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As Sequelas da Pandemia, os Inefáveis da Política e as Mazelas da Guerra

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Por: Alcides Lopes (PhD)

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Há algumas semanas, a minha esposa Constância despertou-me entre as quatro e cinco da manhã. Ela foi surpreendida por uma aurora de cor púrpura vibrante que derramava um tom distópico pelo quarto de dormir adentro, através da janela aberta para o Oriente. Falou-me: – Que céu é esse? Levantamo-nos atônitos e fomos à varanda contemplar aquele amanhecer peculiarmente inacreditável. Simplesmente mágico! 

Aquele era um amanhecer cuja energia atravessava nossos corpos, penetrava pelos poros como se sorvesse chá de bissap [hibisco] gelado no verão. Lentamente o ecrã celeste foi ensanguentado até atingir um clímax alaranjado de arrancar suspiros de admiração dos espíritos mais ousados que se alimentam da arte, ou, quem sabe, aterrorizar os mais propensos às ‘leis’ dos mundos assombrosos do apocalipse e dos messianismos milenares lívida e indecentemente religiosos.

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Contudo, a ciência tem explicação para as diferentes colorações da abóbada celeste relatadas em diversas partes da América latina. De acordo com os argumentos, as cinzas tóxicas lançadas a 24 km de altura pela erupção provocada por um vulcão submarino na ilha de Tonga. Já se sabe, por exemplo, que as partículas ricas em enxofre liberadas nestas erupções persistem, por muito tempo, vagando pela atmosfera e têm impacto direto nos nossos climas.

Dois anos de pandemia interromperam, de forma abrupta, uma miscelânea de planos e projetos, causando transformações robustas e estruturalmente profundas nos círculos e disposições de vida tanto  no plano individual e, principalmente, nas diferentes dimensões da vida em comunidade. Quando consideramos um dos processos de fragmentação a que chamamos aqui de sequela, devemos ter em conta uma análise do alcance holístico da mencionada moléstia global.

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Muitos de nós já presenciaram o fato ou, pelo menos, devem ter escutado os mais diversos relatos sobre os casos das limitações severas impostas pela condição  conhecida como processo pós-Covid-19. Casos como perda do olfato e do paladar são relacionados, em novos estudos científicos, com a morte de regiões seletivas da área cerebral destes pacientes, devido as deteriorações neurológicas provocadas pela ação prolongada do vírus. Temos escutado sobre as tromboses, as alterações drásticas das taxas de hormônios, dos agravamentos das doenças relacionadas com a má alimentação e o sedentarismo: diabetes, colesterol alto, pressão alta, etc. Eventos surpreendentes que frequentemente têm resultado nos casos fatais de morte súbita provocada por infarto fulminante do miocárdio nos homens, com maior incidência, mas também nas mulheres.

As estatísticas demonstram que nos países do Ocidente onde as taxas de mortalidade tiveram maior incidência, as camadas populacionais mais vitimadas pertencem às classes média baixa e operária pobre. Basta lembrar que a maioria das pessoas que compõem as referidas classes populares são negras e pobres. Portanto, é auspicioso pensarmos as referidas sequelas para além do alcance fisiológico e psicológico nos corpos cujo impacto é colapsante, mas também nas estruturas sócio econômicas, principalmente aquelas estruturas que mantêm continuidades com sistemas servis próprios dos séculos anteriores na história da modernidade e, ainda hoje, continuam alimentando-a.

Veja, por exemplo, que as crises ideológicas, políticas e econômicas que se abateram sobre o Brasil se intensificaram a partir de 2015. As críticas aos sistemas de cotas para negros e outros grupos minorizados passaram a ser constatadas com maior veemência, aumentaram as tentativas de burla, bem como as manifestações preconceituosas e estratégias de segregação contra pessoas negras bem colocadas socialmente nos espaços públicos e de alto nível profissionais.     

Não se pode jamais aliviar a vergonha nacional causada pelas famigeradas dancinhas sincronizadas, as estufas e berçários bolso minions da pior espécie: “aqueles energúmenos portadores de um único neurônio torrado”, disse-me uma vez uma nordestina. A mídia também não deu mole, pairou como urubu-rei sobre a carniça. Foi uma “verdadeira” caça às bruxas e o público, não-povo, na ótica do centenário Darcy Ribeiro, assistiu da arquibancada à derrocada da esperança brasileira. 

Mas, outras desgraças ainda estavam por vir. Coisas bem piores do que a derrota de sete a um contra a Alemanha ou o fiasco de uma Olimpíada sem representatividade e assoreada por escândalos de corrupção e superfaturamento. Renascia um sentimento baixo, mesquinho e cruel, o qual a sociedade brasileira já conhecia de outras andadas.

A fealdade da licenciosidade permitida aos gatunos, racistas, homofóbicos, apologistas da tortura e criminosos rapace, travestidos de religiosos e políticos, naquela fatídica sessão de impeachment da Presidenta Dilma em agosto de 2016, denuncia os podres fundamentos sobre os quais reina a libertinagem dos bichos escrotos que se acham ‘donos’ do Novo Mundo

Naquela noite, politicamente inefável, na qual imbecis altearam suas vozes para, em coro e a plenos pulmões, ofender explicitamente todas as mulheres e ovacionar o seu torturador, parte da magnânima nação perdeu a inocência. Adormeceu sobre a sua humanidade e estrangulou-a quando, na manhã seguinte, decidiu seguir a sua vida “normalmente” e teve que trabalhar de babá no protesto ensandecido verde-amarelo, onde os patrões pregavam a sua própria exclusão. Uma face embranquecida, preconceituosa, ignorante e mesquinha deu, finalmente, seu semblante à luz do dia.

Há quem já não se lembre de 2016, da sensação de desamparo causada pelos cortes maciços nos programas sociais; do desespero que se desencadeou no mundo dos pós-graduados quando as bolsas de estudo começaram a escassear; dos desmontes desavisados dos programas de saúde pública, dos agentes da saúde comunitária; a suspensão de programas educacionais, cursos profissionalizantes, programas de recrutamento e, por aí vai.

Michel Temer, com o seu jeito astuto e cara de quem passou pó de arroz, foi rapidamente associado a um “vampiro”. O cenário político brasileiro transmutou-se de forma impressionante e revelou, no processo, espectros sinistros. De repente, um antigo hit dos Titãs “Bichos Escrotos” voltou a ser atual. E um certo juiz, até então desconhecido, recebia tratamento VIP [very important person] de um dos setores das elites brasileiras, a mídia sensacionalista, vulgo: a Rede Globo e afins, a qual conjurou o “descobrimento da invenção e da operação da corrupção no país: o PT”. A meu ver, existe todo um arcabouço teórico construído nesta direção que já pode ser notado em 2010 na coletânea de artigos de sociologia publicados como a obra Hegemonia às Avessas.

O saudoso jornalista brasileiro Paulo Henrique Amorim (1942-2019) alertou-nos, ainda em 2016, que os ataques perpetrados a Lula pelo oligopólio midiático que ele ajudou a construir e que então o perseguia, querendo comê-lo vivo, criaria um estado de exceção e, por isso, um golpe. Recordou-nos que Florestan Fernandes já ensinava que as elites nunca foram favoráveis à democracia. Na realidade, possuem um sistema próprio que exclui a classe trabalhadora das decisões: uma “autocracia burguesa”.

Foram estas forças e iniciativas que influenciaram na morte de Marielle Franco, na noite de 14 de março de 2018, na prisão arbitrária e ilegal do Presidente Lula, menos de um mês depois, 7 de abril, e na eleição de Bolsonaro, sem realizar nenhum debate durante a campanha, no dia 28 de outubro de 2018. 

O caso de Marielle continua sem uma resposta definitiva à pergunta: Quem mandou matar Marielle? Entretanto, não se pode negar a mobilização e a conscientização da luta protagonizada por mães solo, jovens negras da favela, toda a juventude excluída para as franjas e periferias à nível mundial. Lula foi libertado, inocentado de dezenas de acusações e processos e é candidato preferido a presidente com largas vantagens de intenção de voto a seu favor e em detrimento do atual presidente e outros concorrentes.

A conta do atual governo encontra-se pendurada na paciência da população brasileira, e mundial, parece-me impagável. A dívida, certamente, é impraticável para a negociação de uma reeleição. As perdas são reais. Hoje o brasileiro está consideravelmente mais pobre. 

O desemprego é recorde, como também são a paralisação, o desmonte e o desmantelamento das universidades, das grandes empresas públicas, das políticas públicas, dos projetos socioambientais e da diversidade de projetos culturais. 

O desmatamento é recorde, como também são as queimadas e as [in]consequentes grilagens de terra, as invasões e a sempre crescente violência letal contra as lideranças comunitárias indígenas e quilombolas. A mesma violência institucionalizada e terceirizada se abate contra a juventude negra das franjas e periferias das grandes metrópoles do país, acentuando assim a perpetuação do genocídio negro brasileiro. 

Nestas modalidades de políticas para a morte, a triste realidade é que os crescentes feminicídios vitimaram mulheres negras e trans, de forma espetacularmente assustadora, enquanto os mesmos crimes de violência contra mulheres de outros grupos populacionais decresceram.

Na encruzilhada da inefabilidade da política e das sequelas da pandemia, perdeu feio, e continua perdendo, a população brasileira. E, nestas condições, as camadas mais vulneráveis, empobrecidas e subjugadas aos caprichos da necropolítica de mercado, são estas, as populações que mais sofrem e perecem à resiliência do vírus da Covid-19 e das suas múltiplas  ramificações em variantes titânicas. 

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Na guerra travada pelo povo brasileiro contra a Covid-19 houve muitas fatalidades, muitas mortes desnecessárias e a agência nociva de um governo não só ausente, mas com altos indícios de casos vergonhosos de corrupção principalmente nas áreas da saúde, atendimento e manutenção de UTIs. Nisto tudo, esbarramos no grande negócio da morte que permitiu o crescimento de lucros de uma única empresa de venda de medicamentos de 15 milhões para mais de 500 milhões de reais, em um ano, devido à venda do malfadado Kit Covid-19.

Aproximadamente 660 mil vidas perdidas, até agora, são as baixas da população brasileira durante a guerra travada contra seu próprio governo, aliado do vírus. Um presidente, garoto propaganda de um dos maiores atos do charlatanismo contemporâneo. Um crime contra a humanidade. Portanto, quando um brasileiro sobe a bandeira da Ucrânia na sua foto de perfil do facebook, deve estar ciente das suas seletividades e a grande chance de nunca ser aceito naquele grupo. 

Neste ano temos eleições!

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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