“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
[Paulo Freire]
Arlindo Nascimento Rocha
A frase de Paulo Freire na epígrafe deste artigo convida-nos a uma reflexão profunda sobre o processo educativo atual. Contrariando as visões pedagógicas tradicionais que concebem esse processo numa perspectiva verticalizada, ou seja, do professor para o aluno, Freire desnuda essa lógica ao apresentar uma visão que emerge de uma interação critica, dinâmica e adaptativa mediada por múltiplas interrelações que se dão no mundo.
A palavra ‘mundo’, na citação de Freire, ganha hoje um significado ainda mais abrangente. Já não se trata apenas do mundo físico, mas de um mundo em profunda transformação, no qual a tecnologia constitui a base das grandes mudanças. Inclui-se aqui a mais recente e potencialmente revolucionária de todas: a Inteligência Artificial (IA), especialmente quando integrada no campo educacional.
Por se tratar de um tema emergente e ainda desprovido de marcos teóricos e normativos consolidados, este artigo tem como objetivo refletir sobre o papel da IA na constituição daquilo que propomos como sendo a Pedagogia da Mutabilidade (PDM). Embora a IA seja frequentemente anunciada como uma “revolução” iminente, a sua aplicação no sistema educativo permanece limitada e desigual, o que impede a produção de evidências sólidas capazes de medir, de forma rigorosa, os seus impactos a médio e longo prazo.
Na qualidade de autor e proponente da PDM enquanto modelo epistemológico e pedagógico, reconheço também que o campo educacional ainda não dispõe de dados e resultados robustos e sistematizados sobre o uso e a integração da IA em processos de ensino e aprendizagem. Esta lacuna reforça a necessidade urgente de investigações empíricas e de experiências pedagógicas orientadas, que permitam compreender os potenciais benefícios e, simultaneamente, os riscos, limites e as condições do uso ético e responsável desta tecnologia.
O grande desafio consiste em assegurar que a IA converta-se efetivamente numa aliada estratégica e robusta na construção e consolidação de uma educação mais crítica, dinâmica, adaptativa e sensível às transformações contemporâneas, e não em um “vilão” a ser afastado sob receios infundados de desvirtuar o processo educativo. A PDM, nesse sentido, oferece um enquadramento teórico e filosófico, como vimos anteriormente, capaz de orientar práticas inovadoras que integrem a IA de forma criteriosa, consciente e emancipadora.
Analisando os fundamentos teóricos e filosóficos abordados nos dois artigos anteriores é possível afirmar que a PDM está longe de ser um modelo simples ou trivial. As suas raízes são profundas e ramificam-se por diversas correntes do pensamento que atravessou séculos até chegar ao século XXI. Esta capilaridade nos permitiu dialogar com várias teorias filosóficas, antropológicas e pedagógicas para sustentar, de forma precisa, a proposta de um paradigma verdadeiramente disruptivo. A PDM assenta-se, assim, na incerteza como condição estrutural, na flexibilidade como método, na adaptabilidade como competência e na resiliência institucional como horizonte operativo.
A transição do paradigma VUCA (Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo) para o quadro de referência BANI (Frágil, Ansioso, Não Linear e Incompreensível), conceito formulado pelo antropólogo norte-americano, Jamais Cascio, denota mais do que uma mudança de contexto: revela uma mutação ontológica na nossa maneira de compreender o real. Se antes a instabilidade global era percebida a partir de forças geopolíticas ou econômicas, hoje essa experiência emerge com uma nova textura e urgência, alimentada sobretudo pela aceleração tecnológica e pela popularização da IA.
Diante dessa nova configuração, a PDM não se limita a responder a um cenário em fluxo; propõe um modo de pensar e de estar no mundo capaz de acolher a complexidade e de transformar a incerteza em potência criadora. Afinal, a rápida expansão tecnológica, a crescente complexidade dos sistemas sociais e a constante metamorfose das formas de conhecer e de nos relacionarmos já não são apenas desafios externos, tornaram-se o próprio terreno no qual a educação contemporânea deve desenvolver e semear as suas práticas.
Diante desse contexto, a PDM consolida-se, portanto, como um modelo epistemológico capaz de responder a tais exigências, justamente por conceber a aprendizagem como um processo dinâmico em permanente (re)construção.
Inspirada pelos princípios da Governança da Mutabilidade, a PDM parte de um reconhecimento fundante: tanto o sujeito quanto o objeto do conhecimento estão em estado de fluxo contínuo. Esta premissa, como demostramos, encontra sólido respaldo na tradição filosófica, desde Aristóteles à noção kantiana do caráter inacabado do ser humano até o pensamento complexo de Edgar Morin, para quem o mundo é essencialmente tecido pela incerteza e pela transformação. Desta forma, a PDM não apenas se adapta à mudança, mas a erige como princípio central da própria relação de ensino e aprendizagem.
É precisamente neste contexto que a Inteligência Artificial (IA) se torna uma ferramenta estratégica para reforçar e expandir as práticas mutáveis deste modelo pedagógico. Conforme referido no artigo “A educação em transformação: a era das inteligências artificiais”, a IA, quando integrada de forma ética e orientada, favorece a aprendizagem adaptativa, amplia as possibilidades de investigação e criação e transforma a sala de aula em um espaço dinâmico, onde os alunos, os professores e os sistemas inteligentes constroem conhecimento de modo sinérgico.
Esta convergência teórica permite à PDM afirmar-se não apenas como proposta pedagógica, mas como uma prática educativa transformadora, capaz de articular a inteligência natural com a artificial num ecossistema integrado, ético e responsável.
Nesse contexto, a implementação estratégica da IA oferece vantagens fundamentais para a concretização dos princípios da PDM. Estas podem ser sumarizadas da seguinte forma:
- personalização e autonomia: a IA possibilita uma aprendizagem verdadeiramente personalizada, adaptando ritmos, estilos e percursos às necessidades individuais de cada alunos. Esta customização não é técnica, mas pedagógica, fomentando uma maior autonomia intelectual e emocional no processo de conhecer;
- investigação e criatividade: a IA sustenta e amplia práticas investigativas e criativas, permitindo que os alunos experimentem hipóteses, simulem cenários complexos, explorem conexões entre múltiplas fontes de conhecimento e, assim, desenvolvam competências cognitivas de ordem superior, como a análise crítica e a síntese criativa;
- inclusão e acessibilidade: a IA contribui para uma educação inclusiva, ao disponibilizar ferramentas de acessibilidade (como tradução em tempo real, descrição audiovisual ou suporte à leitura) e oferecer suporte personalizado para diferentes perfis e necessidades.
Para além dessas vantagens diretas, a IA atua como um catalisador do papel docente. Ao automatizar tarefas rotineiras, ela liberta tempo e energia intelectual do professor. Este, por sua vez, pode redirecionar a sua presença para o que é central na PDM: a orientação, a mediação crítica e o acompanhamento reflexivo do desenvolvimento integral dos alunos.
Todavia, esta integração não está isenta de críticas e riscos que exigem análise rigorosa. Há preocupações éticas relacionadas com privacidade, algoritmos e desigualdade de acesso. Existe também o risco de uma dependência tecnológica excessiva, que pode fragilizar a capacidade reflexiva e investigativa dos alunos se a IA for utilizada de forma acrítica. Outro risco reside na possível redução da criatividade, caso os alunos passem a confiar nos resultados gerados pela IA sem desenvolverem processos de questionamento e validação. Por fim, a formação docente insuficiente pode comprometer a implementação pedagógica da IA, levando à adoção superficial ou instrumental da tecnologia.
A integração da IA na educação formal, em particular num modelo novo como o da PDM, aponta para um horizonte de transformação profunda. A médio prazo, ela tende a consolidar uma cultura de aprendizagem ágil, fortalecendo nos alunos, as capacidades fundamentais para o século XXI: uma adaptabilidade crítica, uma autonomia responsável e um pensamento complexo alimentado pela literacia digital.
A longo prazo, o seu potencial é ainda mais estruturante. A IA pode ser a base técnica para a construção de ecossistemas educativos verdadeiramente justos e inclusivos, onde o conhecimento não seja transmitido, mas permanentemente cultivado em ciclos de ação, reflexão e reconstrução crítica, sempre guiados por princípios éticos.
Então para que esta trajetória seja viável e que os resultados se concretizem, é imprescindível um compromisso educacional, social e tecnológico robusto. Este compromisso deve traduzir-se em políticas públicas que garantam equidade no acesso à tecnologia e, sobretudo, no investimento pedagógico e no desenvolvimento de uma ética digital. Os alunos precisam aprender a navegar e a co-criar com sistemas inteligentes sem jamais abdicar de sua inteligência, discernimento e responsabilidade.
É neste ponto que retornamos à essência do processo educativo, tal como lembrado por Freire: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.” Esta talvez seja a chave final: a IA pode tornar-se a ferramenta de mediação tecnológica mais sofisticada da história, mas nunca será a substituta da mediação humana. Esta última é dialógica, crítica e carregada de sentido e sempre será o núcleo insubstituível da educação. A IA, na melhor das hipóteses, será um instrumento para amplificar e qualificar esse encontro entre a inteligência natural e a artificial potencializando melhores resultados.
Assim, a consolidação da PDM em um cenário atravessado pela IA requer estratégias pedagógicas concretas e intencionais. O pilar fundamental é a promoção de uma cultura escolar investigativa, que valorize o questionamento, a experimentação e o pensamento crítico. Nesse ecossistema, a IA deve ser integrada como um recurso complementar e amplificador da inteligência natural e humana, uma ferramenta para pensar e não um substituto do pensamento.
Esta cultura materializar-se-á através de práticas pedagógicas centradas nos alunos que fortaleçam a sua autonomia cognitiva. Além do uso da IA de forma criativa e responsável, é importante retomar e salientar, uma vez mais, a valorização e a utilização de projetos investigativos, metodologias ativas e a resolução de problemas reais que emergem do dia a dia dos alunos. Nesse sentido, a articulação estratégica de referenciais consolidados, conforme visto nos artigos anteriores, como as Inteligências Múltiplas (IM), a Aprendizagem por Competências (APC) e o Problem-Based Learning (PBL), a lógica construtivista de Piaget e a construcionista de Papert criam um terreno fértil para o aprofundamento e a consolidação da PDM.
Esta sinergia metodológica desenvolve as habilidades e as competências práticas e cultiva a capacidade essencial de adaptar-se criticamente a contextos diversos e em permanente transformação. Todos esses enfoques são adequados ao contexto educativo atual precisamente porque compartilham um núcleo comum: estimulam o pensamento crítico, a colaboração autêntica e a aplicação viva do conhecimento, preparando os alunos não para um mundo previsível, mas para um mundo que exige criação contínua.
Então, para que haja uma verdadeira convergência entre a IA e a PDM é um imperativo ir além da integração técnica. É necessário estabelecer, de forma colaborativa e crítica, protocolos éticos robustos que fomentam o seu desenvolvimento e o seu uso no espaço educativo. Esses protocolos não são meras diretrizes operacionais, mas a base para uma relação de confiança.
Eles devem garantir: (a) segurança e proteção de dados ao salvaguardar a privacidade de alunos e dos professores, assegurando que as informações pessoais e de aprendizagem sejam tratadas com absoluta confidencialidade e integridade; (b) transparência e explicabilidade ao exigir que os sistemas de IA sejam “abertos à inspeção” em sua lógica de funcionamento, permitindo que os professores, os pais, os responsáveis e os alunos compreendam como e porquê determinadas decisões ou recomendações são geradas; (c) proteção da propriedade intelectual e autoria ao definir claramente os direitos sobre os conteúdos e criações resultantes da interação com ferramentas de IA, preservando a autoria humana e o caráter original do trabalho intelectual; (d) respeito e promoção da diversidade ao assegurar que os algoritmos e seus dados de treinamento sejam livres de vieses, promovendo a equidade e valorizando a diversidade cultural, linguística e cognitiva, em vez de homogeneizar pensamentos e abordagens.
Sem este alicerce ético, a IA corre o risco de reproduzir desigualdades, opacificar processos de pensamento e corroer a confiança que é fundamental para qualquer ambiente educativo. Por isso, a construção dos protocolos para o uso da IA no ensino e aprendizagem não pode ser visto como um apêndice, mas como um ato pedagógico em si mesmo, um exercício coletivo de reflexão crítica sobre os valores que desejamos cultivar no mundo que ajudamos a formar.
Nesse sentido, a formação docente contínua e ininterrupta, como pilar central deste modelo, deixa de ser uma recomendação acessória e torna-se a pedra angular da transição necessária. Para cumprir esse papel estruturante, precisa ser reimaginada de modo a integrar, de forma indissociável, três eixos fundamentais: (a) literacia digital avançada, que ultrapasse o domínio instrumental e permita ao professor compreender criticamente as arquiteturas, potencialidades e limitações da IA, orientando escolhas técnicas alinhadas a propósitos pedagógicos; (b) reflexão ética permanente, que ofereça espaço para debater os dilemas da mediação tecnológica, privacidade, vieses algorítmicos, autoria e o papel humanizador do educador num ecossistema híbrido; e (c) design pedagógico intencional, capaz de criar experiências de aprendizagem em que a IA funcione como catalisador de diálogo, investigação e criação, e não como finalidade em si.
Apenas uma formação com tal profundidade e integridade poderá assegurar que os professores não se limitem a utilizar a IA como ferramenta, mas se reconheçam aptos a liderar e gerir ambientes híbridos com confiança, autonomia crítica e clara intencionalidade pedagógica. Assim, tornar-se-ão arquitetos do ecossistema integrado proposto pela PDM, mediando com segurança o encontro entre a inteligência natural e a artificial, garantindo que a tecnologia sirva, em última instância, aos mais altos fins da educação.
Em suma, em um mundo cada vez mais frágil, ansioso, não linear e incompreensível, a convergência entre a IA e a PDM apresenta-se como uma oportunidade singular para repensar a educação. Longe de substituir o humano, asseguramos que a IA deve ampliar a sua capacidade de criar, interpretar e transformar, desde que orientada por princípios éticos e por uma visão pedagógica que reconheça a centralidade do aluno como sujeito em formação contínua.
Assim, a PDM oferece um caminho robusto e inovador para construir uma educação mais sensível às transformações do nosso tempo, mais crítica, dinâmica e adaptativa, verdadeiramente aberta e alinhada com os desafios de um futuro permanentemente incerto, tal como salientado por Morin.










