Por: Alcides J. D. Lopes
Nos últimos dias de janeiro de 2020, finalmente, concluí a redação da tese de doutorado em antropologia e preenchi, desta forma, todos os requisitos concernentes ao ritual da defesa. Destarte, o manuscrito foi impresso, entregue a cada um dos avaliadores internos e remetido aos respectivos avaliadores externos. De acordo com as concertações entre o orientador, ao abrigo do programa, e as diferentes partes, a defesa foi estabelecida para sexta-feira 13 de março de 2020, em Recife, no estado de Pernambuco-Brasil. Na época, não podia-se imaginar que, alguns dias após a referida defesa, a pandemia da Covid-19 provocaria a suspensão de várias dimensões da vida social e, nesse processo, subtrairia profundamente as dinâmicas sociais como tínhamos conhecido até então.
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O desejo de conhecer o continente africano sempre foi amparado, consciente e inconscientemente, por um grande sentimento de mistério. Lembro-me de ter acalentado essa vontade, desde tenra idade, como uma inspiração. Mas, sendo um santantonense – filho da praia de pescadores de Porto Novo – sobrevivente da pobreza por que passava a sociedade cabo-verdiana nos períodos a seguir à independência, as oportunidades que tive, favorecidas tanto pelos sacrifícios de familiares, parentes e amigos, bem como através do estudo patrocinado pelo Estado, levaram-me em direção oposta à costa do continente africano. No meu caso, ilha de São Vicente aos 13 anos de idade e, posteriormente, ao Brasil.
De modo que, em fevereiro de 2020, após um processo profundamente revelador e, entretanto, desgastante de redação da tese de doutorado em antropologia: Sobre Adriças e Cabrestos: o Kola San Jon de Cova da Moura e as formas resilientes da tradição na diáspora africana em Lisboa- Portugal, na qual figuram temas da pesquisa etnomusicológica acopladas aos processos de migração e às estruturas históricas do colonialismo, exploração laboral, associativismo migrante como estratégia contra o racismo estrutural, institucional e intersubjetivo: precisava de férias. As condições para viajar a Senegal, no Oeste do continente, naquele período de tempo intermitente, quer dizer, antes da defesa da tese, pareciam bastante favoráveis.
Dakar: diário de viagem pré-pandemia.
Chegamos a Dakar num voo da Cabo Verde Airlines na madrugada do sábado 22 de fevereiro de 2020. Ao descer do avião podíamos sentir uma aragem fresca e discreta que sabia a um afago. Respirei fundo e senti o resíduo de carbono que caracteriza o ar dos grandes centros urbanos. Ainda assim, preenchi os meus pulmões com o ar saheliano. Segurei-o por um instante e expirei lentamente, enquanto pensava comigo mesmo: “finalmente estou no continente”. O tempo, naquela época do ano, fazia-se sentir bastante quente, principalmente até às quatro horas da tarde. Mas, as manhãs geralmente eram relativamente frias.
O nosso endereço ficava em Fass, um bairro popular situado no sudoeste da capital, integrante do distrito Dakar Plateau. Wakola Hotel fica junto à avenida Cheikh Anta Diop. Uma das artérias principais da cidade que sobe ao norte até Ouakam, beirando o litoral oeste. Naquela área próxima, também se encontram a Universidade Cheikh Anta Diop, os Centros Hospitalares Universitários de Fann e Abass Ndao, várias escolas e liceus, como o Liceu Técnico Industrial Maurice Delafosse e a Universidade Amadou Hampaté Ba. Por conseguinte, estávamos hospedados na área de transição entre uma das comunas (município) mais antigas e tradicionais da cidade, Médina e a Cidade Universitária de Dakar.
Eu e minha companheira, Tans, ficamos hospedados no Wakola Hotel Cheikh Anta, de 22 a 29 de fevereiro. Escassos dias para cumprir o itinerário de visitas que havíamos programado com antecedência, através das pesquisas feitas na internet. Nesta esteira, no mesmo dia em que chegamos, depois de um breve descanso, à tarde fomos conhecer o Monumento da Renascença Africana, situado numa das duas Colinas de Mamelles.
O Monumento da Renascença Africana
A imponência deste monumento estatuário, de aproximadamente 50 metros de altura, desponta através da harmonia produzida por um pai que segura o filho ao alto, sentado no seu ombro e amparado pelo seu antebraço esquerdo. Com o braço direito abraça sua companheira, a qual, por sua vez, aponta para o chão da África igualmente com seu braço direito. Todos olham em direção ao horizonte para o qual o filho aponta, com seu indicador esquerdo, simbolizando o futuro. A escadaria de acesso possui 198 degraus. O monumento é construído de concreto e esculpido em bronze, tendo vários pavilhões na sua base como salas de exposições temporárias e um salão principal cuja decoração é assinada pela fenomenal revivalista do artesanato da tecelagem antiga, Aïssa Dione.
À entrada da estrutura jaz uma placa de bronze assinada pelo presidente em exercício à época da inauguração, onde lê-se:
Message à la jeunesse
Jeune d’Afrique
et de la Diaspora.
Si un jour tes pas te portent
Au pied de ce monument,
Pensé à tous ceux qui ont sacrifié
leur liberté ou leur vie
Pour la Renaissance de l’Afrique
(Abdoulaye Wade).
No primeiro e segundo piso pode-se ver uma apresentação de slides que descreve a história da construção do monumento e um afresco retratando várias fases da história da África e suas grandes figuras, para além de uma variedade de exposições fenomenais. Através dum elevador, é possível chegar a uma altura de quinze andares. Na cabeça do homem, o visitante desfruta uma vista completa da cidade de Dakar e do oceano Atlântico. À direita, é possível contemplar os detalhes da face da jovem africana. À esquerda os detalhes da mão do pai e a face da criança virada para o Ocidente. Nas margens do Atlântico não existe outro monumento estatuário tão imponente.
No final da tarde, assistimos ao sol se pôr na linha-do-horizonte. O local é bastante frequentado e visitado por turistas que chegam de todo o continente africano, como também, do resto do mundo.
Nos dias que se seguiram, fizemos uma viagem através dos portais do conhecimento histórico, artístico, estético, político e cultural do continente, a partir de uma perspectiva holística interna. Assim, pressupondo uma unidade cultural da grande diversidade linguística e de costumes protagonizada pelos diferentes povos africanos que informam a civilização contemporânea, uma grande nação africana que se ergue.
O Museu das Civilizações Negras
Foi esta compreensão que L’arbre de l’humanité transmitiu-nos no pavilhão de acesso ao Museu das Civilizações Negras. No centro do edifício inspirado na arquitetura das cabanas circulares de Casamance, um grande baobab metálico, que perfura o chão, erige-se, através duma estrutura de aço enferrujado cortado a laser e sustentada por parafusos e porcas, com mais de dez metros de altura. A peça é assinada pelo artista e curador haitiano Edouard Duval Carrie (2018).
Trata-se de um projeto que levou mais de meio século para ser concretizado. Desde 1966, época em que Leopold Senghor governava o país, até dezembro de 2018. Senghor é considerado um dos ideólogos envolvidos na criação do conceito Négritude junto com Aimée Césaire. Portanto, mesmo considerando que muita coisa mudou nestas últimas cinco décadas com relação ao pan africanismo, Hamady Bocoum, atual curador do museu, relembra que ali é um lugar de muitos rostos e a proposta inerente ao projeto sustenta uma grande visão angular de uma humanidade in perpetuo moto.
Neste contexto, a proposta do Museu das Civilizações Negras não coaduna com o projeto de um Museu Negro. Antes, relaciona-se com as produções culturais no mundo africano em uma escala temporal magnífica. Desde Toumaï (Sahelanthropus tchadensis), ou Lucy (Australopithecus afarensis, Dinknesh) nossos ancestrais comuns, de sete milhões de anos e de três milhões e duzentos mil anos, respectivamente, até a criação contemporânea. A apreensão desta proposta implica na compreensão de que a África é a mãe de todas e todos nós e que, à certa altura, alguns dos seus filhos deixaram o continente. Nesta escala, a catástrofe produzida pelos quase cinco séculos de colonização moderna é só mais um dos episódios a considerar.
A instituição nunca teve a pretensão de ser um museu cromático, etnográfico, ou antropológico e nem subordinado aos paradigmas museológicos eurocêntricos. Na medida em que entende-se que as civilizações são variadas, complexas e dinâmicas, evitou-se a concepção de exposições permanentes. Entretanto, a afluência de visitantes em 2019 (ano em que se realizaram seis exposições) foi extraordinária, contradizendo assim a tendência dos museus vazios na África Ocidental.
O curador antecipou ao jornal Le Temps: Afrique que um processo de desenvolvimento duma solução digital que permite baixar informações em Fulani ou Wolof no smartphone dos usuários e turistas provenientes de outras partes do continente, além das línguas coloniais como Francês e Inglês, já estava em andamento em 2020. O mesmo também mencionou a frota de transportes públicos do museu e o projeto de facilitação da mobilidade dos moradores dos bairros da grande área de Dakar e outros municípios e distritos do país, no intuito de quebrar o estigma de que as camadas mais populares não se interessam por cultura.
De nossa parte, acreditamos que a inteligência artificial nos ecrãs de telemóveis é a aliada que possibilita uma relação revolucionária pela oralidade e a musicalidade herdadas pelas novas gerações. Percebe-se que quase sempre a tela é usada como um pad onde percutimos as mensagens textuais e que a forma como seguramos o telemóvel para digitar com os polegares, lembra a forma de tocar o Korah. Os usos dados aos iphones e smartphones na gravação e edição de áudios e vídeos tem sido surpreendente, muitas ideias criativas têm surgido exatamente na África.
Durante a visita guiada pelo museu destaca-se a qualidade da informação transmitida pelos guias que também manipulam dispositivos media, numa abordagem que valoriza menos o artefato do que o processo através do qual ele é criado. Transita-se entre várias salas de exposição que abordam temas como: África, berço da humanidade; contribuições africanas ao patrimônio científico, técnico e cultural; a importância cultural e social dos tecidos; mas também, os retratos dos grandes homens e mulheres que fizeram a história da África no continente como no resto do planeta. Numa das paredes do museu pode-se ler:
“Nous sommes tous Africains sur cette planète. Tous les Africains doivent se sentir partout chez eux.”
O Museu das Civilizações Negras está integrado num complexo moderno urbano projetado e executado pela cooperação chinesa e inclui o Grande Teatro de Dakar e a revitalização, bem como a construção de novas linhas, da Gare Ferroviária de Dakar. A região escolhida fica entre a zona portuária e o bairro Ilot Alter. Um ponto de referência próximo e conhecido na cidade é a Place du Tirailleur, onde jaz o Monumento Demba e Dupont.
Para além das estruturas monumentais acima descritas, também visitamos o Institut Fondamental d’Afrique Noire, atual Musée Théodore Monod d’Art africain, ou ainda, como é conhecido, o Museu das Artes Africanas do IFAN, igualmente promovido por Senghor e tido como uma das mais antigas instituições deste tipo na África Ocidental, foi criado a partir de um decreto colonial em 1936.
Na segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020, a cidade de Dakar amanheceu sob uma densa nuvem de poeira suspensa, consequência de uma tempestade de areia no deserto. Naquele dia, os véus usados pelas jovens muçulmanas também cobriam o nariz e a boca, deixando apenas os olhos à vista. Igualmente, muitos homens fizeram o mesmo com seus turbantes ou usavam máscaras faciais, uma premonição?
Museu das Artes Africanas – IFAN
No IFAN, deparamo-nos com exposições, aulas, realização de oficinas nos jardins externos do museu. Crianças aprendendo sobre pigmentos naturais, minerais e reciclagem, vários artesãos em exposição etc. Na ocasião, havia uma série de esculturas do artesão Yahiya Bâ. Entre estas, a peça Les inséparables, retratando um trio de soldados presos a uma mesma base, chama muita atenção e convida a uma reflexão ao genocídio negro perpetrado sistematicamente pelas forças policiais nas periferias e favelas do ocidente.
O museu é um dos departamentos do instituto e a sua proposta é claramente etnográfica. Surge como uma consequência lógica na decorrência de uma organização das pesquisas realizadas na África Ocidental pelo regime colonial francês. Em 1938, o projeto passou a ser dirigido pelo então assistente do Museu de História Natural, o naturalista e humanista francês, Théodore Monod. Atualmente o museu leva o seu nome e conta com um acervo de mais de nove mil peças adquiridas e colecionadas através de uma multiplicidade de formas, desde doações, compras e outros tipos de aquisição.
No seu interior tivemos acesso a uma grande variedade de artefatos e objetos, rituais e artísticos de infinita beleza. Falamos das esculturas em bronze do Benin, painéis de madeira esculpidos do Mali, das portas e escadas Dogon, do casal primordial. Uma infinita variedade de máscaras zoomórficas e de iniciação provenientes de várias regiões do continente, instrumentos musicais como o violon da região de Podor, muito parecido com a nossa cimboa, outros membranofones e cordofones de diferentes tipos, ferramentas em ferro forjado dos Haoussa do Níger, armas ritualísticas, tronos, balafons, ngonis, utensílios de guerra, cerámica e, a meu ver, a atração principal: um Bombolom. Um tronco enorme, oco no seu interior e com uma grande fenda. E daí o nome tambour à fente. Como podemos perceber, os objetos conservados no museu não são provenientes apenas do Senegal, mas sim, de todos os estados que na época anterior a 1960 constituíam aquilo que se chamava de África ocidental francesa.
Eu não serei o primeiro nem o último a afirmar que Dakar guarda muitos encantos, como também muitas mazelas. A cidade sofre com graves problemas de subdesenvolvimento do meio ambiente e infraestruturas urbanas, grandes congestionamentos no transporte. Desde 2010 cogita-se a criação de uma nova cidade administrativa com o intuito talvez de desafogar a grande metrópole que abriga aproximadamente 1.056.000 habitantes. Enfim, os problemas sistêmicos que também assolam as grandes metrópoles e cidades dos países não desenvolvidos como Recife, Bahia, Rio ou Sampa no Brasil; Luanda, em Angola; Lagos na Nigéria; e já assim, Praia, em Cabo Verde, ainda que no nosso caso seja tudo ridiculamente em miniatura, menos a bonança de desorganização, do fragmentarismo sócio político, de outros maus hábitos et cetera.
Durante a semana que passamos em Dakar, escolhemos dois dias para passear pela cidade e arredores. Caminhamos pelos bairros de Fass e Colobane no intuito de visitar o mercado popular HLM e a Praça do Obelisco. Transitamos por ruas sem calçamento, nas quais encontramos vários vazamentos de esgoto. Pode-se notar que a questão da habitação, em vários setores, passa por constrangimentos, falta de investimentos e insegurança. Um estudo recente liderado pelos arquitetos Nzinga Moup e Caroline Geffriaud concluiu que a oferta habitacional na cidade encontra-se particularmente aquém das necessidades de seus habitantes, seja em nível cultural, social ou ambiental. Não obstante, é notável a quantidade de construções em andamento ou inacabadas, nesses bairros. O mesmo pode-se dizer da “frota” de táxis e outros meios de transporte leves que servem a cidade, veículos de segunda mão ou mais velhos, adaptados, alguns sem conforto nenhum etc.
Também caminhamos pelo centro comercial da cidade, visitamos cafés, restaurantes, livrarias, pequenas lojas de tecidos, objetos artísticos, joias e souvenirs. Visitamos o Centro de Documentação e o Arquivo Histórico de Dakar, onde tivemos acesso a revistas, artigos científicos e teses sobre assuntos dos nossos interesses e curiosidades. Enfim, não é possível apontar aqui todas as atividades realizadas. Contudo, para além do lago Retba, conhecido como Lac Rose, da ilha de Ngor e da Ilha de Gorée, visitamos a cidade praieira de Saly Portudal ao sul de Dakar. Experiências que serão compartilhadas com os leitores, oportunamente, em outro texto.
No dia 6 de março regressamos à ilha do Sal, Cabo Verde, onde ficamos hospedados duas noites à espera de um voo para Recife, Brasil. Já na saída de Dakar fomos interpelados e examinados rapidamente por profissionais da saúde no aeroporto. O mesmo aconteceu na entrada e na saída de Cabo Verde. Entretanto, quando chegamos no Brasil na noite do dia 8 de março de 2020, não havia nenhum sinal de inspeção sanitária no Aeroporto dos Guararapes em Recife.
Democracias em Crise: Necropolítica Vs. Desobediência Civil
Um ano, desde o início da pandemia do SARS CoV 2 e a propagação planetária do vírus, levou o mundo aos seus limites. A confirmação de novas ondas de infecção na Europa ocidental, nas Américas e o aparecimento de novas variantes na África do Sul, Inglaterra e Brasil acenderam alertas no mundo inteiro. A esperança alimentada por várias vacinas amanheceu no final do túnel, pelo menos para os países ricos cujos governantes se comprometeram com a luta contra e não a favor do vírus, não sem riscos potenciais.
O mundo acompanhou atônito as diabruras criminosas do ex-presidente norte americano Donald Trump e o seu negacionismo letal que causaram uma crise sanitária sem precedentes naquele país, hoje com mais de 500.000 mortes. No Brasil, Bolsonaro seguiu as pegadas de Trump e, de modo mais troncho ainda, o seu desgoverno continua sendo bem sucedido no empreendimento necropolítico. Na verdade, a mortandade nunca foi tão expressiva como agora, ultrapassando os 3000 casos fatais em 24h, e quase todas as Unidades de Tratamento Intensivas, nos sistemas público e privado, do país estão no limite, enfrentando situações de colapso numa variedade de regiões e capitais. Apesar das 300.000 mortes, especialistas e investigadores da saúde pública informam-nos que a situação ainda vai piorar.
O levante que aconteceu nos EUA em decorrência do asfixiamento até a morte de George Floyd em maio de 2020 por um policial branco de Minneapolis abalou as estruturas da política governamental norte-americana e revelou ao mundo um presidente xenófobo, racista e pouco inteligente cuja derrota nas eleições foi exemplar. O movimento Black Lives Matter ecoou pelo mundo e suscitou manifestações em várias capitais.
Na Nigéria, em 7 de outubro de 2020, grupos de jovens irromperam em protestos exigindo o desmantelamento de uma notória unidade policial: o Esquadrão Especial Anti-Roubo (Sars). Apesar da dissolução do esquadrão, os manifestantes insistiram em reformas mais amplas na forma como a Nigéria vem sendo governada. Com um discurso que afirma defender os interesses dos jovens que protestavam, mas insinuando que eles haviam sido sequestrados por forças sociais que não defendem nem seus interesses nem os do país, em 27 de outubro o presidente nigeriano Muhammadu Buhari comunicou a morte de 69 pessoas em decorrência dos embates violentos na capital Lagos, na sua grande maioria, os jovens que protestavam.
No início de março de 2021 foi a vez dos protestos explodirem em Senegal, também com mortes. Tudo aconteceu após a prisão de Ousmane Sonko, líder da oposição ao presidente Macky Sall. Em artigo de opinião, Felwine Sarr, economista e pensador senegalês, organizador do aclamado projeto co-criado com Achille Mbembe, Les Ateliers de La Pensée (Dakar e Saint-Louis), alerta que a “manobra” que desencadeou os protestos faz parte de um repertório recheado de mazelas políticas abundantes na África Ocidental. Sarr lembra que vivemos uma série de desapropriações democráticas nos últimos anos e é nesse ciclo que devemos nos concentrar. “Trata-se de não nos deixar privar da capacidade de configurar nosso destino coletivo.”
Na sua sábia análise, Sarr derrama luz sobre os perigos que ameaçam a democracia e espreitam uma devolução monárquica de poder, as inúmeras tarefas que o estado deve protagonizar para garantir o bem-estar das vulneráveis populações senegalesas. Chama atenção para aqueles que exercem o poder, que este foi confiado por um tempo determinado. Reconhece que a salvação da democracia e a integridade da nação jazem nas mãos da justiça. Mas também, na vigilância e no compromisso dos cidadãos, em defender a ideia que se tem daquilo que a comunidade deve tornar-se e finaliza com um apelo: “Para além da batalha actual por uma verdadeira democracia e justiça imparcial, teremos de descer seriamente à construção de uma verdadeira alternativa social e política e, assim, reconstruir a nação senegalesa.”
Autor de Afrotopia (2016), Felwine Sarr é defensor determinado de que os africanos devem dominar as narrativas sobre si próprios e tomar as rédeas dos termos nos quais suas instituições e economia operam. É co-autor, em parceria com Bénédicte Savoy, do relatório “The Restitution of African Cultural Heritage: Toward a New Relational Ethics”, encomendado por Macron em 2018. No seu argumento afro realista, em alternativa ao afropessimismo e à afro euforia, transmite-nos um mar de confiança sobre um projeto novo e renovado da Humanidade em permanente construção.
tchida.pesquisa@gmail.com (músico e antropólogo, PhD)