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A Tragédia na Serra da Malagueta. Tempo de interpelação. Tempo de responsabilização.

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Por: Jorge Tolentino

Pergunte ao General se ele gostava de morrer aos vinte anos.

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Vinte anos, meu General, vinte…

Irwin Shaw, in ‘Enterrai os Mortos’, 

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O Grande Teatro do Mundo (Paulo Quintela), Atlântida, Coimbra, 1968

  1. A tragédia da Serra da Malagueta ocorreu há mais de um mês. Os funerais das vítimas tiveram lugar pouco depois. Foram feitos vários pronunciamentos, ainda no quente do acontecimento, tantas as sentenças quantas as cabeças. Decretou-se luto nacional. Foi anunciado um inquérito, com prazo indicativo para a sua conclusão. No pior momento falou-se de pensão de sangue, ainda frescos os últimos frémitos dos jovens bruscamente arrebatados da Vida.
  1. Enterrados os mortos, instalou-se o silêncio, enquanto cresce a angústia das famílias e a ansiedade por parte de uma cidadania que precisa conhecer as causas de tão fatídico acidente. Silêncio esse aqui e acolá quebrado com informações esparsas sobre dificuldades em concluir o inquérito no prazo que fora anunciado e, mais recentemente, a necessidade de mais tempo para peritagem ao veículo envolvido no acidente. O que resulta evidente, desta crónica de um relatório anunciado, é que, no dia em que este vier à luz do dia, será minuciosamente analisado.
  1. Do lado da sociedade (onde estão as famílias dos mortos) impõe-se que ocorra o debate crítico, informado, responsável e responsabilizador. Com sentido de consequências, também. Pois que importa não fingir debate, importa não despachar o assunto, dá-lo por encerrado, esperar que o esquecimento não deixe recordar, e dormir à sombra da bananeira até que… até que ocorra outra tragédia. E outra. E mais outra… Pois que tradicionalmente é assim em Cabo Verde. Pois que, neste caso em concreto, assim será enquanto as causas profundas, verdadeiras não forem enfrentadas. E essas, é evidente, estão muito para lá de eventuais falhas mecânicas neste ou naquele veículo ou de debilidades nos terminais mais remotos na cadeia de comando. A árvore não pode esconder a floresta.
  1. A morte trágica dos oito jovens Militares na Serra da Malagueta, concretamente na localidade do Guindão, tem o indizível travo da tristeza sem amparo. Porque mortes absolutamente incompreensíveis! De peito aberto partiram para a tarefa que lhes fora ordenada e eis que, subitamente, a sua vida é arrebatada. O que queriam era viver, cumprir o ciclo impar da Juventude e realizar o seu desígnio de felicidade junto aos seus mais queridos. Ninguém nasce para morrer na primavera da Vida!… Não assim, dessa forma!… A esses mortos acrescem os 23 feridos, alguns dos quais estiveram longamente hospitalizados.
  1. As mortes nessas circunstâncias (evitáveis? Falta apurar), todas elas, de Civis ou Militares, de Pessoas, afinal!, suscitam responsabilidades e responsabilização. Têm de suscitar! E para, de pronto, assumir responsabilidades (determinado tipo de responsabilidades) não é necessário que haja inquéritos e relatórios. Urge dizê-lo por inteiro: a morte inglória de oito Jovens em Serviço Militar Obrigatório constitui uma directa e estrondosa interpelação à cadeia de responsabilidades. Do topo para baixo, e não o inverso. Julgo que sobre isto não há voltas a dar.
  1. Pior do que a omissão, essa omissão!!, será o silêncio de todos. A dor e a indignação têm de manifestar-se e ser consequentes. As famílias dos jovens cujas vidas foram ingloriamente ceifadas, mas igualmente a sociedade como um todo devem manter-se despertas e incansáveis na busca de Justiça. Lá onde as instituições obrigadas a agir não agiram ou não agem, é preciso que o alerta da sociedade seja claro e firme e constante. A mais de obrigação para com os que morreram, trata-se de um dever para com a nossa sanidade colectiva enquanto comunidade nacional. Atenção: ao nível global, há quem já defenda que a sociedade internacional vive a Era da Impunidade (The Age of Impunity). Entre nós é já bem isso: a impunidade corre solta em casos de outras e várias patologias; que não seja também assim perante a morte inglória desses Jovens! A vida, a nossa e a dos nossos semelhantes, é o bem mais sagrado. Não o banalizemos.
  1. Não somos um país em guerra. É num contexto de normalidade e ao abrigo do regime do Serviço Militar Obrigatório (SMO) que as famílias entregam os seus bens preciosos (jovens no esplendor da Vida) ao Estado. Este tem de os proteger. Sobretudo quando não é identificável um nexo de justificação razoável e evidente entre um acidente e perdas de vidas, tem de haver celeridade e rigor no apuramento e na divulgação das causas, das razões, mas igualmente de responsabilidades. O que é que falhou? Por que razão falhou? Quem não fez o que devia ter feito? Se fez, por que é que,  mesmo assim, o acidente aconteceu? O acidente é reflexo ou sintoma de que mal ou males? Mais grama, menos grama, é isso que se espera de um inquérito…Nunca esquecendo que, no Estado de Direito Democrático, nenhuma instituição está a coberto do escrutínio. 
  1. A tragédia da Serra da Malagueta, pela sua imensa gravidade, tem forçosamente de mexer com o Estado. Este tem de questionar-se sobre onde e como falhou. O que é que não está bem no Sistema de Defesa e Segurança? O que é que não está bem no Sistema Nacional de Protecção Civil? Terá este sistema, por exemplo, absorvido as lições que já haviam sido dolorosamente dadas pelo incêndio no Planalto Leste, em Santo Antão? Mais, é forçoso que esteja claro se o regime de utilização supletiva das Forças Armadas autoriza que os jovens, em SMO, estejam a ser utilizados em tarefas para as quais não estão nem devidamente preparados nem suficientemente equipados. Ou seja, se o quadro legal criado foi, com a coerência que se impunha e se impõe, seguido dos necessários investimentos na Instituição Militar, a começar pelos nas frentes da formação e dos equipamentos. Se é razoável e responsável continuar-se a propalar que as Forças Armadas estão prontas para qualquer missão…
  1. Já o disse e escrevi noutros momentos e espaços, mas não me cansa repeti-lo agora. O nosso modelo de Defesa Nacional e Segurança está esgotado, exangue mesmo. Urge fazer o que tem de ser feito em ordem a dotar o país de uma nova Constituição da Defesa e Segurança, uma que seja moderna e adaptada aos desafios de um pequeno Estado Insular dos dias de hoje. Estamos em pleno século XXI! É preciso retomar, e ser consequentes!, o debate sobre a profissionalização das Forças Armadas, matéria evidentemente entroncada com a do SMO. Trata-se de um desafio desta geração e cabe à classe política liderar o processo, criando os necessários consensos para um Compromisso de Estado. Qual seja o de, e repito, dotar Cabo Verde de uma nova Constituição da Defesa e Segurança. Uma Urgência de Estado, porventura devesse escrever assim. Enquanto isso não acontecer, continuaremos a gastar recursos sem alcançar os mínimos dignos em matéria de resultados. É só ver o estado actual das Forças Armadas no atinente a equipamentos! Um exemplo: o navio ‘Guardião’, um património caríssimo e antes motivo de orgulho, está fora do giro há já pelo menos três anos. De meios aéreos, nenhum existe. Precisamos de um modelo sustentável e isento de irresponsabilidades/ desresponsabilização como essas.  Existem, na verdade, insuficiências e deficiências que precisam ser desnudadas e debatidas sem filtros nem receios. Não se trata de condenar nem de defender(-se). Trata-se, isso sim, de desejar o melhor para o país. Em se tratando de imprimir o sentido do progresso, nada há de mais prejudicial do que as lógicas da intocabilidade e da acomodação ao statu quo. Urge, por exemplo, desconjuntar o embuste discursivo sobre a protecção dos nossos bens no mar. Eles estão descobertos e à mercê. Só não vê isso quem não queira. Outrossim, urge que nos reencontremos na elevação e consistência de um pensamento nacional e próprio sobre estas matérias. Saber, por mérito próprio, o que devemos almejar em domínios de Soberania.
  1. Que o mortal estampido na Serra da Malagueta, ocorrido há mais de um mês, não se desvaneça em sussurros que com o vento se vão, nem muito menos em adiamentos e omissões, antes conduza a um claro rastreio dos factos e inequívoca identificação de responsabilidades, bem como, de vez, provoque, na classe política nacional, um sentido de inadiabilidade de consensos para avanços em determinados domínios do mais alto Interesse Comum, qual seja o da Defesa e Segurança!

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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