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Conferência sobre Fake News: João Almeida revela ameaças com revólver; Rosário Luz cobra a ARC sobre conteúdo de programas evangélicos

A conferência organizada esta manhã pelo “Mindel Insite” sobre o fenómeno das Fake News resultou num campo de debate e de revelações inusitadas: o professor João Almeida assumiu que foi ameaçado por duas vezes com um revolver por ter desmascarado um esquema de emissão de cartas de condução falsas; a analista Rosário Luz chamou a capítulo a ARC por permitir que as igrejas evangélicas utilizem os canais audiovisuais para prometer curas milagrosas que atiram por terra 40 anos de trabalho dos governos no sector da saúde. Os dois conferencistas mostraram ter opiniões próprias e até contraditórias sobre as fakes, o que catapultou o debate para um patamar mais interessante.

A analista Rosário Rosário afirmou esta manhã em S. Vicente que as chamadas fake news estão intimamente ligadas à política e a candidaturas que se baseiam em plataformas puramente demagógicas para alcançarem o poder. Perante uma plateia composta por jornalistas e estudantes da área da comunicação social, a opinion maker enfatizou ainda que a demagogia não é um produto da tecnologia, mas sim um produto da sociedade, potenciado pela tecnologia. “Sim, devemos é entender como o fenómeno da demagogia e da manipulação interage com a tecnologia”, frisou Rosário Luz, para quem, a partir do momento que as pessoas passam a compreender como as coisas funcionam, fica mais fácil saberem como agir. Como diz, e recorrendo àquilo que lhe disse um médico, se o diagnóstico da doença for bem feito a enfermidade pode ser curada até com um copo de água.

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Para essa analista, as fake news são sem dúvida uma coisa má, mas, reforça, não são piores que a demagogia. E o pior, na sua perspectiva, é que o cidadão cabo-verdiano tem estado sujeito a um sistema de “não-regulação”, apesar das tantas entidades reguladoras criadas, inclusivo no campo da comunicação social. Um exemplo elucidativo disso, diz, é o que se passa com os programas difundidos nas próprias antenas dos órgãos públicos pelas igrejas evangélicas, em particular pela Igreja Universal do Reino de Deus. Programas onde os pastores prometem curas milagrosas e os fiéis corroboram com testemunhos que atiram por terra toda a política pública de saúde levada a cabo pelos governos desde a Independência.

“Na Rede Recorde vejo um homem a falar de um tratamento chamado Imaculação da Luz, que não deixa de ser uma espécie de bruxaria em que se apanha um paninho, é mergulhado numa água santificada pelo próprio pastor e leva-se para casa para ser usado. E surge uma senhora a contar que o seu filho estava com 41° de febre, mas que não foi preciso levar a criança para o hospital. Apanhou a toalhinha da Imaculação da Luz e passou a criança na testa e pronto”, conta a analista, para perguntar depois onde anda a Autoridade Reguladora para a Comunicação Social. É que, para ela, está-se perante uma televisão bem identificada e que anda a dizer às mães que, em vez de levarem os filhos ao hospital quando estão com febre ou desidratadas, para usarem o tratamento da “Imaculação da Luz” porque funciona.

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“O que acontece aqui é que essa senhora não foi educada para confiar no sistema formal da saúde, não cresceu na cidade e nem frequentou as escolas adequadas. E ela tem estado a ser desinformada sistematicamente porque a desinformação para uma pessoa desprovida de competências culturais é muito mais fácil do que a informação. Logo, o problema não é a grande disponibilidade de notícias nas redes sociais, o problema é a falta de discernimento da população.”

O ónus da filtragem da informação sempre esteve no destinatário, segundo Rosário Luz, mas, como o fenómeno das Fake News está a baralhar e a ser vista como uma ameaça que veio do espaço para acabar com a democracia, muita gente está a trespassar essa responsabilidade para o Estado. “O Estado regula, e onde é que eu fico?”, indaga Rosário Luz, que pergunta ainda como ela própria poderia ter um canal para dar voz às suas ideias se não fossem as redes sociais, já que, diz, tem sido intencionalmente excluída da Televisão Pública devido a sua postura crítica em relação ao poder, seja qual for o partido instalado no Palácio da Várzea. E o problema, prossegue, é que o Estado domina a essência dos meios audiovisuais de comunicação do país e governo nenhum quer saber de ser atacado dentro da sua própria casa.

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“Se uma pessoa como eu, que precisa de comunicar visualmente e através da escrita, não tivesse as redes sociais não estaria aqui convidada pelo Mindel Insite como opinion maker. Portanto, o problema aqui não são as fake news, elas não constituem um campo externo – são uma expressão daquilo que a sociedade é, da forma como se relaciona com a política e consigo própria”, reforça Rosário Luz, para quem o combate às fake news terá de ser feito à mistura com a guerra contra a demagogia, a má política e a ignorância.

“O Jornalismo não tem nada a ver com Fake News”

Para o professor universitário João Almeida, é verdade que a informação falsificada é uma prática que existiu ao longo do tempo e que a demagogia ganhou um aliado forte que é a tecnologia. Como diz, é contra a ideia de que tudo é novo, até porque a história é feita de ruptura e continuidade. No entanto, frisa, não se pode minimizar o impacto que a vertente tecnológica tem nas fake news. E, a seu ver, a educação é, sim, a arma ideal para se combater as notícias falsas espalhadas nas redes sociais. É preciso, diz, ajudar as pessoas menos preparadas, dar-lhes ferramentas, porque as fake news atingem a vida de qualquer um e ainda dá muito dinheiro aos prevaricadores.

O jornalismo, segundo João Almeida, nada tem a ver com as fake news, pela simples razão de o primeiro agir mediante regras éticas, deontológicas e ditames legais, quando as notícias falsas são propositadamente propaladas para atingirem os fins preconizados por pessoas de difícil identificação. Como relembra, o jornalista precisa percorrer etapas antes de assumir a profissão: ter uma licenciatura, fazer estágio curricular e profissional, obter a carteira profissional e trabalhar com base no estipulado na lei de imprensa. Coisa muito diferente acontece com os autores das fake.

“Jornalismo é jornalismo, Fake News são outra coisa. O jornalismo é, no entanto, um agente importante no combate a essa prática”, enfatiza o jornalista. Na sua opinião, se as pessoas querem travar esse mal basta fazerem algo básico: cruzar as fontes. “Vê-se uma notícia com um título bombástico e começa-se logo a espalhar a novidade. É preciso buscar a fonte original, testar a credibilidade dos órgãos, saber descodificar os textos com excessos de adjectivos…”, elucida Almeida.

Ameaçado com revólver

Este professor salienta que a sociedade cabo-verdiana tende a cobrar qualidade aos jornalistas e exigir o jornalismo de investigação. No entanto, muito boa gente não tem a mínima noção dos problemas que a classe enfrenta. Para ele, se não for analisada a violência impregnada no exercício do jornalismo em Cabo Verde – a nível económica, simbólica e de formas diversas nas redacções – não se está a abordar essa actividade com a devida atenção. “Alguém já esteve na mira de um revolver por exercer a sua profissão?”, lançou a pergunta de forma provocativa para responder logo depois: “Eu já estive e por duas vezes”, revelou esse ex-profissional do jornal A Semana, que, conta, desmascarou um esquema em Santo Antão e quase foi morto a tiro na cidade do Porto Novo. Isto para demonstrar que fazer jornalismo é perigoso, além de ser uma actividade repleta de dificuldades próprias, uma delas os entraves no acesso às fontes de informação.

A conferência Fake News, Jornalismo e Política foi uma iniciativa do jornal electrónico Mindel Insite e visou abordar um tema caro à actualidade, quando Cabo Verde está prestes a entrar num novo período de campanha eleitoral, muito propício à difusão das “notícias falsas”. Essa iniciativa enquadra-se ainda num plano de combate à iliteracia mediática, direccionado em particular para os jovens, em particular aos estudantes universitários. Durante a mesma foi discorrido sobre a forma de identificação das Fake, os potenciais motivos por trás dessa prática, o papel do jornalismo e da sociedade civil no combate a esse fenómeno, assim como as consequências das notícias falsas.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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Um Comentário

  1. Grande iniciativa do Mindel Insite, como homem da classe gostaria imenso de estar presente. Grande orador meu antigo professor Joäo Almeida.

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