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Opinião

Poder político vs. Povo

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Por Fredilson Melo

Ontem, enquanto assistia ao Jornal da Noite da TCV, ouvi o Bispo da Diocese de Mindelo, D. Ildo Fortes dar voz ao pensamento que já vinha tendo desde a semana passada, mas vinha guardando na ponta do meu cérebro para depois da Páscoa; parafraseando, ele disse que devemos ter a vida como um bem máximo, e como tal devemos protegê-la evitando colocá-la em situações de perigo (1). Isso, não obstante de ter a igreja cheia.

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Para mim, alguém católico e pertencente a um país aonde, segundo algumas estatísticas, mais de 80% da população é católica, é natural que, estatisticamente falando, a maior parte dos grupos políticos atualmente concorrendo para as legislativas deste ano decidissem suspender a sua campanha durante o tempo de celebração pascoal, que coincidiu com o arranque das campanhas.

No entanto, não posso deixar de notar a hipocrisia quando os dois maiores grupos políticos do país, que deviam constituir um exemplo para os demais, usam esse evento sagrado para angariar votos promovendo-se nas redes sociais como devotos católicos, ou religiosos (5,6), quando há apenas poucos dias, e durante vários meses, fizeram apenas o mínimo necessário para preservar a vida, desde que isso não interferisse no seu caminho de conquista de poder político.

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Foi há cerca de 6 meses que os grupos políticos tentavam, em meio a uma situação pandémica pior do que a atual, visto que ainda não tínhamos distribuição de vacinas ou qualquer data confirmada para a sua chegada, contactar diretamente o maior número possível de habitantes do nosso país para que votassem na sua lista para as autárquicas. E quando a Comissão Nacional de Eleições (CNE), por bem e em bom senso, resolveu limitar a atividade política de modo a serem cumpridas as regras sanitárias vigentes (7), o PAICV foi à justiça reclamar o seu direito de fazer algo tão impensável, desnecessário e perigoso quanto distribuir máscaras, camisolas e outros aparatos de marketing político, em meio à pandemia, porque esses objetos são, aparentemente, essenciais à transmissão da mensagem do partido sobre as suas políticas para os municípios em que concorria (8).

O grupo do MpD, partido que sustenta o Governo atual, por sua vez fez-se de surdo e mudo e aproveitou-se da fresca vitória judicial do PAICV para também fazer campanha como se estivéssemos em 2016, ou seja, antes da pandemia. Isso, depois de todos os grupos políticos se terem subscrito, antes da campanha, ao Código de Conduta e regras sanitárias definidas pela CNE em cooperação com a Direção Nacional de Saúde, a serem observadas durante a campanha (9, 10). Regras essas que ficaram apenas no papel, como mostram fotos e vídeos publicados nas redes sociais e meios de comunicação, e eventualmente denunciadas pela própria CNE (10). Advindo da repercussão do comportamento anti-sanitário, o Sr. Primeiro-ministro (PM) veio, no Parlamento, a reconhecer que os partidos estiveram mal ao fazerem campanha como se a pandemia já tivesse terminado em Cabo Verde (11). Com o discurso do Sr. PM, fiquei à espera que lágrimas de emoção lhe viesse aos olhos.

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Mas, se tivesse havido lágrimas, teriam sido de crocodilo, como se viria a revelar pouco tempo depois. É que, à semelhança da estrela autárquica do MpD, o Óscar Santos, a quem a Praia recusou um Oscar, o Sr. PM viria a se empregar em todo o tipo inaugurações em todo o país (12).  Não que as inaugurações sejam más – inclusive eu aplaudi uma série delas, principalmente no ramo da saúde, e até engoli o timing das inaugurações com um bom bocado de sal, mas o entourage que acompanhou o senhor PM em todas as inaugurações (13, 14, 15), assim como as massivas aglomerações que vimos, por exemplo, em Tarrafal de Santiago (16, 17), indicavam que ele estava mais preocupado com a imagem política que passava à população com tais atos inaugurativos, sobretudo municipais, do que prezar pela vida dos habitantes do país, visto que ele era um magneto ambulante de pessoas e um potencial foco de contágio. E passo agora a focar no Sr. PM não por preferência, mas pela sua importância como gestor do país nesta altura de crise sanitária e social, e por ter imposto, via Resoluções (18), normais legais sanitárias às quais passaria categoricamente a violar.

Para além das inaugurações, o Sr. PM achou também por bem fazer encontros com multidões de jovens em todo o país, naquilo que chamou de “Conversa Aberta com Jovens e Empreendedores”, de dezembro a março (12), aonde, estranhamente, o seu convidado especial era sempre um cantor, ou uma cantora, ou dois cantores. Faço um aparte aqui: sendo, a meu ver, o objetivo principal dessas conversas apresentar os feitos do programa governamental de empreendedorismo, porquê o Sr. PM não levou como convidados especiais jovens empreendedores que foram financiados pelos programas governamentais e que hoje são um caso de sucesso? Eu confesso que fiquei pasmado quando o Sr. PM convidou o Dino D’Santiago como convido especial enquanto o Rony Moreira, um caso de jovem empreendedor de sucesso, limitava-se a fazer o “papel” de entrevistador (19). Com todo o respeito que tenho pelo Dino D’Santiago, pela sua música e pelo contributo que tem dado para a divulgação da nossa cultura lá fora, ele não é representativo do empreendedorismo feito no país ou da realidade do nosso país.

Mas, voltemos ao assunto concreto deste artigo. Portanto, depois dessas inaugurações e dessas conversas, o MpD e, por extensão, o Sr. PM, lança, com semelhança ao ano passado, a sua campanha política com ações de porta-a-porta no meio da pandemia, num momento em que estamos, de forma consistente, a bater recordes de casos e a registar novos óbitos (20), num momento em que já detetamos variantes preocupantes do vírus no país (21), nomeadamente a inglesa, cujas taxas de infeção, gravidade e letalidade são muito maiores do que foi reportado para o vírus que saiu da China (22), e num momento em que já se sabe que a COVID-19 tem efeito graves a longo termo, mesmo para as pessoas que apresentam sintomas leves (23, 24).

Não obstante, essas ações de porta-a-porta promovem aglomerações e outras práticas suscetíveis de promover propagação do vírus (e.g., conversa próxima com pessoas sem máscara, abraço a pessoas com que não convivemos diariamente na mesma casa e cumprimentos de mão a estranhos), como vemos nas fotos divulgadas diariamente tanto na conta de Facebook dos deputados ou militantes pertencentes ao MpD, assim como, e mais gravemente, na página de campanha do próprio Sr. PM (25), que é o atual chefe-mor da nação, o responsável máximo pela definição de políticas de combate ao vírus e proteção dos habitantes do país, e a figura para a qual as pessoas olham como exemplo de comportamento e liderança.

Ora, é do meu entender que o Sr. PM é assessorado por pessoas competentes, como por exemplo o Sr. Ministro da Saúde e o Sr. Diretor da Saúde, que já devem ter exposto de forma clara e inequívoca ao Sr. PM os riscos de tais ações mencionadas acima, assim como a situação pandémica do país e do mundo. Creio crer que, o Sr. PM sendo o chefe do Governo, e, portanto, o chefe máximo da gestão do país, deve ter melhor informação do que qualquer outro habitante do país, sobre a real situação pandémica no país.

Por isso, é-me incompreensível que o Sr. PM haja de forma tão irresponsável a ponto de, não só repetir o mesmo erro de comportamento das autárquicas do ano passado, como de promover esse comportamento para que todos vejam, tanto dentro como fora do país. Mas, começa a tornar-se mais fácil entender tais comportamentos, também partilhado por outros grupos políticos, quando ouvimos os diretores de campanha dizerem que não há aglomeração nas campanhas e que quem está a denunciar as aglomerações são pessoas da oposição que estão também em campanha (26), não obstante as imagens e vídeos nas redes sociais e meios de comunicação mostrarem uma flagrante falta de respeito pelas regras sanitárias (27, 28) que o próprio Governo decretou e dadas às quais as pessoas podem ser punidas pela sua violação.

Portanto, é-me estranho que venha agora o Sr. Ministro da Saúde dizer que o Governo resolveu reforçar a fiscalização para evitar aglomerações de pessoas (29), e o Sr. Presidente da República cogitar a possibilidade de alterar as medidas contra COVID-19, depois da campanha (sem condenar a atitude dos grupos políticos em campanha) (30), quando o Governo e a sua força política são, provavelmente, um dos maiores agentes promotores de desrespeito pelas regras sanitárias, através da pessoa do seu chefe máximo, o Sr. PM. Isto é o equivalente a dizer a criminosos numa cadeia para policiarem o seu próprio comportamento. Não obstante, acho bem que se reforce a fiscalização, mas que seja a fiscalização de todas as pessoas, independentemente de cargo ou cor política.

Esses eventos e comportamentos mencionados acima levam-me a concluir que, tanto o partido do Governo, o MpD, como todos os outros grupos políticos atualmente a fazer campanha política de contacto, valorizam mais o poder político do que a saúde dos habitantes de Cabo Verde. A vida é importante, mas o poder político é mais importante. E o poder político está acima da lei.

Referências

1 – D. Ildo Fortes apela ao cumprimento das medidas sanitárias como forma de valorização da vida (04-04-2021), Televisão de Cabo Verde (https://www.tcv.cv/tcv/video-details?id=18505)

2 – Adilson Filomeno Carvalho Semedo, Religião e Cultura – A Influência da Religião Católica na Reprodução da Dominação Masculina em Cabo Verde (2009), Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, pág. 154 (http://www.portaldoconhecimento.gov.cv/bitstream/10961/5016/1/Religi%C3%A3o%20e%20Cultura%20-%20Adilson%20Semedo.pdf)

3 – Angélica da Cruz Fortes, Perfil de Cabo Verde (2014), Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Instituto Universitário de Lisboa, pág. 11 (https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/9366/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Mestrado%20-%20Ang%C3%A9lica%20Fortes.pdf)

4 – Pew-Templeton Global Religious Futures Project, Cape Verde (acessado 05-04-2021) (http://www.globalreligiousfutures.org/countries/cape-verde/religious_demography#/?affiliations_religion_id=0&affiliations_year=2010)

5 – Ulisses Correia e Silva, Facebook (02-04-2021) (https://www.facebook.com/ulissescorreiaesilva/photos/a.394011350641937/4163077300401971/)

6 – Janira Hopffer Almada – Presidente do PAICV, Facebook (04-04-2021) (https://www.facebook.com/JHA2021/photos/a.275965672592496/1644215632434153/)

7 – Deliberação Nº 5, Eleições Municipais 2020. Comissão Nacional de Eleições. Plenário de 21 de agosto de 2020

8 – Acórdão Nº 30/2020. PAICV v. CNE sobre a proibição de distribuição de camisolas modelo T e de máscaras faciais de proteção respiratória individual. Tribunal Constitucional.

9 – Deliberação Nº 69, Eleições Municipais 2020. Comissão Nacional de Eleições. Plenário de 06 de outubro de 2020

10 – CNE de Cabo Verde constata “violação clara” de normas por candidatos autárquicos (16-10-2020). rtp.pt (https://www.rtp.pt/noticias/mundo/cne-de-cabo-verde-constata-violacao-clara-de-normas-por-candidatos-autarquicos_n1267758)

11 – Primeiro-ministro reconhece que os políticos não respeitaram o código de ética da CNE durante as campanhas (16-10-2020). rtc.sapo.cv (http://www.rtc.sapo.cv/tcv/index.php?paginas=13&id_cod=96506)

12 – Primeiro-Ministro, José Ulisses Correia e Silva. Facebook. (https://www.facebook.com/pmucs/)

13 – Primeiro-Ministro, José Ulisses Correia e Silva. (31-01-2021) Facebook.  (https://www.facebook.com/watch/?ref=saved&v=1121883218269227)

14 – Facebook. (01-02-2021) (https://www.facebook.com/mika.lobo.330/videos/241310554264275/)

15 – Primeiro-Ministro, José Ulisses Correia e Silva. (07-02-2021) Facebook. (https://www.facebook.com/pmucs/posts/3961581027215025)

16 – Primeiro-Ministro, José Ulisses Correia e Silva. (12-02-2021) Facebook. (https://www.facebook.com/watch/?v=275806227299768)

17 – Facebook. (12-02-2021) (https://www.facebook.com/dulcineia.morais.5/videos/3921988094512955/)

18 – Medidas. (https://covid19.cv/medidas/)

19 – IEFP Cabo Verde. (18-12-2020) Facebook. (https://www.facebook.com/938958799501904/videos/439082293931329)

20 – Situação Atual, Boletim Semanal. (https://covid19.cv/)

21 – Cabo Verde regista a circulação da variante inglesa do SARS-CoV-2. (02-03-2021). (https://covid19.cv/)

22 – Variante inglesa pode ser até 70% mais mortal. (14-02-2021). publico.pt (https://www.publico.pt/2021/02/14/ciencia/noticia/variante-inglesa-ate-70-mortal-1950670)

23 – Covid-19: o vírus instala-se e deixa sequelas, algumas irreversíveis. (13-02-2021). publico.pt (https://www.publico.pt/2021/02/13/sociedade/noticia/covid19-virus-instalase-deixa-sequelas-irreversiveis-1950551)

24 – Nalbandian, A., Sehgal, K., Gupta, A. et al. Post-acute COVID-19 syndrome. Nat Med (2021). https://doi.org/10.1038/s41591-021-01283-z

25 – Ulisses Correia E Silva (https://www.facebook.com/ulissescorreiaesilva)

26 – Legislativas e aglomeração em SV: PAICV e MpD escudam-se nas medidas de segurança sanitárias. Mindel Insite. (https://mindelinsite.com/atualidade/legislativa-e-aglomeracao-em-sv-paicv-e-mpd-escudam-se-nas-medidas-de-seguranca-sanitarias/?fbclid=IwAR3-5Mp8U2gzrHUac6LunJ7Ik30j6uKZiDQ4dQ9Y5jwlScXatfDEPCjAdyg)

27 – Janira Hopffer Almada – Presidente do PAICV. Facebook (06-04-2021) (https://www.facebook.com/JHA2021/videos/278836237145329)

28 – Facebook. (06-04-2021) (https://www.facebook.com/paulo.silvadossantos.31/videos/4647631448602807)

29 – Governo decide reforçar a fiscalização para evitar aglomerações. (01-04-2021) tcv.cv (https://www.tcv.cv/tcv/video-details?id=18371)

30 –  PR não afasta cenário de novo Estado de Emergência
(https://expressodasilhas.cv/politica/2021/04/12/pr-nao-afasta-cenario-de-novo-estado-de-emergencia/74291)

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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