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Opinião

EEP: Região Administrativa da Praia ou simples nota de rodapé da Constituição de Cabo Verde?

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Por: José Fortes Lopes

A Proposta Estatuto Especial (EE) para a Praia, Capital de Cabo Verde, foi chumbada em 10 de Julho de 2020, por não recolher o voto dos 2/3 do total dos deputados do Parlamento cabo-verdiano. Recorde-se que é a quarta ou a quinta vez que se discute a adopção deste estatuto, que está na Constituição de Cabo Verde. O que se pretendia com esta votação, usando os argumentos e as justificações dos seus defensores e proponentes, era dar conteúdo e corpo ao EE, isto é criar um conjunto de mecanismos que visam dotar a cidade-capital de mais meios financeiros e políticos para o desempenho da sua função: um regime Administrativo Especial para a Capital de Cabo Verde.

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Convenhamos que o momento escolhido para o debate de uma questão tão sensível foi inoportuno e inadequado, por haver problemas urgentes por solucionar: o Mundo inteiro, logo Cabo Verde, atravessa uma grave crise, a Pandemia de Covid-19, e as suas consequências na vida económica dos países ainda não se vislumbram em toda a sua dimensão. Apesar da minha oposição de princípio ao conceito de EE, a prudência recomendava que o partido no poder, o MPD, suspendesse o mesmo e o reconsiderasse, pesando os prós e os contra, para a próxima legislatura, obviamente caso venha a ser eleito. Por outro lado, sendo um assunto de importância capital, e que divide a sociedade cabo-verdiana, não podia ser apresentado sem uma socialização adequada: para além disso exigia concertação e consenso.

Era por demais evidente que não havia condições para a Proposta do EE passar, tanto no formato como na forma como foi apresentado, e que a sociedade cabo-verdiana estava bastante dividida nesta matéria, com duas leituras antagónicas e irredutíveis do mesmo: uma encarnada por uma maioria, que rejeita categoricamente o princípio dos EEs (e pede a sua remoção pura e simples da Constituição), e outra encarnada pela elite da capital (que não se deve confundir com os naturais da cidade e da ilha de Santiago), que tem todo o interesse em garantir um caudal cada vez maior de recursos para a manutenção do seu poder económico e político. O EE seria, assim, uma cereja em cima do bolo. 

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“Era por demais evidente que não havia condições para a Proposta do EE passar, tanto no formato como na forma como foi apresentado, e que a sociedade cabo-verdiana estava bastante dividida nesta matéria, com duas leituras antagónicas e irredutíveis do mesmo…”

A primeira ronda do debate decorreu fora do hemiciclo, no seio da sociedade civil (sobretudo nas redes sociais, incluindo a manifestação promovida pelo movimento Sokol-2017), o que deu uma espécie de radiografia/sondagem da opinião pública. Esgrimiu-se todo o tipo de argumentos, prós e contra o EE, muitas vezes de forma intensa e até apaixonada. No final, ficou evidente que o projecto não passava para além das fronteiras da Praia/ilha de Santiago, pelo que o resultado deu um chumbo, que acabou por se configurar no voto desfavorável no Parlamento cabo-verdiano.

Pode-se dizer que o erro foi ter apresentado o EE como uma promessa de campanha do MpD, sem ter tido em consideração a opinião geral dos cabo-verdianos, acabando por aparecer mais como um projecto para a cidade da Praia, uma exigência da Câmara Municipal da Praia, apesar de se pretender ser um desígnio nacional. Isso por si só revela o busílis da questão e o erro político da abordagem. Por isso há aqui matéria para denunciar uma incompetência política, e não deixa de ser uma derrota política do MPD e do seu governo.

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Até se aperceber da sua existência, o EE não passava de uma nota de rodapé da Constituição de Cabo Verde. Com efeito, a Praia sendo capital, é óbvio que o estatuto (de capital) torna-o uma cidade especial. O Legislador que redigiu a Constituição democrática dos anos 90, terá achado por bem sublinhar o estatuto de capital, uma espécie de carimbo, EE. Mas o pacote legislativo que foi submetido ao Parlamento cabo-verdiano consta 12 artigos, como se pode ler no Preâmbulo do Projecto de Lei, e tem por objectivo conceder “uma descriminação positiva em favor do Município da Praia”. Trata-se, pois, de uma reinterpretação do espírito e da letra da Constituição, que extrapola um conceito político contido na Constituição, para uma esfera da política e da economia.

“Pode-se dizer que o erro foi ter apresentado o EE como uma promessa de campanha do MpD, sem ter tido em consideração a opinião geral dos cabo-verdianos, acabando por aparecer mais como um projecto para a cidade da Praia

 A defesa do EE foi muito acérrima e agressiva por parte dos seus defensores, não aceitando os argumentos dos que se lhe opunham. Para eles, os deputados deviam aprovar o EE sem pestanejar, e a sociedade civil que questionava os fundamentos é acusada de cometer um crime de lesa-Praia. Alegou-se que o EE estando Constituição, logo teria que ser aplicada taxativamente, não se questionando se outros princípios que também nele figuram são cumpridos. Paradoxalmente a Proposta tem princípios que aparentemente violam a Constituição cabo-verdiana, quando se questionam princípios de equidade e justiça. Como poderá a Praia ter mais discriminação positiva do que aquela que já desfruta, e porque não aplicar esta medida para outras ilhas, regiões, cidades ou localidades, que enfrentam sérios problemas socioeconómicos e de desenvolvimento?! Porque não uniformizar a ferramenta das soluções, para resolver problemas ou situações similares? Porque não promover a área metropolitana da Praia uma Zona Económica Exclusiva, tal como acaba de acontecer para S. Vicente?

A questão do EE é apresentada através do chamado “Custos da Capitalidade”, vem anexado a um dispositivo/pacote de medidas concebido para investir na cidade/capital:

1) através da descentralização de poderes e atribuição de forma perene/perpétua de recursos (Impostos/Taxas, equiparação governativa aos membros autárquicos /camarários, etc.) para a câmara municipal;

2) estabelecimento de uma parceria abrangente entre a cidade e o Estado. É claro que existe um lado negativo da Capitalidade, exacerbado pelo próprio Centralismo, um fenómeno induzido pela concentração de recursos/riquezas. A ausência de perspectivas para os que vivem longe do centro, tanto na ilha de Santiago como nas diferentes ilhas do arquipélago leva a migração de populações rurais para a capital, gerando o crescimento insustentável da cidade-capital, a multiplicação de problemas sócio-económicos, assim como diversos outros problemas, tais como planificação de políticas, urbanismo,  etc.

O argumento dos “Custos da Capitalidade”, apresentado como uma desvantagem não convence.  Convenhamos que o facto de ser capital de um país traz muitas vantagens, contrariamente ao que a narrativa faz acreditar, como atesta o crescimento e o desenvolvimento exponenciais da chamada zona metropolitana da Praia, antes confinado ao pequeno burgo limitado ao chamado Plateau, fruto dos investimentos feitos nela desde a independência. Não referem todavia ao principal responsável dos “Custos da Capitalidade”, o vilipendiado Centralismo, um dos males de que sofre Cabo Verde desde a independência: a Praia funcionando como um íman, um concentrador de poder, de economia e de recursos humanos. Assim há muitas razões válidas para atribuir EEs à outras ilhas e/ou parcelas do arquipélago, inclusivamente a Santiago Norte. O EE acaba, assim, por ser visto como mais um privilégio atribuído à Praia, como cidade, uma espécie de regionalização administrativa “adoc”. A missão de aprovar o EE era, pois, quase impossível, pelas contradições insanáveis expostas. 

“O argumento dos ‘Custos da Capitalidade’ apresentado como uma desvantagem não convence.  Convenhamos que o facto de ser capital de um país traz muitas vantagens, contrariamente ao que a narrativa faz acreditar, como atesta o crescimento e o desenvolvimento exponenciais da chamada zona metropolitana da Praia

O que escrevi sobre a questão do EE Praia mantém-se pelo que insiro aqui um extracto do texto. Na altura, em 2017, apresentei nos Fóruns da Regionalização, alternativas, nomeadamente algumas ideias incluídas na nossa proposta de Reforma do Estado, do Grupo de Reflexão da Diáspora, e que foram publicadas em livros e jornais, que permitiriam integrar um novo Estatuto para a Praia, que fosse mais consensual, sem criar divisões inúteis ou beliscar outros interesses. Sugeri no espírito da Regionalização, de acordo com conceito de Ilha-Região que era proposto tanto pelo projecto do governo como pelo da oposição, que a Praia fosse a capital da Região-Sul, já que Santiago foi dividido em duas Regiões, Norte e Sul (uma divisão que é rejeitada por muitos regionalista, mas que não me chocaria em princípio, desde que não seja bem intencionado).

De resto o principal partido da Oposição acolheu com bons olhos algumas das nossas ideias, nomeadamente a necessidade da Reforma do Estado, e delas fez uso no debate parlamentar da Regionalização em 2018/19. Mas o partido do poder sempre quis desligar o EE, do processo de Regionalização global, alegando que aquele estava na Constituição de 1992, portanto não se podia questionar, nem debater. “… “A criação de Regiões administrativas esvaziava o número (exagerado e artificial) de câmaras municipais e o seu falso poder, pelo que implicava forçosamente uma maior clarificação do poder autárquico, a sua reestruturação, evitando redundâncias e futuros conflitos de poder nas ilhas ou regiões. Para além disso, apontámos para a necessidade de introduzir maior proporcionalidade através do conceito moderno e avançado de Senado das Ilhas do arquipélago. Isto tudo só podia ser feito ao abrigo de uma Reforma da organização administrativa do Estado e de uma revisão da Constituição de Cabo Verde“.

Resumindo e concluindo, os problemas da Praia, que são simultaneamente os da Capital de Cabo Verde, prendem-se com a melhor gestão dos recursos disponíveis e não com mais recursos (que não são ilimitados) a serem disponibilizados. Os problemas da Praia terão solução numa lógica e perspectiva global: tem que se ver o país-arquipélago, como um todo, de norte a sul, e incluir uma abordagem macro para o país, à escala global, e abordagens micro à escala específica, para cada ilha ou região. A questão da adopção de metodologias adequadas para resolução destas questões é crucial. Daí a ideia da Regionalização/Descentralização surge com uma das metodologias, entre várias. Deve-se voltar aos fundamentos da reflexão das problemáticas de Cabo Verde que são complexas e de difícil resolução. Só nesta perspectiva a Praia como cidade e Capital tem solução. 

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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