Pub.
Opinião

Vamos falar agora a sério?

Pub.

Por: Neu Lopes (filho de Manuel d’Novas)

Tenho assistido com muita atenção críticas bastante severas sobre um post do meu amigo Pedro Ben’Oliel Chantre sobre a utilização da letra “Apocalipse” (não “Apocalypse”) de Manuel d’Novas. Vejo aqui momentos de tensão determinados não necessariamente por este evento, mas sim por factos que estão mesmo recalcados e que merecem uma atenção muito séria.

Publicidade

Não quis alimentar polémicas e nem reagir sobre um assunto que tanto me diz respeito porque aconselha a minha experiência e vivência de problemas vários que me envolveram, tanto a nível profissional como pessoal. E esses acontecimentos dizem-me, bem lá no fundo da minha consciência, para ter muita paciência, ponderação q.b. e atuação em tempo oportuno. Cada coisa no seu determinado tempo.E assim, penso que chegou a hora de me posicionar.

E digo o seguinte: Eu não acredito que o linguista Manuel Veiga tenha tido a intenção premeditada de pôr em causa o trabalho de um músico que, pelo que, por várias vezes, me fez sentir, respeitava muito. Contudo, digamos que ele terá cometido uma imprudência, num canal que está sempre a se mergulhar em polémicas, de ter pego uma letra adulterada por um vídeo no YouTube que parece nem estar mais disponível (curioso, não?).

Publicidade

E eu vou fundamentar: lembro-me perfeitamente de ter estudado, com a professora Isabel Lobo, várias letras de músicas da literatura clássica portuguesa, entre as quais cantigas de amigo, cantigas de escárnio e maldizer, cantigas de trabalho, cantigas de amor, enfim. Da literatura cabo-verdiana estudamos letras de ritmos nacionais como funaná, finaçon, batuque, coladeira, mornas antigas de Eugénio Tavares, etc. Tanto num caso como noutro, as letras foram estudadas na sua forma original, nenhuma foi alterada na sua forma escrita. Outrossim, eram-nos apresentadas traduções para estudarmos em paralelo e percebermos melhor as palavras, as expressões utilizadas na época.

Eu defendo que as letras não devem ser alteradas na sua forma original. Isso perturbava o Manuel e convém dizer, que quase todas, ou mesmo todas elas foram escritas numa altura que a proposta do ALUPEC nem existia. Digamos que o “atrevimento” não foi cometido originalmente pelo antigo ministro. E continuo não acreditando que fez isso propositadamente, tendo em conta o estudo que tem feito da língua cabo-verdiana, pensando sobretudo duas variantes – a de S. Vicente e a de Santiago (isso está patente na sua obra “O Caboverdiano em 45 Lições” de 2002). Manuel d’Novas viria a falecer sete anos depois.

Publicidade

Por outro lado, defenderei de forma rígida que as letras do meu pai nunca sejam alteradas por qualquer outra forma gráfica que venha a existir. Poderá sim haver traduções para outra forma gráfica (que sejam assumidas como tal – traduções). Além disso, as versões que estão registadas nas sociedades de autores são as originais. E este é um trabalho que eu fiz questão de continuar e de transformar num assunto da família e mesmo de assunto pessoal.

Agora, analisemos tudo isso com mais cuidado. Há poucos dias tinha chamado a atenção pelo facto da intenção de uma determinada “colonização linguística” por parte de um grupo muito bem identificado, dizendo que há mais falantes da variante do crioulo de Santiago. E a primeira coisa que me veio à cabeça foi: “neste caso, porque é que não estamos a falar a variante brasileira do português?” Isto é um discurso que nenhum cabo-verdiano deverá aceitar.

Este sim é um assunto realmente preocupante. E entendo que este é um facto que leva preocupação, e mesmo revolta quando qualquer pessoa ou entidade aparece adulterando (é essa a verdade) a versão original. Imagine que eu cometa a insanidade de alterar a versão original de uma letra do Orlando Pantera, do Katchass, do Codé di Dona.

Por outro lado, devemos entender que o ALUPEC não é mais que um alfabeto. A proposta inicial do seu uso é de servir para escrever, de forma normalizada, todas as variantes existentes do crioulo em Cabo Verde. Mas é um assunto armadilhado, por um lado, pelo facto de pessoas menos informadas acharem que é uma forma de escrever a variante de Santiago, por outro por alguns, de forma ignorante, fazerem uso dele para impor uma variante que uma minoria de enorme valor nunca irá aceitar, pondo de lado um direito histórico, de origem, cultural. Neste caso, não há lugar para radicalismos. A ideia é juntarmos as nossas forças e manter o que nos mais enriquece enquanto nação cultural.

Não sou contra a oficialização do crioulo, mas temos que perceber que isso demanda muito estudo, muitos anos de pesquisa, de escrita, incluindo a criação de publicações, ensino, desde o ensino primário. E porque não estudar, de forma enriquecedora, todas as nossas variantes do crioulo, de Santo Antão à Brava?

Portanto, enquanto isso, nossa língua de comunicação continuará a ser o português, está bem senhores deputados (bem identificados), jornalistas (também bem identificados) e demais entidades que se querem livrar da língua portuguesa?! Se a carapuça lhe serve, vai aproveitar para reagir?

Dr. Manuel Veiga, posso não concordar consigo ou vir a não concordar consigo em algum ou outro assunto, mas fez revelar humanismo. Com certeza, com tudo o que aprendi de um grande homem, “paquê tónte maldade nêss mundo, se nô ta li só pa um segundo”. Desculpas aceites.

Pergunta de remate: se queremos tanto oficializar a língua cabo-verdiana, se queremos tanto mexer com um assunto tão sério e que só a nós e a nós todos diz respeito e afeta, não é hora de começarmos a pensar num referendo, não deixando para trás debates/discussões organizadas de forma justa e séria? Ou teremos que continuar a “fazer uso da força” quando há muita gente inteligente que respeita a cultura deste Cabo Verde rico e não do que defende uma meia dúzia de pseudo-bairristas?

Mostrar mais

Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

Artigos relacionados

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo