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Opinião

À mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria

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Por Adriano Lima

Quem proferiu a afirmação grafada em título foi Caio Júlio César por volta de 60 anos a. C., referindo-se precisamente à sua esposa Pompeia Sula. A velha máxima cruzou milénios e permanece inteiramente válida, e não poucas vezes é evocada quando está em causa a transparência cristalina de actos e procedimentos de detentores de cargos públicos.

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Se isto vem a propósito é pela minha estranheza de ver rebentar com pólvora reforçada e renovada, no
fervor da campanha eleitoral em curso em Portugal, o foguetório judiciário relacionado com os processos do “Roubo de Tancos” e das “Golas antifumo”. É que os dois processos, uma vez relançados com veemência mediática nesta altura precisa, só podem visar a imagem do actual governo e a cotação eleitoral do partido que o suporta, independentemente de eventuais culpabilidades que venham a ser apuradas ou de sentenças condenatórias que possam ser decididas em tribunal.

Como a política é uma arte pródiga no culto das aparências, embora muitas vezes fruto de manipulação e
mistificação, o quadro que se me apresenta é que me permite aquela dedução. A dúvida pode, no entanto,
colocar-se, mas só porque o pudor cívico me inibe de cair em julgamentos precipitados sobre as intenções de outrem, mormente de um órgão como o Ministério Público. Porém, não se confunda reserva mental com
ingenuidade pacóvia.

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É certo e sabido que a Justiça tem os seus próprios timings, mas é intrigante ver tão certeira pontaria na
escolha do actual momento. Não se pode mobilizar no meio de uma campanha eleitoral mais de 200 agentes de
investigação criminal e operadores judiciários em direcção a gabinetes e residências de governantes e titulares de cargos públicos, sem que na opinião pública logo se instale a desconfiança de que os visados são capangas do crime organizado. Tanto mais quando haverá certamente casos bem mais graves a requerer prioridade, celeridade e acutilância na acção da Justiça.

Com efeito, ligando as pontas − a exorbitância dos meios, o critério da gestão das prioridades e o timing escolhido – é impossível não admitir que podemos estar perante a interferência indirecta em campanha eleitoral de um órgão do Estado que, não curando da isenção e equidistância no exercício do seu múnus, parece ter
mandado às urtigas a prudência e o recato que a circunstância recomendaria. Sim, o bom-senso teria
recomendado outra calendarização da agenda da Justiça, regulando-a em função do período eleitoral. É cedo para saber se o foguetório vai influenciar ou não as intenções de voto, porque a girândola não ainda parou o seu movimento. Caberá ao eleitorado discernir o que é espectáculo luminoso de pólvora multicolor e o que é acção governativa real e concreta, diferenciando-a mesmo do ocasional desempenho “artístico” dos
líderes políticos no proscénio dos debates televisivos ou nas arruadas.

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Todavia, poderá dizer-se que o principal partido da oposição e os interesses que representa não caberão em
si de contentes por tão providencial empurrão recebido. Resta é saber se já contavam com ele ou se tudo lhes
foi oferecido de bandeja. Mas isso seria entrar em domínios nebulosos, meandros onde não penetra quem se limita a conjecturar, não abdicando do direito de pensar. E a conjectura tem a amplitude que a nossa memória retrospectiva lhe consentir. Leva, por exemplo, e numa análise comparativa, a interrogar por que casos bem graves que comprometiam as pessoas do anterior primeiro-ministro (o da Tecnoforma) e do seu ministro da defesa (o dos Submarinos) nem sequer afloraram na última campanha eleitoral, quanto mais objecto de
procedimento judicial em sede própria. Foram simplesmente arquivados, apesar dos indícios e até de elementos carreados de instituições da União Europeia. Ou há dois pesos e duas medidas diferentes para casos
semelhantes ou o objectivo é tentar inviabilizar, a todo o custo, a reedição da solução governativa que resolveu
os problemas do país sem se subordinar fielmente à lógica do mercado unificador e tendencialmente totalitário.

É evidente que situações desta natureza têm de suscitar especulações sobre a linearidade da conduta de
certos poderes ou individualidades do sistema judiciário. Disso, o melhor barómetro são as redes sociais, em cujo espaço as opiniões se esgrimem e diferenciam conforme as preferências partidárias, mas onde sobressai o saldo de um grosso sentimento popular de desconfiança em relação ao sistema judiciário. Aliás, essa percepção é corroborada pela opinião abalizada e sustentada de políticos, juristas, magistrados, sociólogos e cidadãos comuns, que convergem quanto à necessidade de uma inadiável reforma da Justiça.

É neste contexto que amiúde se questiona a existência de organizações sindicais de magistrados, principalmente a do Ministério Público, uma vez que o sindicalismo dá azo a que o partidarismo político se instaure no seio da magistratura, comprometendo a autonomia absoluta por que ela se deve reger na sua função soberana. É aqui que muitas dúvidas e interrogações se têm levantado. A título de exemplo, o porquê das sistemáticas e recorrentes violações do segredo de justiça e fugas de informação dentro do aparelho judiciário em proveito de certos
órgãos de comunicação afectos a uma determinada ideologia política, sem que até hoje se tenham apurado
responsabilidades.

O processo Marquês foi paradigma das mais torpes violações e até de comportamentos de operadores judiciários que deixaram muitas dúvidas sobre o que é trâmite processual da justiça e propósito de achincalhamento público de um ex-governante.

Em nenhum Estado de direito democrático é desejável a judicialização da política e, inversamente, a politização da justiça. Menos ainda a partidarização política dos actos da justiça. Os políticos são eleitos pela nação para, em sede parlamentar, produzir as leis com que o Ministério Público e os Tribunais têm de lidar na
governança da justiça. Além de eleitos pelo povo, os políticos são continuamente escrutinados em todo o seu mandato, sujeitando-se a devassas constantes da sua vida pessoal e familiar e a julgamentos na praça pública,
antes de o serem em tribunal quando é caso disso. Os magistrados estão imunes a qualquer espécie de escrutínio externo, vivendo numa autêntica redoma, mas em troca a nação exige-lhes requisitos cívicos, morais e psicológicos a toda a prova e uma consciência livre, impoluta e inviolável no exercício da sua função
soberana.

Com a revolução de Abril de 1974, todas as estruturas do Estado e da administração pública foram viradas do avesso, passadas a pente fino. Excepto a Justiça, como é sabido. Até os juízes servis e que abdicaram da sua
honra pessoal e princípios deontológicos nos célebres tribunais plenários, passaram misteriosamente por entre
os pingos da chuva ácida que encharcou então a cena pública nacional. Não há memória de algum ter sido
julgado ou sequer saneado por conduta indevida, tendo todos prosseguido as suas carreiras normais. É como se
algum atavismo intergeracional não tivesse sido estancado em tempo devido.

Ora, o líder do PSD tem toda a razão em inscrever na sua agenda política uma reforma da Justiça, e não é
minimamente compreensível que o do PS tenha uma opinião diferente. É bom que ele abra os olhos porque
poderá ser tarde se tiver de concluir que afinal a mulher de César não só não “parece” como pode não “ser” tão
séria quanto devia por causa de algumas más companhias na sua corte.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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