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O Presidente, a Primeira-Dama e a controvérsia que virou escândalo

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Por: David Leite

Ora, que um Chefe de Estado tenha uma ‘pikéna’, bom proveito lhe faça e que seja a ‘sua’ primeira dama… mas lá em casa!

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Ninguém imaginaria, em Cabo Verde, uma controvérsia em torno de uma primeira dama, seguida do escândalo que sabemos. E não é que a controvérsia nos bateu à porta! Foi há três anos, quando a eleição do novo PR colocou nas bocas do mundo uma pergunta: – “quem é a primeira dama? Qual a sua verdadeira relação com o mais alto magistrado da Nação?”

Quando a polémica perdia fôlego, eis que de repente se agiganta na sequência do clamoroso escândalo que agora nos surpreendeu como um devastador tsunami: o Presidente vinha atribuindo um ordenado de luxo à sua companheira, sabendo que essa despesa (entre outras) não tinha cabimentação legal e que vinha onerar substancialmente os já avultados gastos da presidência com a “primeira dama”. Com efeito, não existe no nosso ordenamento jurídico qualquer salário para a primeira dama. Mesma coisa em França onde Brigitte Macron não aufere nenhum salário, acomodando-se alegremente dos privilégios e mordomias inerentes à sua condição de “première dame” ao lado do seu marido Emanuel.

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De igual modo, não existe em Cabo Verde um estatuto aplicado à primeira dama, até porque o próprio JMN se opunha a esse estatuto ao tempo em que era Primeiro ministro! A pergunta que não quer calar é: porquê um salário à revelia da lei, e porquê este ‘dois pesos duas medidas’ do PR?

Do relatório da IGF se deduz, inequivocamente, crime de peculato, mas importa aguardar o pronunciamento do Tribunal de Contas. Hoje, 23 de agosto, o PR fez mea culpa perante a Nação dizendo ter restituido ao Tesouro o montante correspondente aos salários auferidos pela “primeira dama”, como lhe exigia a IGF, e que aguarda o veredicto do TC sobre as demais despesas indevidas. Os juizes do TC certamente vão escrutinar outras despesas em viagens, representações e diversos actos protocolares da “primeira dama”. Devem também investigar responsabilidades outras, que certamente extravasam da presidência, e agir em consequência.

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Faço votos que seja imprimida igual celeridade à investigação e clarificação de outros escândalos, envolvendo porventura esferas do governo, como reclamam os amigos políticos do PR, na oposição. O país precisa de uma “limpeza”, não podemos continuar neste passe de armas entre Governo e Oposição, “não fomos nós que roubámos, foram vocês”! Revelador…

Sobre o escândalo em presença, abstenho-me, por ora, de comentários – acho que seria chover no molhado e não acrescentaria nada ao que já foi dito e escrito. Porém, tudo ainda não foi dito e prefiro guardar silêncio até que o Tribunal de Contas diga de sua justiça.

Dito isto, o que aqui interessa é a “primeira dama” e a controvérsia que lhe vai junto. Que fique bem claro: fosse o Sr JMN um cidadão comum, como nós-outros, ninguém estaria ligando para a sua vida conjugal ou sentimental. Acontece, porém, que o Sr JMN é o Presidente da República, o mais alto magistrado da Nação. Ora, que um Chefe de Estado tenha uma “pikéna”, bom proveito lhe faça e que seja a “sua” primeira dama… mas lá em casa! Abro um parêntesis para evocar um antigo Presidente francês, François Hollande: divorciado, tinha uma namorada, Valérie Trierweiller, notável jornalista, mas François, verdadeiro homem de Estado, teve o bom-senso de não expor nem “protocolizar” a sua “petite amie” como première dame de France!

Infelizmente, governantes nossos denotam, por vezes, alguma falta de tacto nos círculos diplomáticos e protocolares. Como um certo MNE que resolveu dar um grande show recebendo com honras militares um simples cônsul honorário, um amigo pessoal que nomeara nos Estados-Unidos (por esta e por outras foi levado a demitir-se)!

Recentemente dei comigo a pensar na peregrina ideia do actual PR de levar consigo a namorada para ir visitar o Santo Papa no Vaticano (talvez para impressionar a “sua” senhora pois nenhum estadista é obrigado a viajar com a primeira dama)! É sabido que antes de uma visita (de Estado ou de outra índole), a entidade anfitriã solicita o currículo dos seus hóspedes, e tenho por mim que não foi boa ideia apresentar-se perante o Sumo-Pontífice com uma namorada por “prima donna” (quem quiser que vá ver a cara contrariada do Santo Padre nas fotos com o casal Neves/Carvalho!) Por onde andou o protocolo do palácio do Platô? E o protocolo do Estado?

Fechado este parêntesis, vou pegar na narrativa dos amigos do PR (na oposição) que alegam uma vindicta política maquiavelicamente orquestrada contra o seu líder para manchar o seu nome e o levar a demitir-se. Realçam que nem a Constituição nem nenhuma outra lei obriga o Presidente a ser casado com a primeira dama. De facto não obriga, mas tudo na vida não é questão de legalidade! Legalidade é (deve ser) a outra face da moralidade, da ética e dos bons costumes para completar o que não está plasmado na lei. Face à situação criada pelo actual PR, absolutamente insólita nas democracias ocidentais, pergunto: deve Cabo Verde marcar a diferença pela displicência e a futilidade numa instituição tão séria quanto a Presidência da República? Acho que Cabo Verde deve, sim, marcar a diferença para brilhar, não para ser objeto de chacota no mundo!

Os amigos políticos do PR acusam os seus adversários de se socorrer de “falsos puritanismos”, salientando que a concubinagem (vida conjugal sem matrimónio) está enraizada na família e na sociedade cabo-verdianas. O nosso PR seria assim um tipo moderno e cool que simplesmente foi na onda da tradição (sem comentários)!

Ora, esse argumento é uma manobra de diversão tão fútil e barata quanto o acto que pretende legitimar. Traduz, por outro lado, uma certa ingratidão para com o povo cabo-verdiano que, verdade seja dita, não podia ter sido mais magnânimo, mais compreensivo, ao aclamar uma “primeira dama” que não conhecia de lado nenhum, sem exigir que fosse a esposa do Presidente eleito.

“Falsos puritanismos”, dixit! O nosso Presidente é uma pessoa bafejada pela sorte, antes deveria agradecer aos cabo-verdianos que não só o elegeram como lhe sufragaram uma primeira dama nas escabrosas circunstâncias que conhecemos. “Quando eu for presidente, darei a conhecer a primeira dama” – resposta do candidato JMN aos jornalistas na recta final da campanha em 2021. Estranha maneira de anunciar uma primeira dama ao país, dir-se-ia os profetas anunciando a vinda do Messias!

Quando lhes convém, os políticos são lestos em honrar as suas promessas de campanha: apenas eleito, abracadabra!, JMN mete a mão na cartola e sai uma senhora, bonita e formosa, culta, bem falante, uma “first lady” de fazer inveja aos seus pares. E disse o Presidente: – “Eis vos apresento a primeira dama!”, e o Governo acomodou-se – “honni soit qui mal y pense“! O povo, condescendente, inclinou-se para deixar passar a “primeira dama” – “God save the queen!”.

Até aqui, tudo numa boa, dá para vermos a sorte que o Presidente tinha… Quanto muito, o povo das ilhas mostrou-se curioso, interrogando-se as más-línguas de onde saía a nova “primeira dama” (primeira em título, porque em número, cada um sabe de si).

Alguns juristas e analistas, noblesse oblige, pediram ao Presidente que clarificasse o seu estado civil. Esposa não tinha, aliás eram os dois divorciados. Consorte ou companheira, em união de facto? Note-se que é o próprio PR a alimentar a dúvida pela aparente desafeição com que se refere à “primeira dama”.

O PR chocou os ouvidos mais sensíveis quando falou ao país depois de rebentar o escândalo, dizendo nunca ter feito favores “nem à minha mãe, nem às minhas irmães… nem à Débora”. Assim se referia, secamente, à sua consorte (o adjetivo é por nossa conta pois a Débora”, ao que parece, só tem título nas folhas de vencimento do palácio do Platô!)

Por outras palavras, o povo das ilhas não levou a mal que o Presidente não fosse casado com a “a Débora” – apenas perguntou quem era “a Débora” – nada mais normal. E, mesmo perplexo perante uma situação tão inusitada, o povo conformou-se com o “casal presidencial”, jubilando os corações enternecidos porque o Presidente, afinal, não estava sozinho. O povo gosta dessas pieguices.

Caem assim por terra os tais “falsos puritanismos” que os amigos políticos do PR, mal-agradecidos, atribuem aos adversários que alegadamente “perseguem” o seu líder pelo facto de não ser casado com a primeira dama. Dito isto, pergunto se não seria mais sensato demarcarem-se desse furdúncio, abstendo-se de pleitear uma causa perdida. Contra factos não há argumentos, sobretudo argumentos que puxam para baixo como areia movediça, não vá ninguém ficar atolado no lodo de um escândalo que já tem os seus donos. E que não sejam mal-agradecidos alegando “falsos puritanismos” que, em boa verdade, nunca foram brandidos. O PR meteu o pé na poça sozinho, ninguém o empurrou!

Ignoro o que pretendia o ainda candidato JMN ao criar suspense sobre a futura “first lady”, mas o tiro saiu-lhe pela culatra: fosse “a Débora” conhecida como sua companheira, teria sido acolhida normalmente, fossem eles casados, amancebados ou em união de facto. As pessoas não teriam estranhado ver o presidente recém-eleito assomar de repente com uma primeira dama “à la va vite”.

Repare-se que até serem revelados na imprensa digital os pagamentos ilícitos, os caboverdeanos estavam se borrifando se JMN era ou não casado com “a Débora” e o casal presidencial vivia na santa paz no palácio do Platô. Com tanta magnanimidade e laisser-faire, o presidente, convenhamos, era um homem de sorte e não sabia! Mas não mediu a sorte que tinha e, em vez disso, resolveu abusar dela, alçando-se acima da controvérsia e zombando das instituições. Os salários pagos à “sua” primeira dama soam a outra promessa de campanha, certamente entre quatro paredes: – “Quando eu for presidente, terás, como primeira dama, todos as mordomias e privilégios que o título confere e receberás um rico salário, superior ao meu”. Um salário ilegal! Fica por entender como é que uma senhora de aparência tão sensata, pessoa de princípios e de fé (educada na igreja nazarena) se prestou a uma combina dessas.

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O “Zemagate” rebentou quando a verdade veio à tona, e foi esse escândalo que mais uma vez trouxe à ribalta do debate político (e jurídico) a controvérsia sobre a situação matrimonialdo do PR e o estatuto da primeira dama. Mas o que realmente indigna os caboverdeanos é ver o mais alto magistrado da Nação atropelar a lei em proveito próprio para remunerar a peso de ouro a sua pikéna a expensas do erário público!

Ora, o Presidente da República não está acima da lei nem dos demais cidadãos. Guardião do templo sagrado da Constituição e da legalidade, é essa responsabilidade que o eleva “acima” dos seus concidadãos, mas nunca acima da lei. O título é transitório, perene é a pessoa que o ostenta: o Presidente é, antes de mais, um cidadão da República, um justiciável, nem mais nem menos que nós-outros que o elegemos. A diferença é que ele aspirou à mais alta magistratura e sabia que devia ser probo, mostrar o exemplo. Num Estado de direito democrático, se o mais alto magistrado da Nação passa por cima da lei, o escândalo é monumental! E, neste particular, o escândalo não é apenas de foro contabilístico e administrativo, também há consequências políticas e penais a tirar deste “Zemagate”.

Não era disso que estávamos a precisar neste nosso Cabo Verde, a nossa imagem no mundo é pão para a boca.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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