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Opinião

Dimô*

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Por Rosário Luz

Janeiro de 2020. Dirijo-me ao bairro de Pedra Rolada para tentar perceber a tragédia que acordou a cidade no dia do Ano Novo: a morte de três crianças, da mesma família, na sequência de uma explosão de gás numa casa de tambor. A mãe de uma delas encontrava-se hospitalizada, tal como uma irmã de 11 anos, com queimaduras graves. A avó das três caminhava aos gritos pelas ruas de terra solta do bairro, seguida por um cortejo de familiares e vizinhos, e olhava sem ver os restos carbonizados da explosão. A família tinha ido morar ali havia apenas 3 dias.

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Maio de 2019. A morte de uma menina de quatro anos chocou a mesma cidade. Acompanhada por sua mãe, tinha passado dois meses em visitas sucessivas ao Hospital Baptista de Sousa, enredada num vaivém criminoso, sem que lhe fosse feito um diagnóstico responsável. Foi finalmente diagnosticada com um tumor maligno, mas passou mais dois meses à espera que o Instituto Nacional de Previdência social e o Ministério da Saúde do governo democraticamente eleito do seu país se lembrassem da sua função e a evacuassem com a devida urgência para o exterior. Não resistiu à espera.

Junho de 2018. A morte de uma mulher de trinta anos chocou o país. Tinha dado entrada no Centro de Saúde da Boa Vista com uma gravidez ectópica. O quadro era grave e exigia cuidados clínicos para além dos disponíveis aos cidadãos nacionais residentes na ilha. A paciente tinha indicações médicas para ser evacuada por via área para ilha do Sal; infelizmente, a transportadora à qual o seu Governo cedeu o monopólio de facto dos voos domésticos recusou-se a realizar a evacuação. Foi obrigada a empreender a viagem numa embarcação destinada ao transporte de cargas e não sobreviveu ao trajeto. Deixou dois filhos menores.

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Ao longo dos primeiros 14 anos da República.cv, no dia 05 de Julho, os arautos da Independência celebraram o aniversário da conquista da liberdade, que nos tinha sido usurpada pelo domínio colonial. Nesse período, detinham a exclusividade das celebrações… Mas ao longo dos últimos 28 anos, a 13 de Janeiro, os arautos da Democracia também puderam celebrar, com o mesmo frenesim, o aniversário das primeiras eleições plurais.cv – o evento que, segundo eles, devolveu ao povo Cabo-verdiano a liberdade que lhe tinha sido usurpada pelo partido único.

Nos primeiros 15 anos, entendemos rapidamente que, apesar dos ganhos dramáticos que o país teve com a Independência, o papo de “conquista da liberdade” não representava toda a verdade. Assim como, após 29 anos, e apesar dos ganhos dramáticos que o país teve com a nova Constituição, somos obrigados a questionar os discursos oficiais em torno deste ideal de “democracia” – e a refletir sobre o que estas mortes recentes de mães e filhos.cv nos revelam sobre a qualidade real da nossa.

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Nas sociedades horizontais tradicionais, ninguém tem cobertura médico-medicamentosa; ninguém tem direito a casa de cimento, a eletricidade ou canalização, à educação de qualidade ou a uma pensão. Mas ninguém fala em “pobreza”; porque ninguém tem mais do que ninguém. Para a mente humana, a concepção de “pobreza” não resulta da exiguidade dos recursos ao dispor do indivíduo; resulta da desigualdade da distribuição de recursos entre indivíduos.

Entre as sociedades horizontais tradicionais e as sociedades verticais contemporâneas, a humanidade gramou – e continua a gramar – uma longa temporada de desigualdade que não foi, de modo algum, erradicada pelo advento da democracia. A desigualdade esteve sempre presente nas democracias; e mesmo as democracias contemporâneas mais bem sucedidas não pretendem atingir a equidade na distribuição de recursos que é característica das sociedades horizontais tradicionais. Muito pelo contrário, as democracias mais robustas surgiram precisamente em lugares onde o empreendimento capitalista e a propriedade privada – os grandes produtores da desigualdade – são considerados direitos sagrados.

Mas se a desigualdade não foi erradicada, ela foi progressivamente mitigada pela continuidade democrática, especialmente após as conquistas científicas, políticas e sociais do século XX. Os avanços na ciência e na organização, o alargamento de direitos políticos e o processo de descolonização democratizaram o acesso das populações mundiais à saúde, à educação e á habitação – domínios que passaram a ser considerados responsabilidade prioritária dos Estados.

Com a conquista de níveis cada vez mais elevados de conhecimento e bem-estar por classes, raças e géneros anteriormente excluídos, uma das principais componentes da legitimidade democrática – brilhantemente exemplificada pelas democracias capitalistas do norte da Europa – passou a ser erradicação dos níveis extremos de desigualdade que sucedem naturalmente ao surgimento do conceito de propriedade e à complexificação da sociedade. Esta função é descrita nas garantias das constituições democráticas; e é exercida através da funcionalidade das instituições do Estado.

Os direitos políticos, particularmente o direito ao voto, são largamente vistos como sendo os principais indicadores de um regime democrático. Mas o facto é que a democratização do acesso ao trabalho, à saúde, habitação, educação e segurança não é garantida pelo voto; ela é garantida pela funcionalidade das instituições da República que regem os diferentes sectores da vida do cidadão. O voto não passa de uma ferramenta cujo objetivo é assegurar essa funcionalidade.

As mães.cv também foram beneficiárias das conquistas políticas, científicas e organizacionais do século passado; e, nos dias de hoje, não enterram filhos por falta de higiene pública, vacinas ou alimento. Mas ainda os enterram, vítimas de diagnósticos atrasados, explosões domiciliares e balas perdidas. Enterram filhos mortos por causas  cuja solução lhes é garantida pela Constituição da República e se encontra dentro das nossas possibilidades como Nação. Enquanto isso, as suas patroas deslocam os seus filhos em carros de luxo para escolas privadas, ostentando rios de dinheiro em celulares e sapatilhas de marca, e vão tratar-lhes as unhas encravadas à União Europeia.

As paridas.cv também já não morrem em casa, de hemorragias e infeções; mas ainda morrem fora de hospitais, em barcos de carga no alto mar – também por causas cuja solução lhes é garantida pela Constituição, lhes foi garantida pela organização no Poder, e se encontra dentro das possibilidades do Estado. Enquanto isso, as parturientes da classe dirigente vão ter neném nas estranjas, com licenças de maternidade alargadas e cuidados clínicos de primeira.

Numa democracia funcional, nem toda a grávida tem que ter cesariana marcada, com quarto particular em clínica privada; mas todas têm que ter cuidados de emergência imediatos e eficientes, em caso de complicações no parto. Nem toda a mãe tem que ter casa com piscina ou filhos inscritos em aulas de equitação; mas todas têm que habitar uma estrutura onde os miúdos, devidamente supervisionados, não correm o risco de morrer numa explosão. Nem toda a criança tem que receber o último I-Phone pelo Natal, ou ir anualmente em férias ao exterior; mas todas têm direito a que o Estado faça tudo ao seu alcance para lhes garantir vida e saúde no novo ano. Para não falar em educação e cultura.

Para que uma democracia possa ser celebrada como funcional, ela tem garantir – ou trabalhar com seriedade no sentido de garantir – a todos os cidadãos os direitos que estão espelhados na sua Constituição.  Mas se, após décadas de “democracia”, alguns.cv têm vida de luxo a nível internacional, enquanto outros morrem no início da vida, em explosões na periferia… Se, em vésperas da sua exaltação pelo Estado, testemunhamos a disfuncionalidade sistemática das instituições públicas através das quais essa tal de democracia deveria ser exercida… O que quereremosdizer quando gritamos “Viva a Democracia.cv!” no dia 13 de Janeiro?

A liberdade política e de expressão são pedras basilares de um regime democrático. Pessoalmente, não saberia viver sem elas, porque são as pedras basilares da minha atividade cívica. Mas o direito de falar e votar nunca garantiram por si só o acesso justo dos cidadãos aos serviços que lhe são devidos pelo Estado – por definição, numa democracia. Aliás, o facto é comprovado pelas inúmeras democracias injustas e desiguais espalhadas pelo Mundo afora.

Se o ato de votar não resultar no alargamento e melhoria dos serviços de saúde, educação, segurança e habitação prestados pelo Estado ao cidadão, ele não passará de um exercício vazio, desprovido de significado.  A não ser que tenha impacto sobre a qualidade do Estado, o voto é o junk food da cidadania: um procedimento apelativo, até viciante, mas cheio de armadilhas perigosas e com baixíssimo valor transformativo…

*O título é uma referência ao refrão da canção “Dimocracia”, do álbum “Batuco”, Bulimundo, 1982

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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5 Comentários

  1. Origado mais uma vez Rosário Luz!
    Que alguém escute.
    E para escutar, é preciso ter coragem (não ser covarde), como disse Antónia Mosso.

  2. Cv esta aumentar o abismo entre “políticos & famíglia e os trabalhadores da função publica e do privado .O povo não merece os políticos q tem ( visão estreita) e continuar com a in-cultura do medo em reclamar direitos ,que permite redistribuição do PIB modo de cone invertido . Obrigado Rosario Luz ,por mostrar “este caminho longe ” .

  3. A INDEPENDENCIA E A DEMOCRACIA MATARAM OS CABOVERDEANOS MAIS HUMILDES, HOJE OS CABOVERDEANOS DE SEGUNDA VIVEM MAL, CASA DE TAMBOR EM SÃO VICENTE Á A MAIOR VERGONHA DA REPUBLICA. INDEPENDENCIA SÓ BENEFICIOU UM GRUPINHO DE CABOVERDEANOS BEM IDENTIFICADOS EU NUNCA FESTEJEI NEM A INDPENDENICA NEM DEMOCRACIA E OS MEUS FILHOS NÃO PARTICIPAM EM ATIVIDADES NAS ESCOLAS ALUSIVAS A DATA. CABO VERDE ATRAVESSA UM PERIODO SOMBRIO E DESGRAÇADO DA SUA HISTÓRIA.
    ABAIXO A INDEPENDENCIA. VIVA O POVO HUMILDE DE CABO VERDE. É URGENTE UM REFERENDUM SOBRE INDEPENDENCIA. HOJE PARA VIAJAR PARA OUTRAS ILHAS É UM INFERNO, BILHETES DE PASSAGENS ENTRE ILHAS MAIS CAROS QUE EUROPA PARA CABO VERDE. O POVO DAS ILHAS SOFRE JÁ NÃO AGUENTA MAIS E AINDA COM ESSA PORCARIA DE LEI DE PARIDADE QUE VAMOS ENGULIR NAS PRÓXIMA ELEIÇÕES. PÓXA MÉ!!!!!

  4. Os CVs tem q ser mais Solidários uma com outros , vl-se como num assunto tão sensível descrito neste artigo as pessoas passam de comentar . A historia tem demostrado que os atos desde a humildade laceram a profundeza dos detentores do poder que esquecem o povo . Ainda bem que temos uma da Luz.

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