Por: Alcides Lopes (PhD)
If you can’t suffer, you can’t grow up.
James Baldwin
Ninguém nunca previu um futuro, em cujo ecrã, durante os momentos de falta de criatividade, o inevitável cursor fosse o prelúdio do inferno existencial?
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Para aqueles que, na adolescência, assistiram a trilogia “Regresso ao Futuro” (Back to the Future, 1985; 1989; 1990), do diretor Robert Zemeckis, elencada por Michael J. Fox, Christopher Lloyd, Lea Thompson, e outros, o contexto atual se desdobra numa das piores versões de futuros alternativos em que o protagonista Marty fica transitando e, nas suas idas e vindas, influenciando diretamente os futuros possíveis para todas aquelas pessoas que, num determinado momento, compartilharam as categorias de espaço e tempo com o personagem.
Se tem alguma coisa da qual me lembro bem é aquela curiosidade genuína sobre as projeções de futuro que ocorrem durante o desenvolvimento da trama. A oscilação entre as projeções utópicas e distópicas causa muita angústia aos personagens Doc e Marty, como também aos espectadores. Tem sido exatamente o mesmo tipo de angústia sufocante, kierkegaardiana, que permeia a cotidianidade dos tempos atuais de pandemia. A imprevisibilidade inicial das causas e consequências da Covid-19 mexeu com a cabeça de muita gente. Especialistas têm alertado para uma pandemia invisível de doenças mentais e transtornos psicoafetivos.
Noutras dimensões, também, notam-se importantes recuos, por exemplo, na saúde da mulher, nos tratamentos contra o cancro, na vacinação infantil e na prevenção contra outras doenças, como as epidemias de gripe e influenza h3n2. Não obstante, nota-se uma queda drástica nas taxas de transplantes, nas transfusões de sangue, para além do arrefecimento ou paralisação duma grande variedade de serviços de prevenção sanitária e comunitária.
Ou seja, se observarmos bem, iremos perceber que, enquanto a pesquisa sobre vacinas e o atendimento médico estritamente relacionados com a pandemia conquistaram patamares recordes, outras áreas, não menos importantes e cuja urgência é inadiável, foram paralisadas ou retrocederam significativamente.
Durante esta mesma época, no ano passado, vivemos um período liminar cujo anverso foi a communitas de infecções exponenciais e o peso da mortandade que, no Brasil, ocorreu ao longo do ano inteiro de 2021 e hoje contabiliza mais de meio milhão de mortes (+ de 618.797).
No dia 31 de dezembro de 2020, a âncora do Jornal Nacional da Rede Globo, Renata Vasconcellos, recordava aos telespectadores que havia exatamente um ano que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tinha alertado sobre uma pneumonia misteriosa notificada pelas autoridades chinesas de Wuhan. A evolução assustadora da doença tinha sido acompanhada pelo mundo inteiro e, no Brasil, encerrava-se o ano de 2020 com o número, sociologicamente traumático, de quase 195.000 mortos causados pela Covid-19.
Naquela ocasião, o mundo estava assistindo impacientemente a vagarosa queda e decadência de Donald Trump. Ao longo da década anterior, toleramos, através duma certa neutralidade dolosa, a ascensão do conservadorismo. Discussões, carregadas de sentimentalismos, saudosismos, ressentimento, concernentes à religião, sexualidade, formação de família, migrações, moralidade etc. tornaram-se mais frequentes e intensas nas discussões políticas, nas salas de aula das universidades, nos bares, nas igrejas, nas reuniões e confraternizações dominicais e nas conversas familiares. As criaturas neoliberais na economia e conservadoras nos costumes começaram a exigir o seu quadrado na quadra, cada vez com mais frequência nos planos globais.
Através de extremismos estratégicos e performances baseadas em modelos de dominação carismática, incluindo discursos retrógrados que buscam recuperar a hierarquização cultural ancorada na brancura da branquitude, Donald Trump ganhou notoriedade, principalmente pelos seus ataques contra a diversidade. Trump foi hábil em construir a imagem de um “líder” antidemocrático, determinado a solucionar os problemas dos eleitores com que ele se identificava e, portanto, seduzindo-os. Na medida em que, como uma embarcação pirata sem destino, entrou em rota de colisão com várias nações e a sua intransigência gerou consequências impalatáveis, Trump enfrentou sua decadência, embora tenha sido na queda. Constam os boatos que ele anda pairando por aí, urubuzando!
Por mais terrível que possa parecer, no Brasil, o tal do estanque da sangria, que se achava necessário em 2016, revelou-se um golpe à legalidade democrática. A emergência estapafúrdia da figura de Bolsonaro veio confirmar os maus presságios de todos nós, insensatos. Nós todos que assistimos a desavergonhada e violenta sessão de impeachment da Presidenta Dilma, impotentes. De lá pra cá, reinou-se o desmonte, o desmantelamento e muitos desmandos.
O primeiro assalto às estruturas político-sociais e morais da comunidade nacional foi ideológico, com efeitos pervasivos e corrosivos. Aconteceu bem ali naquele dia quando o Estado e a sociedade civil toleraram uma ovação a um torturador em plena casa da democracia. E não só, presenciamos todos à volontarezzia que se seguiu, um absurdo, durante o qual, cada um se esforçava mais ao ridículo do que seus outros cúmplices. E, nunca podemos esquecer, as dancinhas universitárias coreografadas em grupo.
E aí, assassinaram Mariele e Anderson. Prenderam Lula. Armaram a arapuca na vantagem da desinformação garantida pelo desserviço da grande mídia à população brasileira. E de repente, a canção de Chico Buarque que [d]enuncia que “a pátria amada era subtraída em perigosas transações” revelou-se a mais crua realidade.
Veio o mandato do clã Bolsonaro. E como num conto de fadas e unicórnios, quando as forças de luz são subjugadas às penumbras sombrias, uma grande parte do Brasil murchou, secou, queimou e virou cinzas. Estima-se que os incêndios do Pantanal em 2020 mataram mais de 17 milhões de animais em decorrência da agressividade das labaredas em chamas.
O ano que precedeu a pandemia coincidiu com o início do governo atual. Sintomaticamente, o espírito que ricocheteou das animosidades estimuladas durante a mediocridade da campanha presidencial reforçou o crescimento exponencial da violência, fomentada pelo relaxamento das leis sobre a posse e o porte de armas, influenciando sobremaneira o aumento do genocídio negro nas periferias, dos feminicídios, dos casos de violência baseada no gênero, das violências urbana e das invasões rurais no geral.
Os desmantelamentos e os desmontes somente começaram a ficar explícitos no ano seguinte, 2020. Inauguramos a pandemia em março e os níveis de transmissão foram contidos numa taxa relativamente baixa até o mês de junho, quando as taxas começaram a crescer de forma exponencial. De junho a dezembro de 2020, o Brasil havia acumulado mais de sete milhões de casos confirmados de infecção pela Covid-19 e a taxa de mortalidade se encontrava acima dos mil óbitos diários.
Com imensa sensação de insegurança sanitária e medo, transitamos de 2020 para 2021. Após o relaxamento das festas de final de ano, nos primeiros sete dias de janeiro, o país registou a marca de 200 mil mortes e uma taxa diária de mortalidade próxima às 2000 vítimas. O ano anterior tinha sido marcado por extremo negacionismo e pelos comportamentos nocivos e alienantes do presidente da república e seu governo. Em meados de janeiro, a situação piorou com o aparecimento de uma variante em Manaus e as condições de escassez de oxigênio, para o atendimento dos pacientes, se revelaram desesperadoras. Thanatos batia à porta de forma desenfreada, enquanto era dada a largada à corrida das vacinas contra o tempo.
2021 foi um ano distópico para o mundo inteiro. No Brasil, os dias mais dramáticos do ano foram registados em Manaus ainda no mês de janeiro. A falta de oxigênio tornou-se crítica e a situação de urgência exigiu a flexibilização das regras das modalidades de requisição administrativa devido à incapacidade dos fornecedores suprirem a demanda local. Esta brecha foi suficiente para que as estruturas fossem penetradas pelas mais variadas práticas de corrupção, desvio e apropriação de verbas destinadas à saúde. Por sua vez, outros escândalos, como a fraude do tratamento precoce baseada na kit covid, foram viabilizados pela articulação do movimento criminoso responsável por uma grande parte das mortes ocorridas no país em decorrência da pandemia.
O ano de 2021 foi um ano não vivido e sim foi um ano morrido. Morremos todos os dias aos milhares por meses a fio.
Para além da grande mortandade causada diretamente pela pandemia da Covid, nas camadas mais vulneráveis e pobres da sociedade brasileira, aqueles que sobrevivem à doença têm convivido com sequelas das mais diversas e inesperadas, desde problemas de locomoção e enfraquecimento muscular, problemas neurológicos, doenças do fígado, disfunções renais, tromboses, problemas cardíacos, entre muitos outros. Existe um fenômeno de morte súbita, causado por ataques fulminantes do miocárdio em pacientes que recuperaram da Covid-19 com sequelas.
Não obstante, como ilustrou, de forma sinistra, o ex-ministro do meio ambiente Ricardo Salles, enquanto o país se preocupava com os estragos provenientes da paralisação econômica, com o aumento da segurança alimentar, com a violência urbana, e com outras questões agravadas pela pandemia, ele ia “passar a boiada”. Por conseguinte, assistiu-se à destruição messiânica das florestas, dos rios e dos biomas do solo brasileiro. O desmatamento atingiu níveis recordes. A mineração ilegal e a consequente contaminação dos recursos nas reservas têm causado o adoecimento dos povos originários nos estados como Acre, Amapá, Amazonas, enquanto os estragos são muito grandes e de longa recuperação, senão irreverssíveis.
Foi o ano do disco riscado, rodando sob a agulha quebrada do gira-discos, emitindo um grunhido contínuo de ruídos desagradáveis e repetitivos. Um ano aterrorizante, dos protestos contra uma polícia fascista que ataca a tiros, de borracha, mirando os olhos dos trabalhadores transeuntes. Resultado da absurda governação que se esforça para impedir a imunização em massa da sua população.
Um ano em que os direitos dos trabalhadores, o investimento na pesquisa científica e universitária foram à guilhotina, os cofres públicos foram escancarados para os desmandos corruptos do Desgoverno, com o aval do Congresso Nacional. Os comentários dos críticos e formadores de opinião, incluindo a direita, não poderiam ser piores. As tendências de pesquisa eleitorais apresentam o mais alto grau de rejeição para o candidato do governo. Poderíamos dizer que as pesquisas são incertas e que tudo pode mudar. Sem dúvida, não discordo nem um pouco. Contudo, é salutar prestar atenção à resposta corajosa e sábia que a população brasileira deu aos pedidos de negar a vacina por parte do presidente. As taxas de vacinação no Brasil são as mais ambiciosas do mundo. Aqui se vacina no mínimo um Cabo Verde num único dia. De acordo com especialistas, num ótimo dia de desempenho da campanha de vacinação no país é possível vacinar mais de dois milhões de pessoas. Infelizmente, atualmente atua com pouco mais de 20% da sua capacidade.
Mas enfim, podemos afirmar, sem sombras de dúvida, que a vacinação em massa dos brasileiros, a qual continua acontecendo, em detrimento do presidente e sua ala de negacionistas e chauvinistas, tem surtido ótimos efeitos. Podemos ver este reflexo na incipiente recuperação da economia, no investimento em novas medidas de cuidado e etiquetas sociais, regras de cumprimento e confraternização.
Estamos nas bordas de 2021 e parece que estamos num déjà-vu. No primeiro filme da série Matrix (1999), o qual também começa com um cursor piscando no ecrã, a passagem repetida de um gato negro no caminho de Neo, anuncia uma invasão no sistema e, deste modo, alerta-os sobre a presença dos agentes e, especialmente, do agente Smith.
Nesta semana fui assistir a estreia de Matrix Resurrections no cinema e lá estava o cursor. Desta vez não era uma barra vertical e sim um bloco negro e quadrado piscando incasanvelmente sobre uma tela branca. Para além de um Neo depressivo, na maior parte do filme, a cena mais deprimente e ameaçadora do filme, a meu ver, foi quando os bots, programas com aparência de pessoas, são transformados em suicidas com a finalidade de servirem de armas para que as máquinas pudessem impedir Neo e Trinity no seu último voo. A cena dos suicidas se jogando dos prédios é deprimente e impressiona qualquer espectador pelo nível implícito de violência contra a natureza da vida em tais atitudes desesperadoras e doentias que podem vir afetar qualquer um de nós se não forem devidamente tratados.