O arranque do julgamento dos 28 arguidos acusados de narcotráfico, associação criminosa e lavagem de capitais, resultante da “Operação Epicentro”, ficou marcado por um braço de ferro entre os advogados e a Polícia Nacional devido a revista antes de entrarem no Palácio da Justiça e na sala de audiência 1.º Juízo Crime do Tribunal da Comarca de São Vicente e, posteriormente, por questões prévias colocadas pelas defesas, que evocavam nulidades insanáveis no processo. Mas tanto o Ministério Público como o Colectivo de Juízes, consideraram improcedentes as reclamações e continuaram o julgamento.
O início dos julgamento ficou marcado por um forte aparato policial, com desvio do trânsito e várias viaturas policiais e agentes posicionados nos arredores e dentro do edifício do tribunal. Na sala de audiência, a segurança era garantida por cerca de uma dezena de guardas prisionais e agentes da PN. Todas as pessoas que entravam no tribunal foram submetidas a revistas – mesmo os que iam para outros serviços, designadamente Registo e Notariado – , que deveriam se estender aos advogados e magistrados. Mas estes recusaram categoricamente ser revistados, o que acabou por gerar algum nervosismo e impasse, que só foi sanado após a isenção da revista, pelo menos aos causídicos e juízes.
Após o início dos trabalhos, foram gastos mais de 40 minutos apenas na organização, designadamente na definição de regras como pontualidade, urbanidade, cordialidade e bom senso, entre outros. Decidido ficou também a audição de testemunhas arroladas mas que, em sede de Audiência Contraditória Preliminar (ACP), não se encontravam no país e que agora estão disponíveis para serem ouvidas, sendo que, em caso de viagem, ficou acertado que pode ser via zoom ou WhatsApp.
A defesa dos dois principais arguidos – Odair dos Santos (Cedjô) e Malick Lopes -, apresentou pelo menos duas questões prévias que considerou serem pertinentes para o processo: a não notificação dos arguidos para estarem presentes na ACP e a omissão de notificação das defesas sobre o despacho de pronúncia. Este foi secundado por vários outros advogados, que reforçaram estas questões e levantaram outras, designadamente relativas ao crime de armas. Em resposta, o Ministério Público, representando por três magistrados, pediu uma pausa para analisar todas as questões e, no regresso, começou por lembrar que várias das reclamações já tinham sido suscitadas e decididas durante a ACP.
Caso Julgado
Defendeu o magistrado que, por isso, são “Caso Julgado” em respeito ao princípio de confiança e segurança jurídica. Ou seja, apesar das nulidades invocadas, algumas alegadamente insanáveis, estas foram alvos de decisão na Primeira Instância e não foram impugnadas tempestivamente, pelo que não pode outro tribunal modificá-las. “Houve uma decisão com a qual a defesa não concorda, mas não deixa de ser uma decisão. Contra estas decisões, algumas proferidas durante a audiência e outras materializadas no Despacho de Pronúncia, não houve reação da defesa,” argumentou o MP, para quem este expediente mais não é que uma renovação do prazo de recurso, que terá lhes escapado a defesa.
O MP desmontou ainda a reclamação da defesa de que a Polícia Judiciária terá realizado diligências sem que para tal seja competente, em clara usurpação das competências da Procuradoria. Entende o MP que esta é uma questão que não procede porquanto esta polícia criminal foi autorizada a realizar toda a instrução. Nega igualmente os direitos, liberdades e garantias dos arguidos nunca foram postos em causa pela atuação da PJ, pelo que o pedido de nulidade é indeferido. O mesmo desfecho é reconhecido quanto ao prazo de 120 dias para realizar a instrução, que do ponto de vista do magistrado é meramente disciplinador, e também sobre a ausência dos arguidos que não requereram ACP e não foram notificados do despacho de pronúncia. Ou seja, os dois pedidos foram indeferidos.
A juíza-presidente do Primeiro Juízo Crime do Tribunal de S. Vicente alinhou as suas argumentações com o MP, concordando que as questões prévias foram levantadas em sede de ACP e, a excepção de uma, as demais não reagiram à decisão proferida quer na audiência, quer no despacho de pronúncia. Por isso, afirma, o tribunal não pode debruçar novamente sobre essas mesmas questões, mormente porque se está a aguardar uma decisão das reclamações feitas. No entanto, disse que, caso não haja uma decisão até o final, não se coíbe de se posicionar sobre as mesmas. No que diz respeito à alegada falta de conhecimento invocada pela defesa, entende a juíza que todos os arguidos foram pronunciados pelos mesmos factos e pelo mesmo enquadramento jurídico constante das acusações.Por isso, direito de defesa dos arguidos não foi beliscada, pelo que fica indeferido a nulidade esgrimida.
Defesa defende suspensão da audiência
Confrontado, o advogado Gilson Cardoso afirmou que se está perante um processo complexo, no qual estão a ser julgados 28 arguidos, sendo que cerca de 10 estão privados de liberdade, e onde se vai decidir sobre crimes complexos como tráfico de droga, associação criminosa e lavagem de capital.“Nesta fase inicial do processo, levantamos duas questões prévias pertinentes, que foram indeferidas pelo Tribunal e recorremos para o Tribunal da Relação de Barlavento (TRB). Estas questões prévias visavam a remessa dos autos para o Segundo Juízo Crime porque os arguidos não foram notificados para estarem presentes na audiência de ACP e muito menos para o despacho de pronuncia”, afirmou, reafirmando na sua argumentação de que estas omissões constituem nulidades insanáveis, pelo que estranha a posição da juíza-presidente, que está a ignorar o cumprimento no disposto na lei.
Promete, por isso, aguardar até ao final da audiência a decisão do TRB sobre esta questão, que entende ser crucial. Isto porque a juíza-presidente decidiu o recurso com efeito devolutivo, quando o esperado era a suspensão da audiência. “Estamos a reclamar do efeito porque entendemos que esta audiência não deve continuar sem a decisão do TRB no que concerne a questão prévia da omissão de notificação, sendo que a lei é muito clara nesta matéria. O Tribunal Constitucional por várias vezes já decidiu sobre a questão da omissão da notificação das decisões penais, neste caso sobre o despacho de pronúncia.”
O causídico acredita que a decisão do TRB deve sair no prazo de 20 dias ou, no máximo, um mês. E reforça que esta é uma questão que já foi por várias vezes decidida pelo TC, por isso acredita que não há nenhuma complexidade. Até lá, pretende levantar várias outras questões que, defende, vão obstar a continuação da audiência. “Entendemos que estamos perante nulidades insanáveis gritantes, pelo que a juíza não pode continuar com esta audiência. As nulidades já tinham sido suscitadas durante a ACP e agora voltamos a trazer estas questões e outras que consideramos inconstitucionais e ilegais que, do nosso ponto de vista, visam nulidades insanáveis que o tribunal terá de decidir. Por isso entendemos que não há condições para continuar com esta audiência”, pontua.
Em suma, afirma, estas questões estão todas devidamente ultrapassadas, basta ver o Acordão 27/2017 proferida pelo TC na qual diz que, não obstante as questões tenham sido suscitadas na fase de instrução, neste caso de ACP, podem ser levantadas nas outras fases subsequentes em todas as instâncias superiores. O advogado, recorda-se, representa os arguidos Cedjô e Malik, cujas medidas de coação foram alteradas pelo acórdão 38/2025, no caso, postos em liberdade. Gilson lembra que há outros arguidos que estão em prisão preventiva e que devem ter a sua liberdade restituída urgente.
A “Operação Epicentro”, recorda-se, foi o nome dado a uma ação policial musculada realizada em junho de 2024 na zona do Campim pela Polícia Judiciária com o apoio da PN e das Forças Armadas, que resultou na detenção de várias pessoas, das quais 28 foram constituídas arguidos, sendo 11 mulheres.