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Kada un di nos e un Cabral – Por um mundo sem fronteiras (fasc. 4)

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Por: Alcides Lopes, PhD

Quando estava no liceu, a minha mãe foi para Cabo Verde, empregou-se na fábrica de conserva de peixe, porque a costura já não dava para nada. E sabem quanto é que ganhava por hora? Cinco tostões por hora, e, se houvesse muito peixe, podia trabalhar oito horas por dia (…). Mas, se o peixe fosse pouco, trabalhava uma hora e ganhava cinco tostões.” – Amílcar Lopes Cabral.

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A luta continua, advancement, living ones! Akae Beka.

Cabral, às vezes, se referia à mãe como a estrela da minha infância rude, pois não há dúvida que as dificuldades, enfrentadas por esta grande mulher, Iva Pinhel, quem teve seu filho arrancado por uma rajada de metralhadora na noite de 20 de janeiro de 1973, foram tamanhas que incluíram o grande desafio de educar um adolescente conhecido pelos colegas como um rapaz estudioso e parcimonioso, e de vê-lo transformar-se num herói nacional e mártir da nação cabo-verdiana.

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Ela sobreviveu quatro anos à morte do filho e faleceu em 1977, aos 84 anos de idade. Como afirma Daniel dos Santos no seu livro Amílcar Cabral: um outro olhar, publicado pela Chiado Editora em 2014, o processo de formação da personalidade do líder maior da guerra de libertação não deve ser dissociado das suas origens sociais e familiares tanto em Bissau, como em Portugal, assim como da época em que viveu nas ilhas cabo-verdianas de Santiago e São Vicente.

 A fase sacrificial que coube à mãe durante a estadia em Mindelo, durante a primeira metade da década de 1940, na qual viu-se às voltas com o sustento do adolescente Cabral e dos seus irmãos, é preenchida de agruras mormente de ordem laboral. Dona Iva, como uma entre tantas outras cabo-verdianas, trabalhava a unhas para ganhar o pão, pois em Mindelo era empregada numa fábrica de peixe e ainda arranjava tempo para fazer costura e passar a ferro.

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As dificuldades que lhe batiam à porta eram inúmeras e diversas, a considerar pelas privações a que muitos cabo-verdianos estavam sujeitos na época. De sol a sol, como rezam os mandamentos [tortuosos] da maternidade cabo-verdiana, a mãe de Amílcar Cabral não se poupou nos esforços para garantir, na cidade do Mindelo, em meio a um mar de inúmeras dificuldades, o êxito escolar do filho. Com esmero, Iva Pinhel educou o jovem Cabral no enfrentamento dos caminhos, igualmente tortuosos em grande medida, que certamente deveriam ser trilhados no triunfo da vida. A postura da mãe inspirou the warriah Abel Djassi pelo resto da sua vida. 

Os episódios de seca e de fome, que quase varreram a população cabo-verdiana da face da terra, em épocas distintas, sob o olhar cúmplice e silencioso das autoridades portuguesas, provavelmente chegaram ao conhecimento de Cabral através do seu pai, Juvenal Cabral. Este detinha vasto conhecimento acadêmico adquirido nos seminários de eleição frequentados tanto em Coimbra como em São Nicolau. Embora não fosse contestatário do regime salazarista, antes pelo contrário, elogiava Salazar como um dos maiores estadistas da sua contemporaneidade, paradoxalmente, não se omitia de criticar publicamente aos governos de Lisboa, quando estes se mostravam incapazes de resolver os problemas de Cabo Verde.

Eu não tenho dúvidas, a entender pela firme e gradual ascensão de Amílcar Cabral ao panteão dos maiores teóricos das lutas de libertação anticolonialistas, que as novas gerações cabo-verdianas devem ter grande curiosidade em saber sobre aspectos concernentes às sensibilidades humanas e comuns que marcaram as experiências de vida do jovem estudante e posteriormente do engenheiro agrônomo, revolucionário político fenomenal e mundialmente reconhecido.

“Eu vi gente morrer de fome em Cabo Verde e vi gente morrer de açoites na Guiné (com bofetadas, pontapés, trabalho forçado (…) Essa é que é a razão da minha revolta”.

         As dimensões e o alcance catastrófico dos ciclos de fome que flagelaram as ilhas de Cabo Verde sistematicamente ao longo dos séculos, com registro pelos menos desde 1508, deixaram marcas profundas no jovem Cabral. Não podemos deixar de notar que quando ele deixou Cabo Verde em 1945, o país atravessava uma das maiores crises de inanição. Durante o período do séc. XX, até inícios da década de 1970, contabilizava-se vinte e um anos de fome total em Cabo Verde. Aproximadamente, um terço de todo o período vivido até então naquele século.

Os desmandos do império estavam em xeque, quando Cabral apresentou uma denúncia em Estocolmo (1971), sobre uma significativa parcela da população cabo-verdiana que havia sido ceifada pela fome e suas mazelas seculares decorrentes. Em 1948, as ilhas estavam em situação de calamidade e o governo salazarista fazia de tudo para varrer a situação catastrófica para debaixo do tapete. No mesmo ano, um funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros publicou a recusa, pelo ministro das Colónias, de um pedido de visto para as colónias feito por dois jornalistas holandeses. A base para a recusa, segundo o historiador português José Monteiro, foi a persistência de situações potencialmente perigosas para a reputação do império, especialmente em Cabo Verde.

         Por outras palavras, considerava-se que o crime de ocultamento do morticínio e da miséria que descarnava os flagelados do vento leste, em cujas encostas das montanhas as cabras ensinaram-nos a comer pedras, era mais viável para a boa preservação da face desfigurada do império colonial. Essa recusa e os termos sobre os quais ela foi fundamentada abriu espaço para uma análise global da situação colonial. O nível das modalidades de violência estrutural, administrativa e maquínica a que as populações estavam sujeitas são explícitas.

Os casos não são únicos nem isolados. Vários documentos traziam argumentos contraditórios produzidos pelos encarregados de serviços da ISNI, em 1951, por exemplo.

Apesar do introito, onde se enaltecia a essência humanista e benévola da intervenção portuguesa em territórios coloniais, prosseguia desfiando um rol de iniquidades e abusos. Referia-se à taxa de mortalidade no transporte de 650 ‘indígenas’ que era de 15,38 por mil quando comparados com os 4,25 por mil registados nas minas da África do Sul, um trabalho já de si extremamente perigoso; aos acidentes de trabalho que eram dados como ocorridos nas horas de descanso, como forma de desresponsabilização, o mesmo recurso estatístico usado também para os classificar como ‘agonias e congestões’; aos inválidos que eram obrigados a trabalhar em São Tomé (‘verdadeiros farrapos humanos’) por salários miseráveis, que não eram pagas às famílias as indenizações por morte dos trabalhadores em São Tomé; que milhares de ‘indígenas’ ficaram mais de uma década para além do termo oficial do seu contrato sem serem repatriados; que os salários em Moçambique e especialmente em Angola chegavam a construir cerca de um sétimo dos valores na África do Sul e menos de metade dos salários da Rodésia; que mulheres de trabalhadores eram sistematicamente violadas por grupos serviçais, enquanto outras grávidas e mulheres com filhos eram ‘monstruosamente espancadas com mais de 50 palmatoadas’ por terem abandonado o trabalho. A par de tudo isto, juntavam-se vários momentos em que essas políticas e práticas eram denunciadas internacionalmente (Parecer ISNI, 23 de agosto de 1951, AHIPAD, Compilação de pareceres da ISAU, In Portugal e a questão do trabalho forçado: um império sob escrutínio (1944-1962)).

Em Lisboa, o jovem estudante Amílcar filiou-se à corrente contestatária africana em 1949, a qual afirma-se em oposição cultural aos preceitos de assimilação do Estado Novo. Foi, entretanto, na política que Cabral fundamentou substancialmente a sua luta. Nunca vacilou com relação à aspiração maior, a de igualdade entre os metropolitanos e os ultramarinos.

Na década de [19]50, “tentámos” obter dos portugueses “our civil rights”. Nessa altura, quando existia ainda o sistema de indígenas e assimilados, queríamos ser portugueses com direitos iguais aos outros. Se Portugal, nessa atura, tivesse acolhido “as nossas aspirações”, talvez a situação tivesse sido diferente. Não ambicionávamos então a independência, mas simplesmente a igualdade de cidadania, mas simplesmente a igualdade de cidadania e “civil rights” com os portugueses (ATT, PIDE-DGS, S – SR, P – 1915/50, NT – 2676, pasta 7, folha 50. Depoimento de Amílcar Cabral ao Subcomité de África dos Assuntos Externos das Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos da América, em fevereiro de 1970. In Daniel dos Santos, Amílcar Cabral: um outro olhar, 2014).

Em vários momentos da sua breve e fenomenal trajetória de vida, Cabral demonstra que manteve o tempo todo com os olhos fixos no direito da igualdade perante a lei ou, mais concretamente, na isonomia defendida pelos estudantes da CEI em Lisboa.

Mesmo depois de o PAIGC protagonizar a luta armada, a posição de Cabral não mudou, com relação exatamente à sua perseverança na luta dos oprimidos e mais desfavorecidos. O que vem contrariar as ilações de Daniel dos Santos na pág. 116 do seu livro e revelar, portanto, que Amílcar Cabral foi fiel aos princípios democráticos de facto e não se deixou seduzir e amedrontar pelas garras afiadas das elites coloniais. O homo politicus foi traído, pagou com a própria vida. Mas, veja por si o que o próprio ponderava:

Se porventura em Portugal houvesse um regime (…) disposto a construir não só o futuro de Portugal, mas também, o nosso, mas em pé de absoluta igualdade, quer dizer que o Presidente da República pudesse ser tanto de Cabo Verde e Guiné (…) como de Portugal etc., que todas as funções (…) fossem igualmente possíveis para toda a gente, nós não veríamos nenhuma necessidade de (…) fazer a luta pela independência, porque já seríamos independentes num quadro humano muito mais largo e talvez muito mais eficaz do ponto de vista da história.

         Cabral, evidentemente, captou desde cedo ‘as mazelas,’ um ingrediente especial da crioulização, que certos tipos de pessoas procuram incutir noutras, ou noutros grupos de ilhéus habitantes das outras ilhas, ou ainda, nos seus conterrâneos do oeste africano. Ele foi injustiçado em várias etapas da sua vida estudantil devido às suas motivações políticas. Numa ocasião, Pereira Caldas percebeu que Cabral tinha grandes chances de ganhar um concurso, chamou o presidente do júri e disse para arranjarem as coisas como entenderem de modo que ele [Amílcar Cabral] ficasse classificado numa posição que não lhe permitisse ocupar nenhuma das vagas. Rasquilho Raposo fez notar que seu discente ficou muito sentido com a injustiça que lhe fora feita:

Tivemos uma longa conversa, na qual me manifestou o desencanto em que se encontrava pelo que lhe estava a suceder em Portugal. Disse-me então que ia ser obrigado a dar um novo rumo à sua vida e, passado algum tempo, saiu de Portugal, assumindo-se, publicamente, como secretário-geral do PAIGC.

Portanto, o que podemos dizer sinceramente é que Cabral fez um ótimo uso das estruturas e estratégias disponíveis para a construção de redes de lealdades e djunta môn, permeando todas as dimensões das nossas sociedades. Ele é o teórico máximo [o grande feiticeiro], mas, ao mesmo tempo, ele detém os canais da oralidade, percebe os caminhos, observa os fatores externos a partir de uma visão holística interna à cosmologia das tradições locais e produz a sua análise holística externa, de líder. Não é toa que continua sendo invocado e, ainda será por muito tempo, como esprít de luz, tanto em dimensões conservadoras, místicas e apartidárias [ou não], as quais fazem uso de doses vernaculares da hermenêutica filosófico-religiosa e ocidental-cosmopolita, nas associações urbanas de base, como nas cátedras de grandes universidades e centros mundiais do ensino das humanidades, da política e da economia pelo mundo afora.        

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Eu mesmo, – e alerto que não tenho pretensão de comparar-me às qualidades de Cabral, mas antes, mostrar como é tão comum este tipo de abusos e obstáculos desnecessários que persistem nas estruturas, que exigem certa dose de belicosidade para serem enfrentados, como também, às suas consequências – na minha trajetória acadêmica já enfrentei provações, as quais rebati com respaldo na lei administrativa e/ou civil.

Mas, como Cabral tinha consciência, trata-se de uma atitude negativa corrosiva e cancerígena. Eu, igualmente, levo à peito esta questão como sendo um inquiry filosófico em torno dos medos metafísicos manifestos na branquitude atual, e na sua insistente teimosia desinteligente, que leva ao fragmentarismo e, através do qual, paulatinamente a adoecem.

Um certo ditado carregado de sabedoria diz que quando a flor adoece, para curá-la, devemos cuidar do ambiente. Cabral falava que as crianças são as flores da nossa revolução e, ele mesmo como uma flor da esperança, foi interrompido no auge da sua luta. Contudo, Kabral ka muri, ao contrário, permanece firme como estrela guia no horizonte das lutas diárias, sobre a busca da medida vernacular do amor ao próximo, de centenas de milhares e de milhões de excluídos que perambulam nas bordas do mundo globalizado. Ele é a flor do girassol que emana a esperança para o ambiente e desponta, apesar de todas as contra campanhas, como um engenheiro agrônomo, panafricanista, intelectual, poeta, teórico, revolucionário, organizador político, nacionalista e diplomata. Celebrado mundialmente como um dos principais líderes das lutas anti coloniais da África.

Em julho de 1972, Amílcar Cabral apresentou um estudo na sede da Unesco em Paris durante um encontro intitulado “O Conceito de Raça, Identidade e Dignidade”. Ele seria assassinado seis meses mais tarde, 20 de janeiro de 1973. Dez meses depois, a Unesco Courier publicou o artigo: “O papel da Cultura na Luta de Libertação” (Cabral, 1973).

Neste artigo, Cabral fala “da volta às origens” como sendo a ignição da resposta às injustiças perpetradas pelos postos avançados coloniais da ordem mundial capitalista. E condena as classes médias urbanas e a elite colonial ao “drama social e cultural”, enquanto define “a luta do povo pela libertação como uma guerra cultural”. Segundo Cabral, aquilo que foi atacado pelo sistema de dominação estrangeira é a própria forma de vida do povo. Neste sentido, ele denuncia o colonialismo como um processo gigantesco de hegemonia cultural e reivindica a cultura como fundamento mesmo do movimento da libertação. O saudoso antropólogo Marshall Sahlins foi um dos primeiros a  reconhecer Cabral como um dos primeiros a falar do papel da cultura na luta colonial num texto publicado em 1997.

Desde 2019, a publicação da obra Militant Education,  Liberation Struggle, Consciousness: The PAIGC education in Guinea Bissau 1963-1978, da autora Sónia Vaz Borges, lançou novos desafios sobre o projeto educacional inaugurado pelo Partido em Guiné Bissau e em Cabo Verde, durante o período da luta armada contra  o colonialismo tardio português nas matas da Guiné. 

Esta é uma obra que extrapola as expectativas e  convida-nos a uma releitura saudável, pedagógica e lúdica, que enaltece o ethos coletivo que caracteriza o verdadeiro espírito mobilizador que permeia a luta de libertação nacional, cuja vitória hoje celebra a nossa independência.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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