredores de Lisboa). Este técnico superior de origem cabo-verdiana caracterizou ainda de “difícil” a situação para a comunidade local. Para ele, é necessária e urgente uma intervenção sistematizada, integrada e multidisciplinar para se mitigar essas questões sendo, no seu entender, a saúde o maior dos problemas associados à precariedade das outras condições de vida. A realidade social da Cova da Moura foi construída ao longo dos tempos e legitimada pelas quatro gerações. Os hábitos, costumes e tradições das ilhas são vividas intensamente. Em cada rua  ouve-se música de Cabo Verde e saboreia-se a gastronomia com pratos típicos do arquipélago.  

Por João A. do Rosário –

Publicidade

Mindel Insite – Sendo uma pessoa que vive o Concelho de Amadora, sobretudo o seu querido “Cova da Moura”, que apresenta grandes problemas sociais, como nos caracteriza este bairro habitado maioritariamente por cabo-verdianos? 

Jorge Humberto – A situação não é nada fácil, não está nada fácil! Um concelho satélite de uma capital europeia, que em termos demográficos é um dos mais densos territórios a nível nacional e da Europa – que se tornou numa crescente e dinâmica plataforma de correntes migratórias da África de expressão portuguesa, mas também de outros países do continente africano e da Ásia – sem as infraestruturas sociais e económicas desenvolvendo-se na mesma dimensão, no mesmo ritmo e se adequando ao futuro, apesar do esforço das entidades públicas, naturalmente que se chega rapidamente a um ponto de saturação. O bairro da Cova da Moura no presente, e no que diz respeito aos planos sociais e à fragilidade de um segmento da sociedade, é o espelho do insucesso de alguns aspetos de políticas de integração, proteção, sociabilização e desenvolvimento de pessoas que sobrevivem como podem. Uma larga percentagem com evidentes fragilidades na qualidade de vida. Para quem conhece profundamente também este bairro da Amadora e da Grande Lisboa, reconhece naturalmente as suas qualidades e potencialidades.

Publicidade

MI – Como vê o impacto desta pandemia do Covid-19 na vida das pessoas inseridas numa população de um bairro com essas características? 

JH – Neste contexto de reais fragilidades, a pandemia do Covid-19 exerceu naturalmente a sua pressão ao acicatar os elos mais humildes do universo social do bairro, sendo que o confinamento social, o recuo na empregabilidade mesmo que precária, a desestabilização do sistema de ensino transposto para o modelo telescola, mas para uma comunidade sem meios tecnológicos para dar resposta às necessidades e sem estrutura social-familiar esclarecida e preparada para o efeito. O encerramento do comércio local também ele empregador, o desaparecimento do comércio local informal… se noutras latitudes estes constrangimentos provocaram sofrimento, no bairro também ocorre por vezes de forma redobrada porque no bairro as condições de resposta tardam sempre ou nunca se encontra o caminho certo para que haja uma certa fluidez…

Publicidade

Mi – Neste contexto, a questão do desemprego, aliada a dificuldade das pessoas em cumprir com o confinamento e isolamento social, ganha outra relevância?

JH – O confinamento e o isolamento social são constrangimentos necessários para o bem de todos. Em tecidos sociais de tamanha fragilidade como o é o bairro da Cova da Moura naturalmente que vai deixar um rasto de destruição de empregos, de relações sociais assentes na desconfiança mútua e no receio de contágio pelo outro… O desemprego no bairro, ou mesmo na Amadora, é sempre a grande questão, dado que é um território que assenta a maioria da sua estrutura social e laboral no sector terciário, ou, como alguns referem, no sector dos serviços. Um sector em constante mutação na era da globalização e das redes sociais, em que os indivíduos acabam também eles por serem terciarizados no contexto da mobilidade, da substituição e/ou rotatividade constante no posto de trabalho, um sector das relações laborais precárias, sazonais, com contratos a prazo ou mesmo sem contratos formais.

“Para além da falta de dinheiro para se aprouver comida, pagar as contas normais como a água, a luz ou o gaz, infere muita dor na própria autoestima da pessoa. No momento, as necessidades em diversas áreas estão agudizadas, a fome é uma realidade.”

Posto isto e mais, já era espectável que o desemprego se acentuasse no bairro porque uma larga franja da comunidade, para além dos desempregados de longa duração, está invariavelmente com vínculos de empregabilidade precária, na sua maioria ligada à construção civil, às limpezas industriais e domésticas, ao comércio local e nos serviços e comércio nas grandes superfícies. O recuo na possibilidade de se trabalhar provoca uma situação horrível. Para além da falta de dinheiro para se aprouver comida, pagar as contas normais como a água, a luz ou o gaz, infere muita dor na própria autoestima da pessoa. No momento, as necessidades em diversas áreas estão agudizadas, a fome é uma realidade.

MI – Este fenômeno deve ser visto ainda numa perspetiva do receio de contração da infeção…

JH – No atual momento, sim, existe um grande receio quanto a podermos ficar infetados de alguma forma, pelo que parte da comunidade que tem condições para se resguardar nas suas habitações vai fazendo esse esforço de confinamento social. Mas, como em tudo, existem sempre alguns resistentes a estarem fechados em casa, sabe, a cultura da maioria desta comunidade é uma cultura de intensa prática social nas ruas, nos cafés, nos espaços públicos de lazer. Não digo uma cultura na leveza das palavras, mas refiro-me em termos de cultura genética, se assim for permitido dizer.

Para a maior parte desta comunidade, a vida faz-se no entrosamento social no espaço público ou privado de aceitação de público como os cafés, tascas e restaurantes. Não está fácil para alguns e, ao que sabemos, as autoridades competentes agem no sentido de sensibilizar as pessoas a reservarem-se nas suas residências.

População idosa, envelhecida e em solidão

MI – Existe a problemática dos idosos e doentes como comenta estas situações?

JH – Gostaria que não fosse uma problemática! Como já o afirmei em outros fóruns, muitas das instituições e pessoas com responsabilidades a todos os níveis costumam olhar para esta comunidade como se ela ainda fosse a comunidade que se instalou aqui na década de 70 e/ou 80, na flor da idade. Ou seja, tenho chamado a atenção de há uma década para cá para se tomar consciência de que estaríamos a entrar noutro ciclo de vida e que as pessoas que estiveram na génese da criação do bairro já estariam a entrar na idade sénior. Hoje no presente, sem qualquer veio de cientificidade, constatamos com o futuro de que falávamos há uma década, a realidade instalou-se e, sem qualquer plano estratégico, deparamo-nos com o facto de que existe uma população idosa, envelhecida, em solidão e sem condições de sustentabilidade em termos de saúde, financeiras e bens de primeira necessidade. Na maior parte dos casos uma velhice vivida com tristeza.

“Portugal tem uma grande experiência no ensino à distância, o modelo existia e já experimentado no passado com sucesso. Nos dias de hoje a urgente necessidade obriga à recuperação do modelo e programa da telescola.”

Era algo que também sabíamos que iria ocorrer, era tudo uma questão de tempo. Todos os dias batem-me à porta à procura de ajuda, em todos os domínios, e é uma tristeza não se conseguir ajudar como se deveria ajudar… Para alguns casos que consigo alcançar, procuro intermediar junto das devidas instituições e entidades públicas, mas não é fácil, não é fácil! E neste impasse ou lentidão na fluidez das ações e/ou intervenção sobre os casos mais graves, o definhamento da pessoa vai ocorrendo à frente dos teus olhos É necessário e urgente uma intervenção sistematizada, integrada e multidisciplinar para se mitigar alguns desses problemas, sendo a saúde o maior dos problemas associado à precariedade das outras condições de vida. 

MI – Como vê a questão da educação e do ensino à distância, ou dos formatos que o Governo está a propor? Nestes bairros, com estas características, será possível não haver problema?

JH – Em termos de programa operacional só tenho a dizer bem. Há momentos em que temos que agir rápido e este rápido resulta de um enquadramento político que assenta na prontidão, preparação e na comunicação entre parceiros. Portugal tem uma grande experiência no ensino à distância, o modelo existia e já experimentado no passado com sucesso. Nos dias de hoje a urgente necessidade obriga à recuperação do modelo e programa da telescola, adaptado às exigências psicossociais dos novos estudantes e professores e com os instrumentos tecnológicos contemporâneos.

MI – O que está a dizer é que concorda e aposta na continuação do projecto? Os alunos do bairro não terão problemas a este nível?

JH – Tendo em conta a urgência da situação, e não fazer nada, fez-se. Em minha singela opinião, o programa deve continuar mesmo para além, e a partir do momento em que voltemos à nova normalidade, todos os atores do universo do ensino e da educação devem obter uma nova qualificação no rescaldo desta experiência. 

“Temos um largo segmento da comunidade que pode ter um telemóvel e internet por via do cartão, mas que não tem computador pessoal, que não tem o instrumento necessário para estar no mesmo patamar que outros…”

Pois, as caraterísticas destes territórios de autoconstrução, outros chamados de bairros sociais, ou de bairros críticos, de ilhas, da periferia ou ainda marginais – marginais no sentido de estar fora do centro – entroncam na sua estrutura sociocultural e de organização do espaço de facto diversas problemáticas. Neste caso do ensino à distância é mais um daqueles desafios com que se deparam. O desafio foi urgente e de ocorrência rápida e a comunidade da Cova da Moura no seu segmento infantojuvenil, os estudantes, na quase totalidade, passará ao lado deste evento tecnológico e de ensino à distância sem adquirir as devidas competências que estão no programa de ensino para o ano. Infelizmente, a sociedade e alguns sectores têm responsabilidades nisso e tenho também chamado atenção para o efeito.

Tem-se criado na sociedade a ilusão, a ideia ou a imagem de que estar simplesmente ligado à internet e passar os dedos nas fotos, partilhar imagens e vídeos, é a de aquisição de conhecimentos instantâneos e sem qualquer esforço ou decisão por parte do utilizador e que no momento passou a ter uma relevante cultura geral. Essa é a realidade. Mais, criou-se uma imagem de analogia entre o estar ligado à internet através do telemóvel e ter competências tecnológicas, e a tecnologia para muitos é sinónimo de telemóvel e algumas plataformas de redes sociais. É preciso mais atenção a este aspeto.

MI – Na verdade, ultrapassar essas barreiras requer um tratamento com maior acuidade?

JH – Este desafio de que referi anteriormente vem deitar por terra esse paradigma. O que se constata é uma grande parte das pessoas, no caso das famílias e alunos de meios mais humildes e desfavorecidos, que não tem ligação à internet em casa e muito menos um computador! Isso implica um esforço financeiro para o orçamento familiar, que é na maioria dos casos insuportável. Esta é a realidade! E o bairro Alto da Cova da Moura infelizmente também entra nessa equação empírica, faz parte dessa realidade. Temos um largo segmento da comunidade que pode ter sim telemóvel e internet por via do cartão, mas que não tem o instrumento computador pessoal. Que não tem o instrumento necessário para estar no mesmo patamar que outros, e aqui as desigualdades uma vez mais se evidenciam e se acentuam.

E isto faz toda a diferença neste momento, toda a diferença entre estar integrado ou estar desintegrado socialmente, entre ter as condições mínimas para acompanhar o processo e adquirir as competências que lhes são devidas pelo Estado e pela sociedade, ou simplesmente uma vez mais hipotecar o futuro. Hipotecar o futuro pessoal, da família, da comunidade, da Amadora e do país. Por isso em situações especiais tem que haver na mesma medida intervenção especial e aqui é urgente que a tal intervenção multidisciplinar social de que falei atrás possa agir em conformidade, para naquilo que for possível minimizarem-se os riscos dos desvios sociais e ter em perspetiva o sucesso.

Biografia

Jorge Humberto Ramos Fernandes é cidadão português, nascido em Angola e filho de cabo-verdianos. É técnico superior de Comunicação, Licenciado em Ciências da Comunicação e da Cultura, Marketing e Relações Públicas, Mestre em Comunicação organizacional, Doutorando em Ciências da Comunicação. Dirigente político, Conselheiro associativo, autor do livro de comunicação “Cova da Moura nos títulos de imprensa”. Coordenador da amarCulturas Prestige Conferences (ciclo de conferências que desde 2010 recebeu personalidades como o Prof. Adriano Moreira, Eng. Ângelo Correia, Dra. Maria Barroso, Dra. Maria de Belém, Dr. Marques Mendes, Dra. Mónica Ferro, Dr. Salvador Malheiro, Celina Pereira, entre outras). Agraciado com o Prémio da Lusofonia 2017, a Distinção Rede dos Antigos Alunos da Universidade Lusófona e a Distinção África is More. Em 2016 e a seu convite o Presidente da República de Portugal Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, e também a ex-embaixadora da África do Sul em Portugal Dra. Keitumetse Matthews, visitaram o bairro.

Mostrar mais

Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

Artigos relacionados

5 Comentários

  1. Olá pessoal.
    É muito triste saber o que está a acontecer nesta vila.
    Desejo q, o empenho para fazer melhor no futuro próximo , que seja hoje a maior lição de vida.
    Quem tem direito faça o seu trabalho e ajudem a melhorar as condições, principalmente para poderem seguir a evolução e participar no crescimento social…
    Deus nos abençoem

  2. Olá Jorge Humberto, obrigada por mais esta análise de quem está por dentro da situação do bairro da Cova da Moura. As situações imprevistas como o Covid-19 vêm sempre agravar problemas subjacentes que se iam deixando arrastar sem que por vezes deles nos apercebêssemos. Como a situação da população idosa, que poucos associarão a um bairro mais conhecido pela juventude dos seus residentes. Gostaria de sugerir, se calhar já está a ser feito, a intervenção de mediadores, moradores do bairro, que pudessem ajudar e intermediar em diversas situações, como agora a questão do ensino à distância. Poderiam, por exemplo, ser criadas salas de estudo com alguns computadores onde os alunos sem computador se pudessem juntar e estudar, tirando dúvidas com algum/a orientador/a, uma vez ultrapassada a situação de confinamento, como é óbvio. Enfim, apenas uma sugestão, como disse, que vale o que vale. Bem-haja.

  3. Apreciei imenso as judiciosas considerações do Dr. Jorge Humberto sobre os graves problemas sociais e económicos com que se debatem os habitantes da Cova da Moura, problemas esses agravados pela pandemia que grassa no nosso País.
    Conforme se infere do teor da entrevista, é premente que os nossos governantes analisem os casos de grave insuficiência económica de muitos dos residentes no referido bairro, a fim de, em termos de justiça distributiva, ajudá-los a, pelo menos, prover à sua subsistência e, portanto, acabar com as denunciadas situações de fome.
    Bem haja, Dr. Jorge Humberto!

  4. Sem dúvidas bastante esclarecedor. A actual crise vem de facto pôr a nu a incapacidade de resposta da sociedade no sentido de se minimizarem tais desajustes. Num país que se pretende evoluído não se compreende essa letargia. É urgente que existam políticas sociais conducentes a desmaterialização dessas “ilhas de sobrevivência”, dotando-as de condições em que se eleve a dignidade humana sem desprimor dos factores culturais que lhes são adjacentes.

  5. Julgo conhecer algumas realidades que expressa, pelo convívio que venho tendo desde há vários anos no bairro.
    A Segurança Social tem na instituição Moinho da Juventude um pólo de auxílio fundamental na presente crise. Basta financiá-lo adequadamente como condição “sine qua non” de ocorrência de “ajudas alternativas” nos proventos do crime (tráfico, assaltos, furtos e roubos). Conheço tb iniciativas individuais de ajuda de produtos básicos como a associação Nasce Renasce.
    Como diz o autor, a diminuição drástica da oferta de emprego que aí vem na constr civil, nas limpezas, nos trabalhos ocasionais e informais a par da doença Covid, segregará uma situação explosiva.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo