Por: Alcides J. D. Lopes
Distopia, cacotopia ou antiutopia é qualquer representação ou descrição, organizacional ou social, cujo valor representa a antítese da utopia ou promove a vivência em uma “utopia negativa” (Wikipédia).
Os tempos vividos atualmente são funestos e desonestamente letais. A potência de vontade que consubstancia este texto pondera sobre o fenômeno da morte, o desastre escatológico que enfrentamos no quotidiano e, sobretudo, a extrema precaução e seletividade no exercício dos direitos à circulação e à respiração.
Há mais de um ano, a mídia global anuncia e comenta, a partir de dados e variáveis estatísticos diários, semanais e mensais, sobre uma montanha apocalíptica de vítimas fatais da SARS-CoV-2. Lembro-me do sentimento de tristeza e da reação desesperada perante a surpresa tragicamente indesejável que inundou as redes sociais de depoimentos e tristes lamentações, nos finais de março de 2020, quando a Itália aproximava-se então das mil mortes diárias.
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Lembro-me igualmente que um mês e meio após a tragédia italiana, o Brasil rompeu pela primeira vez, na terça-feira 19 de maio, a marca das mil mortes diárias, sem aquela comoção coletiva anteriormente demonstrada. Na ocasião, uma análise da Folha de São Paulo chamava atenção para a presença da Covid 19 no país e avaliava o seu potencial destrutivo com relação ao registro de mortes causadas por outras doenças, homicídios, acidentes e outras tragédias. Através das comparações estabelecidas com outras causas implicadas diariamente nas taxas de mortalidade registradas no país, na época, já se constata que, entre estas, as fatalidades decorrentes da pandemia já lideravam com o maior registro de mortes em 24h.
O Brasil era então o terceiro país do mundo na liderança dos casos da doença, perdendo somente para os EUA e a Rússia, e o sexto no número de vítimas mortais. Contudo, a pandemia já vinha causando estragos em vários países da Europa, nomeadamente na França e Inglaterra, os quais tinham também ultrapassado um milhar de vítimas diárias.
Incrédula e gradativamente assustada, a sociedade foi sendo exposta a um bombardeio difuso de informações contraditórias num fluxo contínuo e intenso. Indubitavelmente, o maior responsável até hoje por ter desencadeado este processo caótico no qual nos encontramos no início de abril de 2021 é o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro e o seu desgoverno, como oportunamente ilustra a bióloga e divulgadora de ciência Natália Pasternak.
Desde o início da pandemia, Bolsonaro, sob o pretexto inicial de que a mídia estava usando as mortes ocorridas na Itália, afrontou os governadores dos estados, criticou o fechamento das escolas, do comércio e cobrou da sociedade brasileira “a volta à normalidade”, mesmo em meio a pandemia da Covid 19. Poucas pessoas devem lembrar-se deste episódio prontamente e não seria por falta da indignação e repúdio manifestados por parlamentares, profissionais de saúde, oposição e até aliados. Antes, seria porque casos esdrúxulos como aquele pronunciamento tornaram-se horrivelmente corriqueiros durante o distópico ano de 2020.
Usando um repertório de grosserias, insultos e inverdades, o presidente chamou a pandemia da Covid 19 de “gripezinha” uma série de vezes. Disse que quem ficava em casa, ou seja, quem pratica isolamento social, é “boiola”. Zomba do suicídio e das imensas mortes causadas pelas infecções decorrentes do vírus e, enquanto minimiza a gravidade da doença, passa para a população mensagens contraditórias às orientações das autoridades de saúde. E pior, incentiva explicitamente a automedicação através do malogrado Kit Covid. Um procedimento fraudulento adotado por um médico francês (Raoult), apoiado por Trump e que ecoou tenebrosamente no governo Bolsonaro.
Nos EUA, no início da pandemia, nomes de peso como o imunologista Anthony Fauci, considerado um dos melhores especialistas mundiais em epidemias, com experiência e credibilidade por ter servido nos governos de Reagan a Biden, divergiu em várias ocasiões, das opiniões do então presidente Trump com relação ao uso da hidroxicloroquina e outros medicamentos no tratamento precoce dos sintomas da doença.
Fauci defendia categoricamente o isolamento social rígido em todo o território estadunidense, quando o número total de mortes era aproximadamente 16.000. As suas posições renderam-lhe admiradores, adversários e inimigos. A partir de abril de 2020, após receber sérias ameaças, foi marcado como alvo de aliados de Trump. Por este motivo, teve que ser assistido por nove agentes secretos na manutenção da sua segurança pessoal, segundo a BBC.
As críticas mais severas à atuação de Fauci vieram dos setores da mídia conservadora estadunidense e o seu teor não ocultava o fato de estarem ao serviço do deus mercado. Em várias situações a quarentena foi equiparada a um suicídio nacional no discurso de comentaristas e jornalistas.
O jornal online vox.com, numa edição do dia 8 de junho de 2020, publicou uma reportagem, na qual assumia de maneira plena o erro de Trump na resposta à pandemia da Covid-19 na medida em que o número de mortos ultrapassava a primeira centena de milhares. O autor, Cameron Peters, aponta uma variedade de razões para explicar a situação que na época já se assumia como catástrofe, sem imaginar entretanto que, um ano depois, aquele monte de corpos significaria apenas um quinto das mortes no país.
Ele apontava, na época, para uma resposta nacional corrompida e com graves atrasos a nível federal. Criticava a atitude de “pensamento positivo” com relação à letalidade do vírus e a marginalização de experts, por parte do governo Trump. Denunciava uma campanha protagonizada pela Casa Branca com objetivo de jogar a culpa dos erros da administração de Trump noutras pessoas e queixava-se do tempo e energia despendidos na perseguição de falsas esperanças baseadas em ciência pobre.
Portanto, o negacionismo trumpista ganhou os holofotes desde o início da pandemia e veio acrescentar mais congruência ao terra planismo, aos movimentos anticiência e antivacina, ao neopentecostalismo transnacional, ao supremacismo branco, como também a uma miscelânia de radicalismos e extremismos contemporâneos.
O investimento numa estratégia deliberada para desviar a atenção [para a China, por ex.] da resposta internamente inadequada à pandemia, agravado pelo episódio racista envolvendo a morte de um homem negro perpetrado por um policial branco, provocou um levante generalizado de protestos e motins não vistos nos EUA, desde a década de 1960. Hoje, o país suporta uma perda de 565.500 vidas e várias cicatrizes recentes que precisam ser curadas num futuro próximo.
Entretanto, um flashback do dia 9 de março de 2020 revela-nos o presidente do Brasil assumindo uma postura negacionista ao afirmar que o poder destrutivo do vírus estava superdimensionado. Na ocasião, Bolsonaro cumpria agenda presidencial em Miami, encontrou-se com o senador republicano da Flórida, Marco Rubio, enquanto participava da abertura do Seminário Empresarial Brasil Estados Unidos.
Parece lógico supor que naquela época a atitude de Bolsonaro tenha sido sintomática, tendo em vista que imitava quase tudo o que Trump fazia. De fato, o presidente norte americano tinha passado semanas minimizando as mortes que a Covid-19 vinha causando de forma agressiva, mas, dois dias depois das declarações de Bolsonaro em Miami, o próprio Trump mudava de tom com relação ao assunto, durante um pronunciamento à nação, na noite de 11 de março e suspendia as viagens provenientes da Europa, por um mês.
Hoje, quando olhamos do lado de cá do muro de corpos mortos amontoados pelos dois maiores países das Américas, percebemos que as aspirações em elevar o alcance necro político do governo norte americano esbarraram, várias vezes com (ou foram absorvidas pela) força tarefa da Casa Branca, liderado por Fauci. Não podemos deixar de notar que embora Trump tenha deixado o governo, Anthony Fauci continua sendo consultor médico do presidente Biden e alerta que existe grande probabilidade da variante brasileira originária da Amazónia tornar-se dominante, devido ao seu alto grau de transmissibilidade. Assume-se como um dos defensores do “lockdown total” que nunca se fez no Brasil.
Na medida em que Trump mantinha uma estratégia de comunicar intenções deliberadamente enganosas e totalmente falsas, conseguia atrair as atenções para um determinado tipo de espetáculo sinistro e perversamente racista. Através de atitudes grotescas e pronunciamentos deselegantes com relação aos países africanos, mesmo sobre os imigrantes e os grupos racializados nos EUA, atraía a base conservadora e os fundamentalismos contemporâneos de direita. Depois de instaurado o ambiente distópico, qualquer fagulha de bom senso emitida pelo presidente, por mais ilusória que fosse, era interpretada como uma luz no fim do túnel.
Mas, o projeto (de morte) de Jair Bolsonaro é diferente
Sempre pensei que a classe política, a classe empresarial e as elites reacionárias acreditaram que Bozo seria a tal “bucha” para estancar a “sangria”, a qual, Romero Jucá (PMDB-RR) referiu-se ao queixar-se a Renan Calheiros (PMDB-AL) e a outro político conhecido no famoso áudio vazado em 2016. Entretanto, para compreendermos a missão do messias, preconizada numa esteira de enxofre, precisamos de um flash back mais ousado.
O cenário remete, portanto, ao primeiro discurso de Aécio Neves após a derrota sofrida nas eleições presidenciais de 2014. Naquela quarta-feira, dia 5 de novembro, o senador do PSDB-MG prometeu uma oposição incansável, inquebrantável e intransigente, enquanto reivindicava que o PT era, na verdade, um grupo criminoso.
Na realidade, o que se seguiu para todas e todos que assistiram foi uma tremenda cachorrada à brasileira contra a dignidade inabalável do povo brasileiro: das Marias, Alziras, Aïshas, mães de família de cor que ainda hoje trabalham em casas de família e se emaranham em barganha com a morte hipôsmica e mensageira de flagelos excruciantes. Dos Josés, Andrés e Rosaldos que nestes dias ensolarados, mas, sombrios, assistem petrificados o vôo rasante da poesia última que nos espreita.
Quando olhamos para a última campanha política da presidenta Dilma percebemos que uma das principais preocupações, senão a maior, era a manutenção dos benefícios sociais. Apesar de, no seu governo, ter alcançado um dos menores índices de desemprego na história do país, percebia-se na população, o temor de perder os avanços sociais tão duramente alcançados. O triunfo de Dilma nas urnas foi manchado por publicações racistas e agressivamente mesquinhas feitas nas redes sociais por moradores do centro-oeste do país contra os eleitores do nordeste. Começava assim, um movimento influente que seria decisivo nas concretizações do golpe de 2016 e da estranha eleição de Bolsonaro em 2018.
Das insinuações proferidas pelo derrotado e desmoralizado Aécio até a construção ostensiva de um discurso em torno da noção vendida de “organização criminosa”, em detrimento de partido político, ao referir-se ao PT, a sociedade brasileira não viu passar muito tempo. Através de uma abordagem crítica das políticas sociais e criminalizadora das associações comunitárias de base (comumente conhecidas como ONGs), as forças da oposição denunciaram “o dramático aparelhamento da administração federal, tomada de assalto por ativistas e amigos do poder”.
Por incrível que pareça, o desatino produzido pela associação entre empresas privadas, imprensa e poder público, com o fito de enganar o público, como demonstra Jessé de Souza, produziu reações e, de repente, numa configuração político-performática, velhos “santos de barro” começaram a fazer de tudo para colocar chifres na testa de barbincor. Assim, acusações como o estabelecimento do compadrio como norma básica de conduta e funcionamento da máquina pública; a corrupção endémica nos labirintos do poder público; o envolvimento em grandes escândalos financeiros tão usuais ao repertório da elite do atraso, passaram a ser imputados a um frankenstein apelidado de quadrilhão e em cujas veias supostamente fervia o lulopetismo.
A convenção realizada pelo PSDB-MG em 2015, na qual Aécio Neves foi reconduzido à presidência do partido, eu diria quando ele armou a sua própria fogueira, foi marcada por acusações contundentes de Neves e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Naquele evento, bradou-se aos quatro ventos que escândalos de corrupção caracterizavam um “vale tudo” na manutenção do poder por uma “quadrilha criminosa”. Escorando-se em mentiras e acusações confusas, FHC falava então de “um mal estar no país,” o qual corria o risco de parar tudo e não se furtava de declarar que o PSDB estava “pronto para governar” e, num impulso suicida, jogou todas as suas fichas na Lava Jato e prometeu avançar com as investigações sobre a corrupção na Petrobras.
Ao meu ver, este é o tipo de conversa que as raposas teriam para coordenar o bom rumo do ataque ao galinheiro. Entrementes, se as raposas falassem, se falassem a mesma língua e se fossem hábeis o suficiente para driblar as próprias e astutas armadilhas…
Na realidade, a coisa descambou. Os falsos moralismos e a manutenção de aparências pelos fariseus de plantão foram apropriados pelo que há de mais ignóbil e inefável da sociedade brasileira: forças corruptas calejadas na alma racista, fascista, homofóbica, misógina, classista, estupidamente ignorante, iletrada e totalmente inculta. A imaturidade da sociedade brasileira na gerência das suas próprias crises desconstruiu ideologicamente e rompeu com todas as boas práticas associativas e cooperativas que poderiam garantir um desfecho diferente. O sofrimento que todas e todos nós padecemos atualmente e o fosso sem fundo de incertezas e falsidades no qual estamos jogados falam por si.
E como o próprio Lula da Silva disse há alguns dias, numa entrevista inusitada ao Reinaldo Azevedo, ao falar dos exageros [erros] do processo de desoneração e ao lembrar que a taxa de emprego no final de 2014 era de 4.3%: “a Dilma teve [como presidente da Câmara] o Eduardo Cunha, quem, a cada coisa que a Dilma mandava, colocava uma bomba relógio junto” e mais a frente, desabafa: “o que derrubou a Dilma foi a mentira escandalosa da pedalada” e, como o próprio Reinaldo reconhece, num governo de três anos, Bolsonaro já cometeu 28 pedaladas fiscais.
Ainda que fossem somente as pedaladas de Bozo
No dia 17 de abril de 2016, durante uma das sessões de votação, relativas ao processo de impeachment da presidenta Dilma, ocorrida no plenário da câmara dos deputados, um parlamentar fez declarações apologéticas a um conhecido torturador da Ditadura Militar no Brasil, o coronel C. A. B. Ustra, o mesmo que comandava o órgão repressor DOI-CODI de São Paulo, entre 1970 e 1974, período em que Dilma Rousseff esteve presa na capital paulista. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) reagiu prontamente e o Conselho de Ética da Câmara abriu processo contra o deputado.
Todo o processo de impeachment movido contra a presidenta Dilma foi denunciado como uma farsa em várias instâncias. Rousseff foi julgada e afastada sem que sobre ela pesasse qualquer suspeita de enriquecimento ilícito e corrupção. Naquela noite de abril de 2016 assistiu-se à perda do decoro, da vergonha e do brio. A democracia naufragou numa tempestade artificialmente programada para favorecer o golpe, um dos capítulos mais vergonhosos e degradantes da República.
Dos seus algozes, quarenta deputados dos que votaram pelo “sim” eram réus em ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF), investigados por crimes como lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e desvio de verba pública. Número simbólico, se o associarmos ao destino fatídico de Eduardo Cunha, o então “homem de bem” presidente da câmara dos deputados, cassado, condenado e preso ainda naquele ano. De quem, não se ouvia mais falar. Uma peça jogada e descartada. Apareceu recentemente na Veja prometendo a publicação de um livro sobre os bastidores onde o correto e digno é ele. Depois dele, eventualmente, vários casos política e criminalmente tragicômicos ocorreram entre os quarenta.
Foi assim decretado, de forma abrupta, o “fim” do governo do Partido dos Trabalhadores
Em 2010, deu às bancas uma obra organizada por um dos mais importantes sociólogos brasileiros, Francisco de Oliveira (1933-2019), o sociólogo do trabalho Ruy Braga e a socióloga Cibele Rizek: Hegemonia às Avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira, uma coletânea de ensaios orientada pela perplexidade diante de políticas adotadas por forças cuja vitória foi tão aguardada por países como a África do Sul e o Brasil. A capa é ilustrada com uma foto de Luiz Inácio Lula da Silva e Nelson Mandela tendo uma conversa agradável.
A obra inaugura o debate histórico sobre o lulismo e carrega, a meu ver, um dos germes incompreendidos da predatória trajetória do antilulismo e do antipetismo no país e na diáspora. Evidentemente, refiro-me aos debates no campo da sociologia política brasileira que acompanham todo o trajeto dos dois mandatos do presidente Lula, mas que tomam caminhos perigosamente sinuosos a partir da reeleição da presidenta Dilma.
Não é novidade alguma o fato de existir um ressentimento em torno da romantização de “um verdadeiro momento de esquerda”, majoritariamente idealizado a partir da utopia aristotélica “a busca do bem comum”, amparado pelos valores cívicos, republicanos, democráticos e, sobretudo, como bem sublinha Chico de Oliveira: “sem esperar milagres.” Portanto, no seu ensaio “O avesso do avesso”, que encerra a obra citada, o sociólogo recifense faz questão de ratificar nunca ter presumido que “Lula recebeu um mandato revolucionário dos eleitores e sua Presidência apenas se rendeu ao capitalismo periférico”.
Entretanto, reconhece que “o mandato era intensamente reformista no sentido clássico que a sociologia política aplicou ao termo: avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição de renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo”.
O sociólogo é taxativo quando destaca que os resultados são o oposto dos que o mandato avalizava. Na sua crítica menciona desde o eterno argumento do apoio parlamentar para operar as devidas reformas sem que o país ficasse ingovernável. Aborda a necessidade de governar a sociedade brasileira em concurso com o atraso sob o argumento de que a estrutura social que sustenta o sistema político é conservadora e não avaliaria avanços programáticos mais radicais. Toca no caso da abolição da escravatura pregada por radicais mas realizada por conservadores e sustenta que não foi a abolição que derrubou a monarquia, mas a expansão econômica violentíssima na virada do século XIX para o século XX.
Entretanto, com relação à história mais recente, faz menção à suposta cópia que Getúlio Vargas fez da famosa Carta del Lavoro, reconhecendo que a sua ousadia possibilitou a consolidação das leis trabalhistas brasileiras muito além da legislação italiana. Não se furta de alertar que a “revolução constitucionalista” de 1932, atualmente emoldurado com galas de avanço – a fundação da USP -, na realidade foi um movimento para barrar o avanço das leis reformistas e reforçar a “vocação agrícola do Brasil”. Tudo isto porque “Vargas fez São Paulo engolir goela abaixo um programa industrializante, reformista e socialmente avançado.”
Na ocasião de uma entrevista concedida ao programa Roda Viva na TV Cultura em julho de 2012, Oliveira destaca que a grande maioria das instituições do Brasil moderno é varguista. Porém, reconhece que o golpe de Estado de 1964 na realidade realizou o programa capitalista em suas formas mais violentas. Ou seja, a estatização promovida pela ditadura militar foi através da utilização do poder estatal coercitivo no enfrentamento das resistências das burguesias mais “avançadas”.
Neste contexto, o autor traça uma linha de análise desde Sarney a FHC. Oliveira lembra-nos que Fernando Henrique Cardoso foi mais longe do que Thatcher por ter privatizado praticamente toda a extensão das empresas estatais, o que significa uma transferência de renda magnânima. “Essa turma se desfez do melhor da estrutura do Estado, longamente criada desde os anos 1930, cortando os pulsos num afã suicida sem paralelo na história nacional”, afirma Oliveira. Mais uma vez, São Paulo e seus ideólogos desempenharam um papel importante no outcome. Uma história interessantíssima a de FHC e seus tucanos, hoje banqueiros. A política econômica utilizada como reserva de caça, através da manipulação do fetiche da moeda estável, retirou do Brasil a capacidade de fazer política econômica.
Para que possamos levar em consideração as disfuncionalidades históricas do estado brasileiro, precisamos apreender uma procura pela ordem mesmo na iminência do caos social, mesmo que esta ordem seja necessariamente incorporada em traços paradoxais. Chico de Oliveira procura esclarecer esta contradição quando afirma que o Brasil é uma síntese da modernidade mais avançada e do arcaico mais atual: o ornitorrinco. O professor de sociologia, aposentado compulsoriamente pelo AI-5, acreditava que “o norte é a soma das forças da sociedade para mudar-se.” Defendia que todos os países têm no seu DNA um componente inescapável de violência e o papel da esquerda é civilizar o capitalismo, domar as forças arbitrárias do capital.
Deste modo, argumenta que os dois mandatos anteriores dos tucanos e a saga de privatizações operaram um giro do qual Lula seria prisioneiro. Oliveira destaca: “com a peculiaridade de que Lula radicalizou no descumprimento de um mandato que lhe foi conferido para reverter o desastre de FHC. É nesse contexto que opera a hegemonia às avessas.”
O mecanismo
Iniciei este texto com a afirmação de que os tempos vividos atualmente são sombrios e desonestamente letais. Não restam dúvidas. Somente no dia 7 de abril pereceram 3.733 novas vítimas, dias antes tinham sido mais de 4.000.
Pense comigo, as mortes ocorridas no dia 7 de abril, por exemplo, em território nacional brasileiro correspondem a 32% do número total de vítimas mundiais computado no mesmo dia. Isso significa que, de cada 3 pessoas mortas no planeta, uma é brasileira. Neste ritmo, a mortandade compara-se com a dizimação de uma cidade de 18.000 habitantes em menos de cinco dias. O oblívio. Esta média não significa um pico, mas antes uma elevação de nível, algo mais parecido com um imenso planalto de corpos mortos.
O mundo tem estado com os olhos postos no país desde que a orquestração dum mecanismo sabotador fez a sociedade acreditar que num Brasil de gente séria, honesta e “do bem”, as classes dominantes transformaram-se em gangues no sentido preciso do termo e que estas gangues estavam todas subordinadas a um único chefe, um torneiro mecânico pernambucano. Mas, como foi possível tal mágica? Mágica sim! Pois, só podia ser mágica e nada mais. Então, que outra coisa levantaria dos mortos manifestantes anti-comunismo, 40 anos depois da sua queda? O racismo, o classismo, o fascismo, uma tremenda ignorância histórica e a falta de empatia e respeito. E as dancinhas coletivas, alguém se lembra?
O esvaziamento das lideranças dos movimentos sociais e a prática sistemática, mas dissimulada, de atitudes comportamentais baseados em valores sociais segregativos não são eventos difusos nem aleatórios. São antes, tendências fascistas e autoritárias que surgem num contexto global. O retrocesso do operariado formal em detrimento do crescimento da informalidade, apontado por Oliveira, hoje não deixa dúvidas quanto ao seu alcance planetário.
O fato de a grande mídia despender atenção numa base quotidiana com notícias sobre investigações, depoimentos e prisões de banqueiros, empreiteiros, financistas, executivos serviçais e policiais associados nunca deveria ter sido interpretado como uma novidade em baixo do sol. A percepção social de que finalmente as impunidades longamente praticadas no meio político empresarial começaram a ser corrigidas foi desde o início enlatada. Com o passar do tempo ficou explícita, para parte da sociedade brasileira, o foco exclusivo na perseguição da pessoa do presidente Lula e sua família, enquanto absurdos aconteciam sob a efígie das delações premiadas.
Entre a consumação do impeachment da Dilma e a prisão de Lula muita água correu por baixo da ponte sobre a qual se construiu o golpe. Mas, uma coisa deve ser levada em conta, como aponta Lesbaupin, professor da UFRJ: a prisão de Lula transformou-o numa referência fundamental, colocando-o no centro da disputa, do quadro político atual brasileiro. Pois, segundo o sociólogo, o golpe nunca ganhou crédito no exterior e, o mais importante, a mídia internacional considera que Dilma foi derrubada, como também, não compra a história de responsabilidade criminal por parte de Lula.
Não podemos esquecer que a mídia nacional, por sua vez, desempenhou papel preponderante na implementação do programa dos golpistas. Neste contexto, o massacre econômico a que foi submetida a população, ainda no governo Temer, através do desemprego e precarização do emprego, diminuição dos salários, redução dos recursos para o SUS e a educação pública, ainda foi superado pelo governo Bolsonaro, o qual já quebrou todos os recordes das piores governações que o país já teve.
Todos os veículos disponíveis no momento sofrem um congestionamento de informações sobre Covid-19. Grande parte deles concordam pelo menos que o país transformou-se num covidário, ou seja, um berçário de variantes. As agendas estão repletas de noticiários e debates infindáveis que abrangem desde planos inexequíveis de distanciamento social vs. isolamento total; discussões sobre distância social e distância física; a explicação de que 6.000.000 de desalentados é o número de pessoas desempregadas que perderam a esperança de encontrar um emprego; rodas de conversa sobre corrupção; nepotismo e encostos que não surpreendem mais, mas aborrece muito; um mural digital de obituários de famosos e gente comum; uma crítica do presidente do senado sobre a falta de coordenação dos entes federados; a grande falha da interrupção do auxílio emergencial; países vizinhos fecham fronteiras; apagão de médicos nas UTIs; empresários vacinados com soro fisiológico a 600 reais a dose; piora no colapso da saúde a nível nacional; a triplicação dos números sobre a pobreza de 9.000.000 para 27.300.000; as críticas às vacinas de memória imunológica muito curta; crimes ambientais que remontam sob abrigo de um ministro do meio ambiente que anda de mãos dadas com madeireiros, garimpeiros ilegais e outros perpetradores; e, finalmente, vem aí a CPI da Covid, prontamente apelidada de CPI do Genocídio.
Enfim, podemos perceber que a distopia, gênero literário que emerge como dispositivo de análise radical da sociedade, cujo objetivo é problematizar os efeitos de barbárie que se manifestam em determinado tecido social, é real. Os processos de uma devastação perversamente arquitetada da vida humana e de todas as suas formas, da cultura e da dignidade humana, das riquezas e das instituições do país provocam sentimentos múltiplos. Desde o medo, a raiva, o nojo, a indignação, até a mais surpreendente apatia e indiferença, que, por vezes, parecem uma forma de cumplicidade silenciosa.
Músico e antropólogo, PhD. Email: tchida.pesquisa@gmail.com