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Kadidja e o Talismã: o crime de corrupção ativa da karontxa

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 Por um mundo sem fronteiras (fasc. 5).

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Por: Alcides Lopes

“Você começou a ser comida por uma multidão de olhos, assim que entramos neste local”, sussurrou o jovem com pinta de emigrante galante aos ouvidos da jovem moça que o acompanhava.

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“O privilégio de me possuir é apenas seu, meu garanhão”, retrucou a jovem acompanhante, virando-se e depositando um beijo no pescoço ébano e vigoroso do thug com uma sensualidade libidinosa, capaz até de arrepiar as extremidades do abade ermitão da Sibéria.

“Muda isso, por um instante que seja, e verás que, quando eu voltar, degolarei este lindo e cheiroso pescocinho de hiena travestida de gazela”, Disse Zazin.

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Eles formam um casal sensacional. Na realidade, já faz algum tempo que eles têm sido o casal do momento nas rodas da altamente sisuda, misteriosamente adoecida, ferida e brutalizada sociedade. Vítima da amnésia histórica pós-traumática que assombra os sobrados decadentes da cidade moribunda. A qual, jaz preguiçosa e mal-cheirosa à beira mar.

Kadidja Helena é filha de um comerciante mouride, fula senegalês e de uma santantonense altiva, de abundante inteligência e beleza. Djubi, um dos marmanjos surfistas de plantão da prainha dos calcanhares rotos, costumava chamá-la de “deslumbrante sol negro”. “Deliciosa!”, suspirava ele de olhos fixos, como um timbu paralisado pelo veneno da jararaca, sem ter a menor ideia de que já fora picado.

Quando ela caminhava longamente pelas largas faixas de areia da ilha das dunas, o sol prostrava-se ao reflexo da luz que recebia de volta. Era um duelo inumano entre dois seres eternos de almas ora embrutecidas, ora amolecidas pelos episódios mais desastrosos e transcendentais da humanidade na terra.

Kadidja é uma naidakra galardoada da sociedade secreta dos ogunzunzibenze. Igziabeher permitiu que ela tomasse a forma de um espécime humano etíope. Encarnou-se nesta fêmea voluptuosa de pés pequenos e dedinhos delicados, mas fortes. Ela tem o poder de hipnotizar qualquer criatura que tenha um par de olhos nesta dimensão. Mobiliza, para a sua aura, forças desmesuradamente poderosas. Interrompe o curso preditivo dos instantes e domina o fluxo insólito das representações humanas, com todas as suas idiotices pueris e extravagâncias inúteis. Em outras palavras, ilude qualquer indivíduo a percebê-la, ou melhor, a receber as ondas que permite emanar de si mesma, através de uma confusão ébria que alterna entre a altivez de Grace Jones, a meiguice de Lupita Nyong’o e o magnetismo de Liya Kebede.

Mas, por trás de toda aquela beleza exótica e autêntica, desprovida de qualquer ‘imperfeição’, que não seja para melhorar o conjunto, algo parecido com uma assinatura secreta numa pintura do período do impressionismo enigmático, age através de forças inefáveis. Guardiães de mundos cujas bordas não cabem na finitude da mente humana. Forças maiores do que os seus próprios nomes. Forças mais amplas e penetrantes do que o espectro da sua própria existência e experiência terrenas.

Hoje à noite, ela veste Prada. Quando Kadidja veste Prada, deixa o diabo com cara de Gollum, não importa a profundidade fria e assustadora dos seus olhos azuis. Ao entrar no lounge do extravagante restaurante The Safire in Mars, deixou o sobretudo da Farfetch – Prada com a recepcionista. Esta, a avaliou desconcertada, “como pode ela acertar em tudo, nos mínimos detalhes?” Pensava consigo mesma enquanto seguia a etiqueta restrita ao atendimento e recepção dos clientes. Kadidja atraiu mais atenção do que a maioria das celebridades globais, artistas e top models que visitavam as ilhas secretamente.’ A sua pele macia-veludo atraía a luz negra soft, que derramava em cascata dos espirais alpendres futuristas, conferindo um tom azul índigo sob a tangência da luz com a sua pele, sobre a qual, cuja estrutura celular é geneticamente programada para produzir quantidade e qualidade superior de melanina, pousa um vestido de noite do mais fino linho branco sudanês. Tecido pelas mãos delicadas e frágeis da tataravó do seu tutor e, há muito tempo, instrutor nas artes anti criminalidade da agência secreta.

O vestido caía como uma luva. Seu corpo, o exemplo de beleza subversiva ao clássico tradicional, seguia em movimento oblíquo descendente e produzia a sensação de que parou o tempo. Roubou reflexões, abstrações e interrompeu confissões: o burburinho; o peso do silêncio. Como dizem, o corpo da pessoa chega primeiro. Apenas a música discreta do djila, natural da Île de Ngor, cujas notas moldavam a atmosfera do lugar e precipitaram-se a saltitar por entre modos e harmonias que veneravam a presença melódica de uma guerreira secreta, anunciava que a uma rabidanti foi permitida adentrar o salão.

Os três últimos pavilhões multifuncionais do novíssimo edifício de quarenta andares, estão reservados somente aos deputados, senadores, juízes do supremo tribunal e às altas funcionárias ou comissionadas do Deep State. O edifício pertence ao grupo neoliberal Candace Blue [cujo núcleo, por enquanto, é-nos indetectável]: o maior empreendimento imobiliário da cidade. Um monstro de aço, concreto e vidro temperado. Tudo naquele projeto é do melhor e mais caro que há no mundo. A equipe de arquitetos, urbanistas e ecologistas veio de Dubai. Um pequeno gesto do sultão árabe, de quem suspeita-se haver conexões com o irascível Sahib Ahmed Muhammad Qadi; um homem misterioso, poderoso e extremamente letal.

Por sua vez, as empresas responsáveis pela execução total de todas as fases do megaprojeto vieram da China. Todas as tecnologias de ponta que caracterizam o mundo da alta indústria da construção civil/empresarial estão disponibilizadas em todas as fases do projeto. As fundações foram estabelecidas sob o mais estrito sigilo. Ninguém parece saber exatamente o que realmente aconteceu no geral. Cada equipe de especialistas que era contratada não tinha permissão para se comunicar com as outras. A tecnologia japonesa retrofitting presente no sistema de acoplamento é extremamente complexa. As peripécias dos engenheiros estruturais, durante a utilização criativa do vidro, do inox e das vigas de aço, são inacreditáveis. Parecem desafiar a gravidade e brincar de deuses.

Ao avançar sobre a pista de mosaicos de vidro temperado em seis cores, através dos quais é visível a movimentação das pessoas nos pisos abaixo, Kadija caminha hábil com o salto ponta de agulha da patente Jimmy Choo e equilibra-se perfeitamente no controlo dos atributos trabalhados, através de baterias de exercícios, principalmente os solitários, do seu belo e atlético corpo negro. Suas belas e longas pernas, as coxas grossas e o quadril arredondado como um cântaro, sobre os quais o vestido recai curto e fit. A osteo structura e a quase perfeita proporção como os ligamentos musculares distribuem-se na sua monumental estrutura corporal, leva-nos a compará-la com o quadro básico da estrutura de suporte de carga dos três pisos multiusos, o restaurante situado na cobertura, como a cereja do bolo. Refiro-me a uma estrutura que consiste em quatro suportes em forma de “V” acima do restaurante, as colunas se fundem em um feixe de aço cônico que segue os contornos dos três níveis superiores e transfere as cargas diretamente de cima para baixo.

Belo mesmo é ver o balançar do andar sedutoramente tóxico de Kadidja. Observá-la desfilar por entre os clientes. Aperceber o ar deslocar-se em graça e perfumar cinética e químicamente toda a sinergia atmosférica do ambiente. Por detrás das lentes de contato, plásticas e “correções” de nariz, das injeções de botox, dos implantes capilares e das perucas ultrarrealistas, erguem-se, furiosamente contidas nos grilhões da mediocridade de cada uma das criaturas da platéia, as más influências e as fealdades de todas as estirpes do público frequentador do lounge. Almas eivadas de sujidade putrefata, incapazes de imprimir autenticidade nos pixels do tempo. Cópias invalidadas.

Kadidja sentia toda aquela irradiação de energia negativa, como demónios e maus espíritos querendo escapar da caixa de pandora. Mas, ela não podia distrair-se. Tal ideia nem podia passar pela interface mnemónica de seus receptores. Caso houvesse um arkadian de tocaia, ela poderia ser rastreada e, se fosse hackeada, poderia ser fatal. Caso não fosse de imediato, os processos de cicatrização decorrentes do trauma que ela teria que suportar, durante um longo período de cura, teriam sido insuportáveis e, eventualmente, o seu velho e soberano espírito acabaria desencarnando da pior forma concebível do seu templo atual.

Ela era desejada e suas curvas, cobiçadas. O movimento hipnótico das suas nádegas firmes roçando lentamente por baixo do linho sudanês ao ritmo do seu andar cadenciado podia literalmente levantar os mortos e reverter os processos de menopausa. Evidentemente que, em circunstâncias moralmente aceitáveis e geralmente esotéricas, a leitora ou o leitor poderia condenar tais afirmações como sacrilégio e recolher-se aos seus paradigmas semelhantes àquelas defendidas por aqueles que se dizem os únicos [escolhidos] merecedores da nação cristã. Na verdade, vos digo, são antes uma congregação de lobos, à qual pertencem vinte e quatro Igrejas e cujo líder-santificado necessita de um grupo privado, armado e secreto [congregation of gunmen], para garantir a sua segurança pessoal.

Leoa no pavilhão. Somos dois, ela recapitulava mentalmente:

Zazin encontra-se neste momento prestes a intrometer-se no domínio da célula e contaminar o conceito da mãe demônio com o filho órfão. O oblívio, para o qual, as ancestrais seculares a cada dez passos foram conduzidas coercitivamente e levadas através de um regime de tráfico, onde as pessoas não consideram a índole da anciã, nem o jovem filho precisa aprender reflexões, partes de lições enigmáticas para que, durante a estação rebelde, possa transmitir aos seus os saberes das suas mães.

Sentou-se à uma mesa vazia e, da sua bolsa mini de couro Saffiano – Prada, retirou uma inflorescência Orange Kush, colocou no minúsculo tratador de titânio, rodou as partes contrariamente sobre o mesmo eixo, por duas vezes e depositou os cristais sobre a seda artesanal manufaturada a partir de fibras de cânhamo. Kadidja enrolou um charro sobre uma piteira de papel biodegradável e num gesto ritualizado acendeu, inspirou, segurou… e soltou um jato de fumaça perfumada que penetrou e adulterou a química imagética dos pensamentos de todas as pessoas da penthouse. Ela estava à procura de uma korontxa. Criaturas tão baixas e incapazes de suportar as energias do potencial terapêutico da cannabis. O relator tinha-lhe informado que uma funcionária, comissionada, pertencente à pasta ministerial das indústrias disruptivas tinha se envolvido, não apenas por pura ganância, mas também por estupidez e limitação cognitiva, num caso gravíssimo sobre impropriedade administrativa, no que corresponde, ética e moralmente, às atividades sub-reptícias desta funcionária de alto escalão com relação às políticas de salvaguarda do patrimônio histórico da nação.

Segundo o relatório, baixado diretamente do mother cloud da deepnet para os módulos mentais compartimentalizados, o indivíduo de codinome: korontxa tinha interceptado, de forma fora do usual, uma solicitação prevista há milênios, “e deve ser exatamente por isso que passou despercebida”, Kadidja resmungou enquanto devorava avidamente aquele rol de páginas em papel real. Um luxo nestes dias. Por sorte encontrou uma HP Deskjet doméstica miraculosamente funcionando no antigo escritório, agora desativado, dos médicos que pereceram durante os estágios iniciais da Grande Pandemia.

A mensageira, portadora de um dispositivo ainda desconhecido, era proveniente de uma rede aleatória de trajetórias intergalácticas. A trans planetaridade hoje em dia é uma realidade, pelo menos para uma parcela da população universal suficientemente sagaz e, por isso, capaz de pervadir as altitudes estratosféricas e as profundidades oceânicas e sombrias do espaço sideral, a bordo de uma Krux Fiktion, um modelo popular de naves autônomas para transporte interplanetário.

O relatório continuava explicando que a emigrante, ao aportar na plataforma TK XWZ-13, ala sul dos pavilhões de aterrissagem, deixou escapar para korontxa que encontrava-se em seu poder um libreto raríssimo sobre um dos primeiros memoráveis concertos da Diva dos Tentáculos Fosforescentes – uma soprano da família das Cicada Orni, a qual diferentemente das cigarras terrestres, era detentora de uma extensão vocal que quando bem projetada, a beleza das estruturas geométricas das vibrações alcançada era capaz de levantar exércitos cuja dimensão não era possível de ser extenuada por um centauro cavalgando da aurora ao crepúsculo, seja debaixo do sol à pino ou sob a chuva ácida torrencial, ou mesmo, trespassando, como uma flecha, tempestades de poeira radioativa, sem descansar por um instante sequer.

Por sua vez, o informante consultado por Kadidja, confirmou a versão antes relatada pelos arquivos audio data encontrados no backup safety drive duma andróide assessora do korontxa, a qual foi misteriosa e estranhamente desprogramada. Confirma-se: “o elemento estabeleceu uma conexão holográfica com a assistente de um colecionador muito poderoso, suspeito de envolvimento com eventos inomináveis que ocorrem impunemente no submundo de Dubai. O colecionador queixou-se discretamente ao fiscal das catalogações patrimoniais. O ofício foi imediatamente submetido ao Cipher Stationary Pedigree e foi registrado como uma ofensa administrativa grave.

Enquanto saboreava um tônico organicamente extraído das flores maduras de bissap, produzido nas encostas do Kilimanjaro, aceitava que o destino de korontxa estava selado, como fora o de Djubi, o surfista atrevido. A cobiça e a ambição desmesurada subiam à cabeça desta gente e dava sempre nisso. Dava sempre em merda. A corda sempre arrebenta para o lado das populações mais carenciadas. Kadidja tinha consciência destes ciclos de eventos catastróficos desde que estudava antropologia forense, as etnobotânicas interplanetárias e os procedimentos de emergência para descongelamento e oxigenação de choque de passageiros hibernados em caso de acidentes de percurso.

Mais um “tapa na pantera”, o mesmo ritual. A viagem desta vez lembrou-a de quando se perdeu nas lábias daquele astuto e perigoso santa catarinense, másculo e forte, moda rotxa. Jovem estudante na Assomada, aspirante a jornalista aos 19 anos de idade, de olhos pequenos e oblíquos, rosto amendoado, orelhas pequenas e bem-feitas, com os cabelos em dreadlocks curtos e um olhar penetrante.

O olhar de Kadidja alimentava a chama da vida. Quando ela olhava para alguém, experimentava a pura busca pelo conhecimento sobre as múltiplas questões que afligem os outros, principalmente às crianças. Muitas vezes, quando finalmente descansava a cabeça no travesseiro em casa à noite, pensava sobre os problemas que afligiam os bairros periféricos do arquipélago, os quais comportam a maioria dos excluídos, desde a “invasão das ribeiras” como o bairro da Jamaica, até o bairro de Eugénio Lima, povoavam uma urban scape onde, apesar do caos, era possível interagir com aquelas pessoas, através de um mundo fluido, onde as conversas divertidas fazem-nos imaginar que se espera menos tempo pelo autocarro, e o algodão doce não é feito de açúcar.

Por estas razões era particularmente difícil perdoar criaturas como korontxa. Particularmente, para Kadidja, quem viu-se obrigada a usar seus poderes sobre humanos desde tenra idade e em condições traumáticas ao extremo. No seu caso, tudo aconteceu em consequência de atos negligentes por parte de adultos. Como neste caso atual, uma funcionária a quem foi investido um poder extensivo, quase sagrado, de proteger e salvaguardar a memória de uma nação, um ato que exige patriotismo, altruísmo, exatamente o contrário do nacionalismo, do egoísmo e outros ismos. Então, o que acontece? A sujeita resolve pensar na profundidade dos seus bolsos, no modo figurativo. Pois, eficazmente, ela pensou em elevar o seu limite de crédito interplanetário. Kadidja não perdoa este tipo de traição corrupta.

Ela tinha conhecido uma infinidade de mundos perdidos devido à ganância cruel e desumana do capitalismo extrativista. Tinha aprendido de forma impressionante que as miríades culturais do mundo formam uma teia social, intelectual e espiritual de vida que envolve o planeta e é tão importante para o seu bem-estar como é a teia biológica animada a qual chamamos de biosfera. Pode-se pensar nisso, como sugere seu tutor, cultura, a teia da vida, como sendo uma etnosfera. Kadidja conheceu e viveu junto aos Barasana, o povo amazônico que adora a Anaconda. Ela recorda que, na sua mitologia, desenham um trajeto rio acima em procissões rituais, a partir do Leste, no estômago das serpentes sagradas, apenas para serem regurgitados em direção às várias afluências no noroeste do Rio Amazonas. Kadidja recordava que aquele povo vivia tão intimamente a floresta que, cognitivamente, não distinguia a cor azul da cor verde, porque, o dossel da floresta, para eles, é igual ao dossel dos céus. Eles ainda são permitidos casar apenas com parceiras que falam uma língua estrangeira.

Certa vez, num episódio envolvendo os Waorani, Zazin deixou cair umas fotografias que os indígenas prontamente encontraram pelo chão da floresta. Ao analisar os objetos, olhavam o anverso e o reverso das fotos tentando entender a situação. Depois de um momento claramente confuso, decidiram que aquelas eram cartas de visita emitidas pelo diabo. Quando Kadidja e Zazin avistaram o cacique waorani, este logo avisou-os dramaticamente: “Fujam por aqui, por aqui. Eles vos querem esfolar vivos.”

Eventualmente, o casal escapou da fúria dos guerreiros originários da floresta e da astúcia homicida do cacique. Mais tarde descobriu evidências que comprovam que os Waorani não atacam com suas lanças somente os estrangeiros, os outsiders. Eles também costumam golpear uns aos outros. E, em certos casos, golpeiam os seus mais velhos com suas lanças, até a morte. As genealogias rastreadas por cinco gerações evidenciaram que somente três casos de morte no grupo foram de causas naturais. Quando interrogados mais incisivamente, os caciques admitiram que alguns colegas tinham morrido de “tentar enganar a velhice”. Ou seja, a comunidade espera tanto pela morte destes indivíduos, a qual eventualmente demora a chegar, quando se entediam, atacam os mais velhos a golpes de lança para apressar a sua morte. Depois, jogam seus corpos ao rio.

Kadidja ainda recorda que Zazin processou o sangue do grupo inteiro e desconfiava que aquele grupo apresentava as maiores taxas de mordida de cobras de qualquer população humana. 95% dos homens adultos tinham sido picados por cobras venenosas, metade deles, mais de uma vez. Ao mesmo tempo, os Waorani possuem um conhecimento pertinaz da floresta que impressiona e suplanta qualquer especialista, às vezes, até os supercomputadores exploratórios. Eles são caçadores tão hábeis, que conseguem farejar urina animal a quarenta passos de distância e identificar quais espécies deixaram quais secreções pelo caminho.

A mesma acuidade deu origem a um conhecimento extraordinário sobre as propriedades das plantas, especialmente o curare: uma flecha ou dardo venenoso que revolucionou a medicina moderna quando foi apresentado como um relaxante muscular na década de 1940. Curare atua como um agente bloqueador neuromuscular que causa paralisia gradual. Kadidja não tinha dúvida que este tipo de atenção, de despertar para o domínio natural, é retirada do mesmo potencial bruto que permitiu à raça humana enviar o homem à lua. Contudo, ciente de que tudo o que aconteceu através das revoluções entre planetas médios e grandes, mundos abrangentes e dominantes, outros submersos e recessivos poderia ter sido diferente se antes tivéssemos o conhecimento dos mecanismos da história e da produção do poder que hoje detemos.

Entretanto, a incompetência, a petulância, a desonestidade para consigo mesma sempre vai fazer parte de uma má decisão. Vivemos descaradamente num mundo de fingimento e de ignorância. O fingimento é falta de vergonha na cara mesmo. A ignorância a que nos referimos não se trata de brutalidade ou do pitoresco. Antes refiro-me à ignorância travestida de intelectualidade. Sem fundamentos analíticos. Sem levar em consideração os próprios limites da razão. Sem entender que, como Kadidja aprendeu da pior maneira, entre a tomada de decisão errada e o silêncio que precede o esporro, há possibilidade muito tênue de um upgrade

(A continuar).

*Leituras de base:

Keynote Speech: The Ethnosphere and the Academy by: Wade Davis.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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