Por: David Leite
Sexta-feira, durante o programa Opinião Pública, da RCV, os radiouvintes devem ter ficado em estado de choque ao escutar um cidadão da ilha do Sal desabafando as suas máguas e avisando a quem o queria ouvir: “se o meu problema não for resolvido irei resolvê-lo à minha maneira… aviso que matarei milhares de pessoas e ‘M ta matá nha cabeça'”
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Muito grave devia ser o “problema” desse infeliz chefe de família a ponto de publicamente perder o controlo e se deixar levar por tão obscuros desígnios! Conta o próprio Sr Silva: – “eu morava na minha casa, que comprei, e um certo dia apareceu outro comprador. Então o tribunal ordenou a minha expulsão e fui para a rua com os meus filhos. No tribunal e no cartório mostaram-me um documento com a minha assinatura, ao passo que eu não podia sequer assinar porque nessa data tinha perdido a visão! A Câmara deu-me um ‘lugar mariod’ para morar, sem luz nem água… Eu e os meus filhos já não aguentamos mais esta situação”.
Tal é o “problema” do Sr Silva, contado na primeira pessoa com a ameaça de causar uma mortandade no próximo festival e pôr cobro à própria existência se não houver uma solução!
Nos estúdios da RTC, a jornalista Carmelita do Rosário e o seu convidado, o psicólogo Nuno Melício, devem ter-se visto “gregos” face a tão inusitado desabafo e tão graves propósitos. A Carmelita e o Nuno são meus amigos e hão-de me permitir também um desabafo: foi com enorme surpresa e assombro que vos ouvi, caros amigos, por única resposta dada a esse senhor em desespero, que precisava de “acompanhamento psicológico” e que o resto eram questões de ordem jurídica – e mais nada! Confesso que fiquei tão perplexo quanto chocado com as ameaças proferidas pela pessoa em referência.
Não há dúvida de que uma ameaça dessa gravidade clama por intervenção de foro psicológico, mas, se bem entendi, essa pessoa não pedia condescendência, nem compaixão, nem pena; antes, pedia que alguém o orientasse para resolver o problema que alegadamente lhe criaram. Daí que eu esperava mais empatia, uma outra resposta, género “tenha calma, reflita, não cometa o irreparável se ama a sua família. Estamos consigo, vamos tentar averiguar e orientá-lo naquilo que pudermos!” Como? Acionando quem de direito para agir junto das diferentes instituições que alegadamente teriam lesado esse senhor, com vista a uma solução do seu problema sem prejuízo para ninguém.
Obviamente, mandaria a prudência averiguar a veracidade dos factos e não se contentar com a versão desse infeliz senhor. A ser verdade o que ele diz, se o seu aparente desarranjo psicológico vem na decorrência do seu problema de alojamento, então o remédio passa (também) pela resolução do problema. Se não for verdade, aí sim, o “acompanhamento psicológico” é de rigor.
Por outras palavras, não sabemos, até agora, se a estória do Sr Silva é mesmo como ele conta. Mas sabemos de outras estórias, bem verídicas, que não destoam muito da estória do Sr Silva! Com efeito, muitos terrenos comprados nas câmaras municipais, com certidão matricial e escritura, são vendidos a outros compradores!
Na realidade, vivemos numa sociedade com todos os ingredientes para dar conosco em doidos! Desde o empreiteiro ladrão que recebe para construir uma casa e fica com o dinheiro, até ao advogado venal e sem escrúpulos que cobra chorudos honorários para não fazer nada a não ser enriquecer à custa de quem trabalha! Os processos que, se forem constituidos, ficam a mofar nos tribunais até prescreverem! A ELECTRA que nos dá com uma factura de 60 contos quando só gastámos 6, e somos obrigados a pagar para não ficarmos sem luz e água! O banco que nos cobra anuidades por um cartão “Visa” que nunca nos enviou e não devolve o dinheiro que abusavamente sacou da nossa conta!
E no meio de tantos abusos, ainda somos sacrificados no altar de uma burocracia dissuasiva e desgastante que nos dá cabo do juizo. Na polícia dizem-nos que não podem agir sem despacho do procurador mas não sabem quando esse despacho vai baixar, e entretanto o gatuno já vai longe e com ele vai o roubo! E somos nós-outros a arcar com os problemas que certas repartições e serviços públicos (às vezes privados) nos criam, obrigando-nos a correr de balcão em balcão, esbarrando, muitas vezes, com informações contraditórias! Funcionários nem-aí gozam com a nossa cara, “escreva uma carta, preencha este formulário, volte amanhã, estamos à procura do seu processo, o seu processo está em estudo, peça audiência com tal diretor (raramente ou nunca disponível!), vai ter que aguardar…”
E de tanto aguardar, de tanto ir e voltar, acabamos vencidos pelo cansaço!
Digam lá se não é de dar em doido todo este estado de coisas! Quantas vezes não fazemos apelo à nossa educação e self control (que tanta falta fazem atrás do balcão, guichê ou secretária) para não perdermos a calma e cometer alguma asneira? Felizmente somos pessoas de brandos costumes – resilientes, como está na moda dizer-se.
A sociedade em que vivemos é, sim senhor, um território fértil para os psicólogos e outros profissionais da mente! Porém, não é de “acompanhamento psicológico” que estamos a precisar – estamos a precisar é que as instituições, repartições e serviços funcionem como deve ser para não nos deixarem malucos! Estamos a precisar de funcionários competentes que não nos tratem como crianças; de profissionais liberais (advogados, empreiteiros, comerciantes…) sérios que não nos metam a mão no bolso por tudo e por nada!
E que ninguém se esqueça: somos todos utentes/clientes, não há funcionário que não precise de outro funcionário!