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As voltas que o estômago tem de dar

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Por: José Manuel Araújo

Esta é a única dúvida que se coloca a quem assume o arrojo de sintonizar o canal da TCV. Um ambiente profissional, não de todos obviamente, assente no incentivo à cultura de normalização e até promoção de qualquer dejeto moral, desde que sirva de suporte aos omnipotentes e omnipresentes instintos centralistas.

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Tudo aconteceu há uns quase vinte anos atrás (está nos arquivos da TCV), quando numa terça-feira de meados do mês de julho, precisamente quatro semanas (1 mês) antes do Festival Baía das Gatas, essa estação teve a surpreendente iniciativa de achar por conveniente a emissão em diferido e em horário nobre, nobilíssimo, entre as 19 e as 20 horas, momento do telejornal, dum concerto do Gambôa do mês de maio desse mesmo ano.

A surpreza ao ver o empenho da estação estatal em tomar a iniciativa de divulgar em diferido o festival da Gambôa, precisamente no momento em que o palco era legitimamente reservado ao protagonista Baía das Gatas, despertou-me o interesse de me inteirar melhor sobre aquela iniciativa carregada de aparente falta de ética e respeito. Alertado por esse estranho evento e atento aos dias subsequentes, compreendi que a TCV programara não uma, mas sim às quatro terças-feiras (um mês inteiro) que precediam a semana do Baía das Gatas para emitir o festival da Gambôa em diferido.

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Chocado com a descoberta e decidido a averiguar se não teria passado dum infeliz momento da estação televisiva, no ano seguinte, agora pondo-me a jeito propositadamente, a partir de julho, revivi a arrepiante experiência a confirmar-me não se tratar dum evento casual e involuntário, mas sim de uma opção de programação planeada e consciente.  Constatada a situação, assumi então o desafio de confirmar durante mais alguns anos se se configuraria ou não uma aposta obsessiva e premeditada da TCV, movida por algum propósito escuso.

Os dados recolhidos foram surpreendentes e durante nove anos seguidos pude constatar a constância dos seguintes fatos:

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1 – Já no terceiro ano de observação, a TCV decidiu então meter toda a carne no assador e atacar o Festival Baía das Gatas com artilharia máxima. Para tal, além de continuar a desfilar em diferido os concertos do festival da Gambôa do mês de maio do mesmo ano, pelas quatro terças-feiras que precediam o Baía das Gatas decidiu ainda ir mais longe no requinte e retomar e prolongar a apresentação do Gambôa pelas duas terças-feiras seguintes ao Baía. Ou seja, apostar de forma quase terrorista em impedir o Baía de respirar, com a indevida omnipresença do Gambôa, no intuito de tentar ofuscar qualquer sinal de brilho e protagonismo de S. Vicente.

Resumindo, a programação daquele ano ficou assim determinada pela TCV: 1º) Emissão do Festival da Gambôa em “diferido” durante as quatro semanas imediatamente antes do festival Baía, incluindo, acredite se for capaz, a própria terça-feira da semana do Baía. Isto é, na semana do Festival Baía das Gatas, a TCV conseguiu orquestrar e encontrar razões, engenho e descaramento suficientes para brindar o país com um composto “Gambôa/Baía”. E mais Gambôa do que Baía;

2º) Emissão do Festival Baía das Gatas em “direto”, de sexta-feira a domingo dessa mesma semana, isto é, três dias depois de terminada a sessão Gambôa em diferido; 3º) Em modo de inovação nesse terceiro ano, a TCV resolveu ainda acrescentar a rúbrica, – “Festival da Gambôa em diferido nas duas terças-feiras seguintes ao fim do Baía” – , isto é, a TCV teve a habilidade de conseguir fazer com que o Festival Baía das Gatas tivesse a abertura e o encerramento feitos pelo Gambôa.

3 – Durante nove anos seguidos de observação, estendida aos outros festivais, a TCV nunca mudou esse modo de atuar. Nunca tentou ensombrar nenhum outro festival no momento destinado ao seu estrelato. Só o Baía das Gatas. E nunca usou outro festival para tentar fazê-lo roubar o protagonismo ao Baía. Só o Gambôa.

Enquanto observava tudo isso com o estômago às voltas, não desisti e, ao fim de sete anos, com a confirmação clara duma insistente atitude premeditada, redigi um artigo para o jornal “A Semana” (está nos arquivos), no qual solicitava o fim dessa coisa ruim.

Dois anos após o referido artigo, e persistindo a TCV com a mesma postura, decidi então expôr pessoalmente a situação a uma diretora da estação, que se me mostrou desencantada caso fosse verdade tudo aquilo cuja a veracidade ela pessoalmente iria procurar confirmar. Continuei atento e pude verificar que, enfim, tal situação não mais aconteceu.

Lembro-me de nessa hora ter experimentado uma sensação de alívio, não pelo fato de, na qualidade de mindelense, me sentir libertado do ataque cerrado, obsecado, cínico e gratuito da TCV contra um festival da minha ilha, mas, mais propriamente, por ter por momentos acreditado, ter podido ajudar a TCV a se sair daquele limbo espiritual onde se afundava.

E, se recorro hoje a esse passado, é porque, de forma desconsertante, verifico afinal que aquela aparente mudança de atitude, tal como vem acontecendo em muitas outras esferas, não passou de mais uma jogada da raposa incorrigível, oportunista e sem classe, pois, afinal, a mentalidade e a vontade de insistir na mesma forma de agir, se mantêm intactas. É que, no dia 08 deste mês de agosto de 2024, como é sabido terá lugar o Mindel Summer Jazz e, qual copy paste do acontecido há mais de 20 anos atrás, já nas duas semanas que precedem a semana deste festival mindelense, a TCV decidiu programar para a hora nobre de sempre, duas emissões (uma por semana) do Kriol Jazz Festival (da Praia) em diferido.

Não cheira mal??? Diga lá!!!     

E se por acaso, nalgum momento você tivesse a sorte de poder conseguir descobrir e compreender que situações como estas são o pão nosso de cada dia nas várias esferas da vida do nosso país, em quase todas as épocas da nossa história pós-independência? Mesmo assim continuaria oportunista e confortavelmente a lavar as suas mãos? A defender cegamente o seu partido? À espera duma promoção para a capital para se sentir gente de verdade? Ou pararia para refletir?                                                                        

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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