Por: António Santos
“Kabral kâ móri/ Kabral ê grito ki diguidji mundo/ Kabral kâ móri/ Kabral ê grito na nhâ peito… Herói ki dá sê sangue/ Pa liberdade, justisa di nôs povo”. Esta morna, eternizada pelos Tubarões, homenageia o grande visionário e teórico africano, que nasceu em 1924, afirmando que, mesmo assassinado pelos agentes do colonialismo, Cabral kâ mori.
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Mas, pelos vistos, apesar da polémica no Parlamento a propósito do chumbo da iniciativa do PAICV para aprovação do projeto de resolução sobre celebração oficial do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, o povo não esquece essa grande figura histórica e, durante os desfiles carnavalescos no Mindelo, o tema do Grupo Monte Sossego, vencedor do Carnaval de São Vicente 2024, foi a Luta de Libertação Nacional, com grande destaque para Amílcar Cabral, para desgosto dos alienados e colonizados mentais.
O povo de São Vicente “emocionou-se” à passagem do carro alegórico do Monte Sossego, que contava “a dor dos nossos ancestrais” (maltratados, escravizados, levados nos navios negreiros, pelos colonos europeus), e também a história de libertação nacional iniciada por Amílcar Cabral e o PAIGC, no ano do centenário de Amílcar Cabral, com a sua bateria Cabralista e os seus Pioneiros Abel Djassi.
A forma como os populares reagiram à passagem do carro alegórico, evocando a vida e a luta de Amílcar Cabral, desvalorizara a polémica criada pelos deputados do MpD, que obrigou o presidente da Assembleia Nacional, Austelino Correia, a afirmar que não põe em causa as decisões dos sujeitos parlamentares, mas está em crer que o factor ideológico terá falado mais alto e afirma que os cabo-verdianos devem fazer as pazes com a sua história e, particularmente, com a figura de Amílcar Cabral.
Posteriormente, o Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva prometeu “dignidade e representatividade” nas comemorações do centenário do nascimento de Cabral, que se iniciaram em janeiro e se prolongam por todo o ano.
Pedro Pires, presidente da Fundação Amílcar Cabral, considerou o “incidente parlamentar”, como lhe chamou, um pormenor que não deve ofuscar “uma coisa maior” que são as comemorações, dando o assunto como ultrapassado, até porque o programa foi conversado num encontro com o Primeiro-ministro.
Filho de Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora, o líder histórico nasceu na Guiné-Bissau em 12 de setembro de 1924, partiu para Cabo Verde com oito anos, acompanhando a sua família, onde viveu parte da infância e adolescência. Posteriormente, foi fundador do então PAIGC, que deu lugar ao PAICV, líder dos movimentos independentistas nos dois países, e foi assassinado em 20 de janeiro de 1973, em Conacri, aos 49 anos.
Quando se foi deste mundo, há 51 anos, Amílcar Cabral deixava atrás de si um legado multifacetado que perduraria no tempo. Entre as suas ramificações, contam-se a admiração na Guiné e em Cabo Verde, cujos povos o elegeriam como herói maior da libertação nacional, e o papel que desempenhou na queda da ditadura que governava os destinos de Portugal desde 1926.
Inclui-se também a sua celebração unânime no universo anti-colonial, no campo terceiro-mundista e em alguns dos chamados países ocidentais “progressistas”, onde logrou furar as divisões da Guerra Fria – na Suécia, para dar um exemplo, multiplicaram-se as manifestações na sequência do seu assassinato. Este legado compreende ainda os seus discursos e escritos, que deixou à mão de quem os quisesse ler. Foi assim que, para lá dos lugares-comuns que a memória pública guarda, cheguei a Amílcar Cabral.
“A perda de Amílcar poderia ter sido de facto um desastre, se nós estivéssemos noutra fase da luta. Mas as condições que vieram a determinar a derrota do colonialismo português já estavam criadas em vida do Amílcar”.
Num tempo em que a “identidade” se tornou numa das categorias-chave da política, e uma espécie de categoria «catch-all» (como agora se provou com a polémica no Parlamento cabo-verdiano), com todos os equívocos e confusões que isso acarreta, dialogar com o pensamento de Amílcar Cabral e compreender como recusava qualquer mística à sua «africanidade» que não se fundasse na luta, ganha uma renovada pertinência.
Perdi o rasto ao texto onde uma vez li que Cabral seria o “contraponto lusófono de Fanon” e, com efeito, eles convergem nesta defesa acérrima da política como lugar de transformação radical da vida e de si, negando qualquer veleidade essencialista (veleidades que, à época em que escreviam, não raras vezes andavam de mãos dadas com o neo-colonialismo).
O povo, dizia-nos Cabral, forja-se na luta, da mesma forma que a luta se forja no povo.