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Eduíno Rocha: “A minha especialidade é trabalhar com borracha e criei as minhas próprias ferramentas”

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É tido em S. Vicente como um especialista em criar e recriar peças minúsculas, em particular de borracha. No entanto, Eduino Rocha trabalha com outras matérias-primas usando ferramentas quase que microscópicas. No seu lote, diz, possui brocas que nem chegam a um milímetro de espessura e serras com a dimensão de um fio de linha. Raridades que aprendeu a usar e que fazem parte da sua desafiante carreira. Hoje, aos 60 anos, Eduíno Rocha não se considera um génio, apenas sim um homem que soube enfrentar os desafios e adaptar-se a um novo mundo profissional. Ao longo do tempo formou centenas de jovens, mas sente que os filhos estão mais capacitados para dar continuidade à sua actividade, que classifica de arte-recicle.

Por: Kimzé Brito

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Mindel Insite – É um técnico muito procurado em S. Vicente pela particularidade, qualidade e precisão do teu trabalho. Como descreve a tua actividade profissional?

Eduino Rocha – Para começar, muita gente pensa que eu sou mecânico, mas não tenho nada a ver com a mecânica. Trabalho, sim, para mecânicos assim como trabalho para ouras áreas como a electricidade. Contemplo a mecânica devido a adaptação e confecção de peças, particularmente de borracha. Os mecânicos trazem as suas ideias e necessidades, discutimos e damos uma saída positiva ao problema. Faço também escultura em fibra, bronze, alumínio e até em ferro, o que já abrange trabalhos mais pormenorizados e que as pessoas consideram difíceis. Aqui entra a reparação de fechaduras, inclusive de automóveis, de ignição, quando não as confecciono. Isto depende das necessidades. 

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MI- Como, então, especifica a tua profissão?

ER – Diria que faço arte-recicle, porque faço reciclagem, mas não aquela reciclagem de pegar uma paleta de madeira, pintar e transformar em cadeira. Dou vida nova e utilidade a coisas atiradas para a rua como chapas, borrachas…

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MI – Qual a tua especialidade?

ER – Diria que a minha especialidade é trabalhar com borracha. Para o efeito tive que criar minhas próprias ferramentas e maquinaria. Há tornos que criei para permitir-me trabalhar com peças muito pequenas que outros profissionais não fazem. Acham que não pagam a sua cabeça.

MI – Qual a qualidade das peças que cria ou recria comparativamente às originais?

ER – Algumas vezes faço cópias das originais, mas, como não tenho poder de vulcanização de peças – colar as peças – crio outras condições para alcançar a mesma finalidade. Se há um apoio de motor danificado podíamos fazer essa peça se tivéssemos poder de vulcanização. Mas, como não temos essa capacidade, arranjamos outras alternativas para criarmos algo funcional.

MI – Qual a duração das peças que constrói?

ER – Muitas vezes duram um tempo infinito; diria, fazer hoje para nunca mais. Se há uma peça quebrada dentro de uma ignição, ou fazemos a cópia com outro material que permite ser soldado – caso venha a estragar – ou então usamos algo que lhe vai dar uma grande durabilidade. Quando usamos um alumínio fundido pode partir-se, por isso, se formos refazer uma peça, usamos outra forma de trabalho. Trabalho com cobre na solda ou usando o cobre normal para fazer solda, dependendo daquilo que preciso, mesmo com uma liga um pouco descabida – por exemplo entre cobre e ferro…

Diria que a minha especialidade é trabalhar com borracha. Para o efeito tive que criar minhas próprias ferramentas e maquinaria. Há tornos que criei para permitir-me trabalhar com peças muito pequenas que outros profissionais não fazem.

MI – Faz fundição?

ER – Não faço fundição directamente, mas, se precisar, mesmo que tenha meios, há lugares mais apropriados onde fundir. Podem não fundir peças minúsculas, mas muitas vezes opto mais por extrair a peça de outra já pronta e dou-lhe o formato que precisar. 

Fazer aquilo que parece impossível aos olhos dos outro

MI – Como consegue arranjar matéria-prima para confeccionar, por exemplo, peças em borracha?

ER – O material chega de diversas proveniências. Há pessoas que as vão recuperar ao fundo do mar, como, por exemplo, as defensas de barco que se desprendem ou bocados de borrachas desperdiçadas pelos estaleiros navais da Cabnave. Durante a limpeza do fundo do mar, muitas vezes as peças são recolhidas e vêm parar à minha mão. Compro o volume todo e depois faço peças.

Já formei centenas de jovens em trabalho com borracha ou que já passaram pela oficina. Não pude concluir a preparação de todos porque há aqueles que aprendem mais devagar e outros que querem tomar a sua independência profissional mais cedo. Mas muitos foram preparados para voarem com as suas próprias asas.

MI – É conhecido em S. Vicente pela tua capacidade em trabalhar com objectos minúsculos…

ER – … Exacto, tudo aquilo que parece difícil ou mesmo impossível aos olhos dos outros. Para mim são apenas um desafio profissional. Surjo como uma alternativa. Aliás, a minha oficina tem como lema “alternativa, adaptação, segredos e reciclagem”. O meu trabalho é minucioso, um trabalho mesmo de encrenca. Leva muito tempo, mas gosto.

MI – O pessoal que trabalha contigo é formado na mesma área ou fazem trabalhos diferentes?

ER – Em primeiro lugar vejo a minha oficina como uma escola, aliás fiz isso já pensando num lugar para formação. Dependendo do empenho e vontade de cada um vou “explorando” a sua capacidade. Cada trabalho vai para a pessoa mais indicada. Já formei centenas de jovens em trabalho com borracha ou que já passaram pela oficina. Não pude concluir a preparação de todos porque há aqueles que aprendem mais devagar e outros que querem tomar a sua independência profissional mais cedo. Mas muitos foram preparados para voarem com as suas próprias asas. E tenho colocado vários jovens noutras oficinas ou dou o meu parecer, mesmo nas oficinas de mecânica de motor aberto. E quero frisar que sou neutro em mecânica de motor aberto, assim como em electricidade automóvel. Mas há sempre alguma base que o jovem adquire aqui e ficam aptos a trabalhar.

Eu e outras oficinas somos muitas vezes acusadas de explorar adolescentes. E ninguém está aqui para vir escravizar seja quem for. Por assim dizer, nós já temos a nossa vida formada e são esses jovens e suas famílias que precisam de um sustento e de uma actividade profissional.

MI – Há muitos pais que tentam colocar os seus filhos nas oficinas. Isto acontece no teu espaço?

ER – Sem dúvida, mas acabei por reduzir a quantidade de jovens que aceito. Podia estar com muitos aqui comigo, mas acontece que, sem falar mal do governo ou das entidades públicas, não ajudam a minha oficina e outras por aqui espalhadas pela ilha de S. Vicente. O Centro do Emprego é uma instituição maravilha, mas são pessoas mais de secretária. Precisam ir mais para o terreno e ver a situação real das oficinas, o trabalho que fazemos. Acontece que muitas vezes fazem formação teórica e nem sempre a teoria funciona. 

MI – Deixou de aceitar ajudantes só por causa da falta de apoio do Estado?

ER – Nem por isso, eu e outras oficinas tomamos essa decisão porque somos muitas vezes acusadas de explorar adolescentes. E ninguém está aqui para vir escravizar seja quem for. Por assim dizer, nós já temos a nossa vida formada e são esses jovens e suas famílias que precisam de um sustento e de uma actividade profissional; são eles que vão tirar dividendo das suas capacidades. E o Governo devia preocupar-se mais com as oficinas mais pequenas porque são elas que ajudam muitas famílias. As oficinas mais grandes querem profissionais já qualificados e muitos deles saem das pequenas oficinas.

MI – Quantas pessoas trabalham contigo neste momento?

ER – São sete, mas já tive 26 trabalhadores e até mais de quarenta. Esse tempo já não volta mais. Tinha mais trabalhadores e pagava melhor. 

Aplicar cada tostão em ferramentas

MI – Como começou a trabalhar nesta área?

ER – Quando o “pé de barriga” pede comida tens de arranjar algo para comer. Parei de estudar tinha 17 anos incompletos. Quando abandonei a escola saí logo da casa da minha mãe. Procurei encaixar-me nalgumas áreas como a da construção civil, pois tenho curso geral de construção civil feito na Escola Técnica. Mas não encontrei o que gostava de fazer, que era desenho. Passei um tempo na empresa Simal, mas trabalhava como ajudante na área de escultura em madeira. Quando vi que demorava muito tempo a chegar onde queria e ganhava pouco tive que sair. Passei a fazer outros trabalhos, como reparação de fogão, produção de “forminhas” de lata e outras coisas. Hoje fazem parte do meu passado, mas aprendi muito com tudo aquilo.

As minhas ferramentas são a minha história e são peças muito finas e preciosas. Só para ilustrar, tenho brocas da dimensão de um fio de cabelo; brocas de 0,30 e 0,25 milímetros. Tenho um grupo de mais de 90 brocas que vão até 6 milímetros de espessura. Tenho uma serra que é um fio de linha e que corta vidro.

MI – O dinheiro dava para sobreviver?

ER – Sempre que ganhava 10 centavos, em vez de comprar uma camisola, adquiria uma ferramenta. E neste momento tenho um leque enorme de ferramentas de quase todas as profissões.

MI – Pois, lembro-me que quando ainda trabalhavas na tua casa em Monte Sossego era um “cemitério” de ferramentas.

ER – Aliás, chegaste a escrever isso numa reportagem nessa altura, e concordo. Tenho ferramentas que passo anos e anos sem usar. Às vezes só as vejo para matar aquela velha saudade.

MI – Não se desfaz das ferramentas, elas são tudo para ti?

ER – Porque iria fazer isso? As minhas ferramentas são a minha história e são peças muito finas e preciosas. Só para ilustrar, tenho brocas da dimensão de um fio de cabelo; brocas de 0,30 e 0,25 milímetros. Tenho um grupo de mais de 90 brocas que vão até 6 milímetros de espessura. Tenho uma serra que é um fio de linha e que corta vidro.

MI – Onde as arranjou?

ER – Foi em 1998 quando sai de Cabo Verde e aproveitei para as comprar.

MI – Como utiliza esse tipo de ferramenta?

ER – São para esculturas, trabalhar molduras, desenhos em chapas e vidro. Tenho equipamentos que me permitem fazer um parafuso para óculos…

Impulsionado pelo desafio

MI – Como aprendeu a usar essas ferramentas?

ER – Tudo isso advém de necessidades. Os clientes chegavam com desafios diversos e tinha que os resolver. E senti essa necessidade de arranjar condições apropriadas. Por isso a minha oficina é composta de máquinas e outras peças que eu próprio idealizei e construí.

MI – Lembre-se de quando fez a sua primeira peça em borracha?

ER – Fiz a primeira peça em borracha por incentivo do meu amigo Nheta, uma figura muito conhecida em S. Vicente. Trabalhavamos juntos e ficavamos acordados até às tantas da noite. Um dia ele disse que tínhamos de fazer uma peça em borracha que estávamos a precisar. Nheta acreditou em mim, ele disse que eu era capaz de fazer esse trabalho. Fizemos essa peça e a cada semana criávamos mais. O nosso objectivo era levar as coisas a funcionar. A borracha aguentou oito anos e foi retirada de um motor ainda em condições para funcionar mais tempo. Quando dei-me por mim estava mergulhado num novo mundo, por iniciativa de Nheta. 

MI – Qual foi o teu trabalho mais desafiante?

ER – Até o dia de hoje tudo o que me aparece pela frente é um grande desafio. Produzo com base em necessidades muito específicas de cada cliente. O meu objectivo principal é dar mais tempo de vida a coisas que de outro modo poderiam parar de funcionar e ver os meus clientes satisfeitos. 

Nheta acreditou em mim, ele disse que eu era capaz de fazer esse trabalho. Fizemos essa peça e a cada semana criávamos mais. O nosso objectivo era levar as coisas a funcionar. A borracha aguentou oito anos e foi retirada de um motor ainda em condições para funcionar mais tempo.

MI – O teu trabalho agora está mais facilitado com oferta de materiais e produtos no mercado?

ER – Para ser sincero, o mercado não consegue fornecer-me tudo aquilo que preciso. Mesmo a matéria-prima que procuro encontro-a no chão, a apanhar sol e geada; algo que já foi feito, deu o seu tempo e foi descartado como lixo. O mercado acaba sempre por dar-me algo, como uma broca, mas há coisas que só consigo fora. Ocorre algo engraçado em Cabo Verde, somos um grupo e todos temos as mesmas coisas. Um ou outro se diferencia pela qualidade ou pelo seu conhecimento técnico.

MI – Como perspectiva o futuro do teu trabalho? Se deixar de trabalhar hoje qual seria a consequência para o mercado?

ER – Vou ser claro, no dia em que desaparecer há pelo menos duas pessoas que provavelmente poderão dar continuidade à minha actividade: os meus filhos Delys e Helton, mas terão que juntar esforços. E tenho outro filho que poderia dar um grande contributo se fizer parte dessa equipa. Mas, cada um deles tem a sua maneira de ser e de trabalhar. Teriam que se adaptar, mas tenho certeza que, no dia que partir, a nossa terra não fica mais pobre porque haverá continuidade.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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