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Carta aberta à juventude cabo-verdiana: Crítica protesto

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Por: Alcides Lopes (PhD)

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A estrada é longa e pedregosa, mas a luta há de ser vencida.

Uma estátua, na França, homenageando um dos maiores responsáveis pelo sequestro dos direitos humanos de milhões de africanos recebeu atenção do Estado francês e, deste modo, um cidadão foi multado em mil e tantos euros por tê-la atingido com tinta vermelha. O francês, com ascendência africana, Franco Lollia é ativista filiado à Brigade Anti-Negrophobie. Parece inacreditável, mas aconteceu há poucos dias.

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Ele foi multado por “desfiguramento de propriedade”, ou seja, a estátua de um antigo traficante de escravos criador do notório “Código Negro” de Colbert, o qual permitia que os escravos fossem marcados, tivessem suas orelhas cortadas e fossem executados por tentativas de fuga. Ele argumenta veementemente que o seu ato é um ato de protesto político. O tribunal de Paris ordenou que o porta-voz da brigada militante anti-negrofobia pagasse uma multa de 500 euros e uma indenização ao parlamento francês de 1.040 euros.

Curiosamente, no Brasil, o governo, em meio aos escândalos envolvendo a tal da Covaxin  (contrato condizente com um agouro ‘cova sim’), entre os superfaturamentos, o caso do “Um dólar de propina por dose” e as baixas no campo da batalha que sangra e verte não só a seiva da floresta amazônica, anunciou que a taxa de fornecimento de energia da bandeira vermelha terá um aumento de mais de 50%. Isso, sem mencionar que, de acordo com especialistas, o país estará sujeito, nos próximos meses, a enfrentar a maior seca dos últimos 90 anos. Estruturas monstros, tais como as hidrelétricas, as usinas termelétricas, por sua vez, serão ativadas. Estas utilizam combustíveis fósseis nas fornalhas e isso causa grande impacto no meio ambiente e encarecem a produção de energia.

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Amordaçada pela apatia, a população que continua a ser mortificada na estabilidade de altas taxas de infecção e letalidade, divide-se entre aquelas pessoas que procuram ativamente por uma segunda dose, mesmo em meio às suspensões, carência e descontinuidade nos fornecimentos e aqueles que não querem ser vacinados, não usam máscaras e estupidamente passeiam convencidos ainda de um ‘mito nú com o centrão à mostra’ (risos). Muitos insistem em agredir funcionárias que os alertam sobre o uso correto da máscara. É incrível andar pelas ruas e ver as pessoas se comportando como se tudo estivesse “normal.” 

A naturalização do mal ou da morbidade, da maldade e da fealdade político-sócio-espiritual saiu das telas sensacionalistas dos canais religiosos e vadia pelas ruas, não importa como, quando, nem onde e é um fenômeno generalizado.

Além de ter que deixar Ricardo Salles ir, muito embora (aplausos e ovações!) pelo alívio dos povos originários, das árvores, toda a flora e a fauna amazônica, o governo viu-se forçado a autorizar uma operação de codinome ‘Omama’. A Comunicação Social da Polícia Federal em Roraima informou ao público que no dia 29 de junho, dia de São Pedro, que a PF, o Exército Brasileiro (EB), a Força Aérea Brasileira (FAB), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Força Nacional (FN) deram início à Operação Omama (entidade que deu origem ao povo Yanomami), a qual tem por objetivo desenvolver ações de combate à mineração ilegal na terra indígena Yanomami, com a desintrusão de garimpeiros e a proteção aos povos originários daquela região. 

Foram realizadas incursões estratégicas em diversos garimpos, com apoio de aeronaves, equipamentos e tropas especiais, visando apreender e inutilizar maquinários, aeronaves, insumos e outros materiais utilizados na extração de ouro. As terras Yanomami são as maiores do Brasil pertencentes aos povos originários e são igualmente as mais vulneráveis. 

Um dia antes da deflagração da operação Omama, Maju, âncora do Jornal Hoje da Globo, chegou a noticiar, na edição do passado dia 28 de junho, que crianças yanomami morreram com sintomas parecidos com os da Covid-19. Todos estes eventos, por incrível que pareça, ressoam a mesma áurea das devassas extrativistas que alimentam a besta há séculos. 

“Nada de novo debaixo do Sol,” afirmava o Rei Salomão. Se, por um lado, o Estado francês garantiu a proteção da estátua do branco traficante de escravos, por outro lado, como bem respondeu o Ministério da Saúde da República Federativa do Brasil: “serão averiguadas se as denúncias sobre as crianças Yanomami, mortas com sintomas da Covid-19, são verídicas.” 

De vez em quando, pego-me a matutar sobre os destinos e a imponderabilidade de um estrangeiro que sempre carrega o karma daquele que nunca chega e que, ao mesmo tempo, está sempre na iminência da partida. Durante as duas décadas em que vivo no Brasil, pelos lugares que tive o prazer de conhecer de Rio Grande do Sul às águas Wari, do litoral atlântico à Sertânia, onde quer que os encontre, os povos originários vivem como estrangeiros na sua própria terra, aquela, inteira, que lhes pertence por direito. 

Intelectuais indígenas é uma expressão que a academia brasileira começa a lidar com mais normalidade, somente a partir de meados de 2010. Não que faltasse intelectuais entre os povos originários. Data do século XVII o reconhecimento de Guaman Poma de Ayala sobre a sabedoria oral dos povos ameríndios:

 “Indio astrólogo-poeta que sabe del vuelo del sol y de la luna, y eclipse y de las estrellas y cometas – día domingo mês y año de lós cuatro vientos del mundo para sembrar la comida desde antiguo”.

Referimo-nos, portanto, ao intelectual da oralidade, ao sábio da cosmologia ameríndia, sujeito hábil e capaz de relacionar e transformar-se num diferente tipo de intelectual. Que conjuga a formação acadêmica, que se apropria da escrita e das metodologias consagradas no meio acadêmico, mas que igualmente (e em primeiro lugar) é formado na oralidade e na perspectiva da tradição de seu povo, atuando como um diplomata, um mediador entre dois mundos de saberes: o indígena e o não indígena.

Esta reflexão autorizada por Bergamaschi num ensaio sobre a pesquisa da educação  ameríndia e interculturalidade no Brasil diz-nos muito sobre a forma como o Estado de Cabo Verde tem demonstrado pouca sensibilidade na valorização, de forma construtiva e pedagógica, das tradições orais da sua população insular. 

Por exemplo, se acedermos ao site do IPC em Cabo Verde e procurarmos informações sobre as festas de São João, a desinformação, os erros crassos nas narrativas, o descuido curatorial são explícitos. Contudo, quando se trata de uma situação em que não há estudos apropriados, para além das danosas reproduções coloniais, nem recursos humanos qualificados nas instituições, poderia-se imaginar que fosse um tipo de falha humana. Mas, quando tal não é o caso, sinto-me obrigado a expressar o meu protesto perante eventos que de acordo com Sartre assemelham-se às ações de má-fé.

Vez por outra vemos notícias fantásticas e carregadas de boa carga de ficção que emanam de instituições públicas que já estão acostumadas a falar para um público desinteressado e desatencioso com as suas próprias políticas, direitos e deveres locais. 

Quando fazem isso, recorrem às personalidades, muitas vezes já desgastadas, destes locais para tentar ludibriar a população com a ideia de projetos mirabolantes. As pessoas não são ignorantes e sabem que não vai nascer do nada, e com certeza, não sem antes colocarmos os “assuntos” na mesa. Nenhum projeto, sobre a cultura popular que não leva em conta a sua matéria primeira: a população, seus desejos e projeções futuras, sua consciência no presente, as rotas e as raízes difusas do passado, chegará a Bom Porto.

É neste sentido que chamo a atenção aos jovens que sentem que podem desafiar as lideranças dos associativismos culturais da nossa cidade do Porto Novo e de toda a população para olhar para e debater sobre esta situação desastrosa. Para que respondam e saiam deste marasmo da apatia cívica e questionem aquilo que vos causa dúvidas, mas é de direito.

Escrevam, cantem, representem, façam música, PROTESTEM e mostrem as energias sustentáveis e rebeldes que atravessam as forças da nossa história de luta e resiliência. 

A nossa luta tem sido sempre nesta direção. 

Libertação pelo conhecimento, o mesmo projeto instituído no berçário da nossa nação.  Libertem-se das amarras invisíveis e mórbidas de uma distopia enfiada goela abaixo através do manuseio demagógico, das doações que o país recebe, por parte d’aqueles cujos bolsos não têm fundo.

A GENTE VÊ E ESCUTA, A GENTE SENTE, A GENTE SABE!

Mui atenciosamente

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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