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O Livro da Cruz e da Onda (anno domini 1792)

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“O mar não separa os que se amam. Apenas os esconde até que o vento conte o resto.”**

Américo Costa

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Há histórias que o tempo tenta apagar, mas que persistem no murmúrio do vento e no sal do mar. Esta é uma delas. Uma história que une Thomar, cidade sagrada da Ordem de Christo, e o Porto Grande da então deserta ilha de São Vicente, décadas antes de ali nascer o nome de Mindelo.

Chamava-se Dom Afonso de Mar, Cavaleiro da Ordem de Christo, filho de um mestre templário e de uma dama de sangue leonês. Cresceu entre claustros e pergaminhos, mas o seu olhar buscava horizontes. Dizia-se que, nas suas horas de solidão, ouvia o mar chamar pelo seu nome.

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No ano da graça de mil setecentos e noventa e dois foi-lhe confiada uma missão secreta: acompanhar uma caravela rumo às costas da Guiné, sob pretexto de observar o comércio colonial, mas com um encargo oculto – transportar um manuscripto selado com cera vermelha, conhecido entre poucos por O Livro da Cruz e da Onda. Esse livro, escrito em língua perdida, falava de um amor que faria o mundo estremecer. Afonso, que o guardava junto ao peito, não sabia ainda que a profecia lhe pertencia.

Foi nas costas africanas que conheceu Zayana, uma jovem escrava de origem mandinga, capturada em expedições de guerra. Tinha olhos como tempestades e voz como o respirar do oceano. Quando cantava, o vento mudava de direcção e as velas das naus inchavam de presságios.

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Diz-se que, ao ouvi-la pela primeira vez, Dom Afonso deixou cair a espada. E que ela, ao vê-lo, murmurou num idioma que o mar compreendeu: “Tu és o da cruz que canta. Eu sou a da onda que escuta.”
Fugiram.

Entre o rumor das correntes e a sombra das velas procuraram refúgio numa ilha quase deserta, onde apenas o vento vivia. Chamava-se São Vicente, e o seu Porto Grande dormia ainda sob o silêncio do mundo. Ali, sob o luar de um tempo sem testemunhas, Afonso e Zayana viveram o seu amor proibido. Construíram uma choupana de pedra e esperança, onde o mar beijava a areia e a harpa de Afonso se confundia com os cânticos dela.

Mas o destino não perdoa os que ousam atravessar fronteiras de fé. Numa noite de tempestade, pressentindo a chegada dos perseguidores, Afonso e Zayana enterraram o livro sob uma figueira-do-inferno, junto ao mar. Juraram: “Quando esta ilha tiver nome, e o nome for canção, o mundo saberá o que fomos.” No dia seguinte, a caravela regressou ao largo. E o mar guardou o resto.

Décadas passaram. Daquela ilha nasceu uma cidade chamada Mindelo, e com ela vozes que pareciam já saber a história: mulheres que cantavam baladas sem autor, poetas que falavam de cruzes e marés, pescadores que juravam ver, nas noites de calmaria, uma cruz vermelha reflectida nas ondas.

Há quem diga que, sob as rochas negras da antiga Baía das Gatas, junto ao Monte Verde, dorme ainda uma pequena cruz de ouro finamente lavrada com o símbolo da Ordem de Christo, a mesma que Dom Afonso trazia ao peito. Outros juram que a cruz não está na ilha, mas em Thomar, sob a Ponte Velha, onde o Nabão sussurra versos de um amor perdido.

Uma inscrição quase apagada num pergaminho da época, conservado no Arquivo Conventual de Thomar, parece indicar o lugar exacto: “Onde o vento muda três vezes, e a água toca a pedra com som de harpa, ali repousa a cruz que uniu o Mar e a Onda.”

Seria a Pedra do Valado, perto do antigo Chafariz de Santa Iria? Ou talvez o pequeno promontório junto à Praia de Saragaça, no Porto Grande? Ninguém o sabe. Mas há quem garanta que, em certas tardes de bruma, o sol projecta no mar a sombra perfeita de uma cruz dourada.

Do livro, ninguém mais teve notícia. Mas há quem diga que só pode ser lido ao pôr do sol, com os pés na água e o coração aberto e que o próprio livro escolhe quem ache merecedor. Porque Thomar é pedra que sonha, e Mindelo é onda que escuta.

E quando pedra e onda se tocam, nasce o amor que nem o tempo consegue sepultar.

** Trecho preservado de “O Livro da Cruz e da Onda”, manuscripto encontrado em parte numa arca antiga da Biblioteca particular em Thomar. O restante texto permanece desaparecido. Diz-se que a chave da cruz perdida pode ainda ser lida nas sombras do pôr do sol, entre a torre e a maré.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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